A polêmica graduação em psicanálise

Oportunista e inconsistente, novo curso suscitou críticas. Mas será que esclarecemos a singularidade da formação do psicanalista e os porquês do rechaço a essa graduação? Como discutir as relações entre psicanálise e universidade?

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Por Eduardo Guimarães

Recentemente, a comunidade psicanalítica se sentiu convocada a se posicionar sobre uma questão: a graduação em psicanálise. Essa questão foi motivada pela criação do bacharelado em psicanálise, em formato de ensino a distância e com duração de quatro anos, pelo Centro Universitário Internacional Uninter. A Uninter é uma instituição privada de ensino superior sediada em Curitiba e presidida pelo empresário Wilson Picler. Com a criação do bacharelado, a Uninter se tornou assunto de diferentes meios de comunicação, inclusive das redes sociais.

Diversos psicanalistas e movimentos de psicanálise vêm se posicionando publicamente. A posição da maioria deles é inequívoca: repúdio ao curso de graduação em psicanálise. Vale lembrar, contudo, que reflexões de pequeno alcance, mas não menos interessantes, foram elaboradas por alguns psicanalistas e circularam prioritariamente nas redes sociais, pondo em questão o modo como a questão estava sendo colocada e debatida pela comunidade psicanalítica.

Para dar prosseguimento ao meu raciocínio, é necessário explicar, para os não psicanalistas, o motivo de a criação de uma graduação em psicanálise ter provocado um debate tão caloroso na comunidade psicanalítica. Infelizmente, a maioria dos psicanalistas que, rápida ou tardiamente, emitiram notas de repúdio, com exceção de Christian Dunker e Antonio Quinet e, em menor medida, de Luciano Elia e Vera Iaconelli, não esclareceu a distinção entre graduação e formação em psicanálise. Para os psicanalistas (ou, pelo menos, para a maioria deles), essa distinção é óbvia, mas o mesmo não se aplica aos leigos.

A formação em psicanálise é continuada e singular. Continuada porque se espera que seu término, no limite, ocorra somente com a própria morte do psicanalista. Apesar de a formação ser frequentemente realizada em cursos, módulos e seminários com data de início e término, isso não implica na identificação entre formação do analista e seminários, cursos etc. realizados com este propósito. O psicanalista se vale desses dispositivos para realizar sua formação, mas sua formação não se reduz a eles. Por outro lado, a formação em psicanálise é singular porque não existe um currículo previamente determinado, mas cada psicanalista deve percorrer o seu próprio caminho nesse processo de formação. É verdade que o psicanalista frequenta cursos ao lado de outros psicanalistas, porém cada um deve responder por aquilo que faz. Não é sem outros psicanalistas, mas cada psicanalista deve realizar sua própria formação.

Ainda seria possível argumentar que a graduação, como qualquer curso ou seminário, possui um currículo prévio e uma duração determinada. Sendo assim, faria sentido que um psicanalista, em sua formação, também pudesse se beneficiar de um curso de graduação. Entretanto, o raciocínio não é tão simples assim. A graduação em psicanálise apresenta problemas que precisam ser esclarecidos. Algumas notas de repúdio enfrentaram esses problemas, mas, a meu ver, muitas delas utilizaram argumentos que apresentam fragilidades que precisam ser apontadas.

Um dos argumentos para criticar a graduação em psicanálise, como aquele apresentado por Luciano Elia, sustenta haver uma relação necessária entre curso de graduação e regulamentação de uma atividade profissional. Apesar de ser verificada na maioria dos cursos de graduação, essa relação não é necessária. A publicidade é uma profissão regulamentada, mas seu exercício não exige o diploma de graduação. Por outro lado, a profissão de cientista molecular não é regulamentada, embora exista o curso de ciências moleculares oferecido pela Universidade de São Paulo. Ainda podemos mencionar, em menor medida, a profissão do historiador, regulamentada somente recentemente, apesar de seu curso de graduação ser oferecido há muitas décadas.

Foi possível notar, também, que a maioria das notas de repúdio sequer leu os textos de apresentação publicados no site da Uninter a respeito do curso de graduação em psicanálise. Se vocês forem curiosos e realizarem essa pequena investigação, vão perceber que o curso oferecido é uma constelação de incongruências. Em primeiro lugar, descreve a natureza da atividade profissional do psicanalista para, em seguida, declarar que, ao fim de quatro anos, o estudante receberá o título de bacharel em psicanálise. Em nenhum momento o texto afirma que psicanalista e bacharel em psicanálise são a mesma coisa, mas a apresentação tão próxima e maliciosa entre um e outro termos torna possível essa confusão. Em segundo lugar, define o mercado de atuação do bacharel em psicanálise – como isso é possível, se nunca existiu, até o momento, um bacharel em psicanálise?

