A literatura periférica é universal

Dos raps dos EUA aos saraus europeus. Da África negra aos sambas e pancadões. De slams ao cordel. As quebradas tudo assimilam e refazem. Seu vigor cultural e originalidade vêm de uma matriz popular urbana – antropofágica, brutal e vibrante

Foto: Sergio Silva/Jornal da USP
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Reiterando o que já disse em textos anteriores, a literatura produzida na periferia de São Paulo revela uma inegável originalidade. Isso não lhe tira da exposição a influências, inclusive estrangeiras. Pelo menos duas características associadas a essa literatura têm raízes fora do Brasil. Uma é o RAP ( Rythm and Poetry ), gênero musical criado nos Estados Unidos na década de 1970, um dos elementos da cultura hip hop. Presente no Brasil desde a primeira metade da década de 1980, o RAP se espalhou pelas periferias estimulando a criação poética entre os jovens, tornando-se, a meu ver, o fator mais importante de ressignificação positiva da periferia, base sobre a qual podemos hoje falar de cultura de periferia e, por extensão, de literatura periférica.

Outra é o sarau, um tipo de reunião muito disseminada nos salões das elites europeias no Século XIX e trazido para o Brasil na mesma época, perdurando até o início do século XX. Fora de moda há muitos anos, o sarau ressurgiu na periferia de São Paulo, na década de 1990, com experiências como o Sarau do Bar do Frango, na Zona Leste, ou o Sarau do Binho no Campo Limpo, periferia da Zona Sul.

Mas o sarau apareceu com força num boteco no município do Taboão da Serra, na Grande São Paulo com os poetas da Cooperifa em 2001, encontro que influenciou outras iniciativas do gênero tanto na periferia como em bairros do centro. Dois anos depois o sarau criado por Sergio Vaz e Marco Pezão migrou para o Bar do Zé Batidão, no Piraporinha, periferia da zona sul de São Paulo onde está até hoje. O Sarau do Binho, por sua vez, migrou para o Taboão da Serra, ocupando o Teatro do Grupo Clariô. Já o Sarau do Bar do Frango continua no mesmo local há 25 anos.

Nos saraus da Belle Époque se declamava a poesia do romantismo e parnasianismo. Parece uma ideia fora do lugar se realizada no ambiente de um bar de bairro popular. São poucos, porém, os autores dessa tradição que têm espaço nos saraus periféricos. O que se vê são poemas de autoria dos próprios frequentadores. São composições que abordam a realidade local numa representação lírica das vivências desses poetas periféricos nos seus territórios.

Essa assimilação ressignificada de modelos externos à cultura brasileira é uma das chaves para entender a cultura periférica como expressão da cultura popular, entendida como contemporânea e também histórica1. Uma manifestação que incorpora a cultura Hip Hop, os pancadões do Funk e os Slams, linguagens trazidas dos Estados Unidos e aqui recriadas, mas que têm origem comum na África negra da onde vem os sambas de terreiro e sambas de partido alto tocados nas rodas de samba atualmente. Recorro a um argumento de Alfredo Bosi: “A cultura do povo é localista por fatalidade ecológica, mas na sua dialética humilde é virtualmente universal: nada refuga por princípio, tudo assimila e refaz por necessidade”2. A cultura popular, portanto, tem um traço antropofágico.

A fim de captar melhor essas assimilações, dou especial atenção aos intertextos contidos nas obras que resenho. Esse procedimento analítico é particularmente importante na observação da literatura da periferia paulistana, pois, se trata de uma escrita permeada por referências do RAP, da cultura nordestina, do samba, das africanidades negras e tantas outras expressões estéticas brasileiras e estrangeiras. Toda a originalidade e o vigor da cultura da periferia e da literatura periférica reside nessa matriz popular urbana, posto que é uma produção simbólica emanada das classes populares, nela referenciada e para ela voltada num movimento de autovalorização.

Articulei esse argumento para debater com autores que são periféricos e/ou negros, mas que temem que a sua literatura, ao se identificar como periférica ou marginal, perca sua universalidade. Como foi dito, o periférico tem raízes na África, nos Estados Unidos e na Europa. Há também conexões com países de língua espanhola da América Latina com. É o caso do livro Donde Miras dos poetas Binho e Serginho Poeta e o Diário Bolivariano, de Emerson Alcalde. Recentemente, as escritoras Raquel Almeida e Elizandra Souza publicaram livros bilíngue (português – inglês) e fizeram turnê na Terra do Tio Sam. Ferréz já é um autor publicado em diversas línguas, assim como o jovem escritor Geovani Martins que teve seu livro de estreia Sol na Cabeça publicado em mais de 10 países. Poderia citar muito mais casos. Mas esses já são suficientes para demostrar que a literatura periférica é universal.


1 WILLIAMS, Raymond, Cultura e Sociedade, Editora Vozes, 2011, Petrópolis.

2 BOSI, Alfredo, Dialética da Colonização, Companhia das Letras, 1994, São Paulo.

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Um comentario para "A literatura periférica é universal"

  1. Nos anos 77, eu me lembro que corria todas as manhãs pela XV de novembro, no centro de São Paulo, para comprar o jornal Folha de São Paulo. O meu interesse era a coluna do Lourenço Diaféria. Minha admiração por ele crescia dia a dia. Tentava aprender com a sua forma de escrever as crônicas. Imaginava que um dia eu escreveria crônicas. Agora estou sempre de olho nos trabalhos escritos de Eleilson Leite. Passei a admirá-lo, mais, depois do prefácio: O Cordelismo não reina, mas contagia”, escrito por ele, gentilmente, no meu livro “Semana de Arte Moderna 100 anos”, todo escrito em versos de Cordel. Quer admirar alguém ou odiá-lo, leia o que ele escreve. Parabéns, Eleilson!

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