O diploma de bacharel em psicanálise, portanto, não tem nenhum valor para a comunidade psicanalítica. Posto isso, aí faria muito sentido questionarmos as razões que levaram à abertura desse curso. Em segundo lugar, também poderíamos investigar os motivos de a comunidade psicanalítica não ter sido consultada. As razões do mercado foram frequentemente evocadas, como fizeram Rosana Coelho e Vera Iaconelli, para explicar o surgimento do bacharelado da Uninter, o que em certa medida faz sentido. Entretanto, parece-me que não houve um debruçamento, não sobre as razões universais do mercado, e sim sobre as razões singulares de “por que a psicanálise?”. O mercado é capaz de capitalizar qualquer atividade, mas nunca escolhe qualquer atividade.

Para concluir, pretendo levantar uma importante questão. Todos os psicanalistas que emitiram notas de repúdio à criação de um curso de graduação em psicanálise são professores universitários ou estiveram e estão, de algum modo, vinculados à universidade. Isso me fez pensar que a discussão sobre a relação entre psicanálise e universidade, mais ampla que a relação entre psicanálise e graduação, foi sumariamente ignorada. A psicanálise já está na universidade, mas essa questão foi abordada, infelizmente, somente por Antonio Quinet e pela Freduc. Nada impede que o psicanalista tenha realizado graduação em psicologia ou pós-graduação em psicanálise ou outra coisa que o valha, mas esse percurso na vida universitária não se identifica com sua formação. A pesquisa em psicanálise na universidade é suplemento, mas nunca define uma formação.

Creio que alguns de nós, psicanalistas, perdemos uma boa oportunidade para esclarecer pontos cruciais da formação em psicanálise para o público leigo. Entendo, também, que existe a necessidade de discutirmos com mais cuidado o fato de que as notas de repúdio publicadas contra a graduação em psicanálise foram redigidas por quem está de algum modo vinculado à universidade. Então, por que não esclarecer essa diferença? Por que ficar chutando cachorro morto, quando se faz tão necessário pensar sobre a relação entre a psicanálise e a universidade, por um lado, e, por outro, o modo como se dá a formação do psicanalista?

Para que não reste dúvidas. Penso que o curso de graduação em psicanálise oferecido pela Uninter deve ser objeto de críticas por um motivo bastante concreto: a instituição promete (ou dá a entender que promete) o que é incapaz de cumprir. Por outro lado, penso que nós, psicanalistas, precisamos enfrentar uma delicada questão: qual é o papel que os programas de pós-graduação exercem no interior da formação de um psicanalista? Qual é a relação possível que a psicanálise pode estabelecer com a universidade?

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20 comentários para "A polêmica graduação em psicanálise"

  1. Estudante de Psicologia disse:

    Qual é o problema de ter uma graduação em Psicanálise? Prefiro alguém graduado na área do que alguém sem formação alguma na área da saúde, fazendo uma pós online ou presencial de no máximo dois anos, que nem mestrado é e se achando “terapeuta”, sem ao menos ter um registro de classe, um CRM ou CRP. O próprio autor do texto é Bacharel em Filosofia e História e se intitula psicanalista. Tem inúmeras pós em psicanálise e ninguém falava nada. Agora que tem uma graduação, “não pode”, “é um absurdo”. Mas pode bancar analista sendo filósofo. Nesse caso não tem problema nenhum. Hipocrisia isso. Devia ser proibido ser terapeuta ou psicanalista sem diploma e sem fazer ao menos um estágio na área da saúde.

  2. Thais Santos disse:

    @Sabrina G. bem, na área de pesquisa nunca se sabe qual tipo de conhecimento será necessário obter para se complementar o que se já se tem, portanto faz todo sentido um graduado em química correr atrás de uma formação em psicanálise, caso seja necessário. Ou pode ser que a pós em psicanálise sirva apenas para auxiliar no dia-a-dia (por exemplo, um cirurgião que busque a especialização para lidar melhor com os próprios pacientes, embora não pretenda atuar como psicanalista). Claro que, agora que a Uninter trouxe esse curso, mais profissionais de diferentes áreas poderão fazer uso desse conhecimento; e com a regulamentação da profissão haverá menor possibilidade de que haja atendimentos inapropriados ao público leigo por conta de deficiências na formação dos profissionais. Entretanto, não muda o fato que a apresentação da Uninter, ainda mais em EAD, soa bastante suspeita.

  3. Antônio de Oliveira disse:

    O texto me parece faccioso e não contribui em nada para o debate. Demonstra no meu entender o medo da concorrência assentada num curso regular enquanto os que aí estão adentra no rol dos práticos e, logo mais, estarão entre aqueles profissionais clandestinos. O cliente vai querer saber quem está habilitado para o exercício da profissão. Este alguém é quem é graduado, tem registro no MEC e (logo virá ) inscrição no órgão de classe.

  4. Glauco Augusto disse:

    Sou Psicanalista! O meu curso foi de 2 anos. De tudo o que se falou, fica a pergunta; “se for aprovado como Curso Superior a profissão, como que fica quem já trabalha como Psicanalista? Será que vai acontecer o mesmo que aconteceu com a Contabilidade? Há uns 10 anos, o técnico em contabilidade podia fazer o trabalho como Contador. Depois, para ser contador, passou-se a exigência de curso superior. Porém, para aqueles que já exerciam a profissão, estes puderam continuar sem a necessidade da formação superior. Será que vai acontecer o mesmo com quem já é Psicanalista? Pois acabei de ver no e-mec que o Curso da UNINTER foi aprovado e autorizado.

  5. Patricia disse:

    Não pode ter bacharelado ? Ma o curso de 2 anos presencial em torno de 500 mês eh reconhecido ? E eh inclusive indicado … porque ? O que difere.? Pq pode ter curso e não bacharelado ?

    Acho a existência do bacharelado um baita avanço … o curso já existia e era aceito .

  6. Patricia lis disse:

    Prq a graduação não poderia oferecer a base teorica do tripé analítico? Cursos livres garantem isso, mas prq não mestres e doutores,
    Analistas e psicólogos? Me parece consevadora e elitista demais tal posição.. sabemos que o analista se faz num percurso, e tirar de um bacharel o direito de fazer seu próprio percurso é ditar por onde,como e de onde ele deveria partir. Contradições fundamentais?

  7. Joaquim Veloso disse:

    Sem dúvida a herança, por assim dizer, de Freud, é inquestionável. Sabemos que o conhecimento em sí, não tem dono. Porém, ressalve-se o direito de livre escolha, e com todo respeito aos psicanalistas que atuam de longa data, fazendo um trabalho responsável, honesto e mensurável para a sociedade. Registro aqui, que sem dúvidas a Psicanalise é um estudo pleno e continuo, conforme informado, este termina apenas com a morte do psicanalista, porém, precisamos compreender que o ser humano sempre precisará de bases consistentes e evolutivas para melhor compreender a sí mesmo e por sequencia, ou outro. Baseado nessa premissa a faculdade em Psicanálise, vem somar ao conhecimento já adquirido e experenciado em tantos atendimentos ocorridos junto aos nobres colegas. Não vejo nada negativo; porém evolutivo! Cabe-nos evoluir ao mundo do conhecimento do subconsciente, uma vez que o homem é formado por espírito, alma e corpo e suas subdivisões, mente, vontade, emoção e consciência. Se o foco é prestar um serviço relevante ao ser humano, devemos aderir e incluir essa nova fase de conhecimento acadêmico.

  8. Larissa disse:

    Desculpa, mas o texto falou falou e não falou nada. Faltou esclarecer o que precisa fazer para se tornar um psicanalista??? Ser graduado em qualquer área e fazer uma pós em psicanálise já seria o suficiente????

  9. Larissa disse:

    Desculpa, mas o texto falou falou e não falou nada. Faltou esclarecer o que precisa fazer para se tornar um psicanalista??? Ser graduado em qualquer área e fazer uma pós já seria o suficiente????

  10. Neilton Libanio disse:

    Psicanálise virou uma salada no Brasil… Qualquer um que faz um cursinho de 6 meses em uma escola que nem tem sede, sai por aí se dizendo psicanalista e atendendo pessoas fragilizadas. Muito melhor um curso de quatro anos em uma universidade com professores mestres e doutores. A Graduação chegou em boa hora!

  11. João Gustavo Freire Pimentel disse:

    É, esse texto demonstra o quanto é urgente e necessário a psicanálise ter um curso de formação de nível superior na modalidade de bacharelado. É muito amadorismo para um mundo que necessita de profissionais qualificados e que saibam cuidar da saúde humana.

  12. Concordo plenamente com você, Rogério Pereira Fontes. E acrescento, se todos os graduandos tivessem o curso de psicanálise seriam melhores profissionais, falo por mim, depois do curso de psicanálise passei a entender melhor os meus alunos. Me senti mais profissional, e muitos conflitos foram resolvidos sem traumas.

  13. Rogério Pereira Fontes disse:

    Sobre a parte do texto que diz: “O diploma de bacharel em psicanálise, portanto, não tem nenhum valor para a comunidade psicanalítica.” Demonstra o texto citado um monopólio inconsciente sobre a psicanálise. Então só por meio dessas “comunidades psicanalítica” que seriam formado os psicanalista? Qual dessas comunidades detém a verdadeira psicanálise? Se não existe monopólio real, por que essa insegurança? O novo traz temores. Certo é que bacharel em psicanálise não é psicanalista, como bacharel em direito não é advogado, nem bacharel em ciências contábeis é contador, mas toda teoria é base para os profissionais citados, inclusive para o psicanalistas.

  14. Se o curso de Psicanálise é uma matéria da universidade para médicos e psicólogos porque o título: Psicanalista?

  15. Oxalá, que professores, advogado, juízes, tivesse pelo menos noção de psicanálise. Eles julgariam com mais equidade. Quando a SPOB lançou o curso de Bacharel em psicanálise.foi muito criticada ,principalmente pelos psicólogos . Mas eu fiz análise com psicanalista formado pela SPOB fui bem mais acolhida do que a psicóloga

  16. fabio disse:

    Eu estou fazendo, porém farei psicologia concomitantemente (um é EAD e outro presencial então é possível levar juntos) para evitar criticas e abrir o leque de opções, porém tenho sentimentos mistos de surpresa com tamanha reação por desconhecer a profissão no Brasil e tampouco surpreso por conhecer o Brasil. Estou surpreso com Cursos Livres na área, surpreso que só é considerado Analista o sujeito que se associar a uma sociedade, pagar sua mensalidade e passar pelo crivo de um ASSOCIADO.
    Eu entendo que é fundamental a supervisão, mas fico preocupado se essas sociedades irão me aceitar sem fazer seus cursos livres. Acho que não aceitarão. Afinal eu não tenho que fazer seus “cursos livres” pois tenho um bacharelado, e então a sociedade como entidade politica e interessada no lucro não ganhará seu pão. Que farão? Ignorar-nos-ão? Aumentarão o preço para nós (bem capaz)?
    Penso que a única saída aos moldes de Lacan é “Se não nos aceitam, abrimos nossa própria associação”. Que lindo ficaria hein? “Associação dos Bacharelados em Psicanálise”?

  17. Anísia disse:

    O artigo de opinião recordou-me a década de 90, quando a estréia do curso de tecnólogo em radiologia significava para médicos radiologistas o fim de sua especialização. Ledo engano!

  18. Sabrina G disse:

    Depois que descobri que qualquer um , desde que seja graduado, bacharel em “quimica” faça um curso de psicanálise e saia por ai “psicanalisando”. Fiquei com pe atras.
    Faça terapia com graduados em psicologia.

  19. Luiz Vasconcelos disse:

    A Psicanálise não tem dono pessoa física ou jurídica. As sociedades, associação cartéis, etc, pensam que a Psicanálise é dela, porém, sabemos que a psicanálise é da sociedade, na medida em que, foi-nos doada por Freud, seu inventor, e qualquer instituição, qualquer, inclusive uma faculdade ou uma universidade pode e deve transmitir, ensinar, formar e educar as pessoas sobre os conceitos e as premissas basilares que norteiam este saber singular. Portanto, o autor do texto em epígrafe deverá aceitar o novo, as mudanças que emergem na sociedade contemporânea, que desfragmenta e pormenoriza os demais saberes, tornando-os cada vez mais singulares e interessantes, e que cursos de graduação em psicanálise serão sempre bem vindos para seus criadores, que ansiavam em se fazer reconhecer sua ciência.

    Luiz Vasconcelos
    Psicólogo & Psicanalista

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