Domenico Losurdo e as fronteiras da utopia

Outros Quinhentos publica em primeira mão trecho de novo livro do filósofo italiano Domenico Losurdo, que discute os conflitos entre o movimento comunista e o liberalismo. Quem apoia nosso jornalismo de profundidade e sem catracas concorre a dois exemplares oferecidos pela Boitempo.

As fronteiras imprecisas entre a utopia e o projeto político concreto, por Domenico Losurdo

A questão comunista: história e futuro de uma ideia é uma obra póstuma do historiador marxista italiano Domenico Losurdo, organizada a partir de originais escritos entre 2014 e seu falecimento em 2018. O livro receberá sua primeira publicação no Brasil pelas mãos de nossos parceiros da Boitempo, e já está em pré-venda no site da editora. Outros Quinhentos publica trecho inédito. Boa leitura!

Mas não é uma utopia impossível e funesta a que inspira o “comunismo”? Essa é uma tese central da ideologia dominante e deve ser examinada com cuidado. Deve-se notar, em primeiro lugar, que essa tese pressupõe uma fronteira clara entre projeto político realista e utopia. Mas as coisas de fato se colocam nesses termos? Segundo o Schelling de 1809/1810, as ideias difundidas “especialmente a partir da Revolução Francesa” tinham a ilusão de querer criar o “verdadeiro Estado”, esquecendo-se de que “o verdadeiro Estado pressupõe um paraíso na terra e que a verdadeira politeia só existe no céu”. O que aqui se critica como utopia inatingível é o Estado liberal e democrático, ou seja, uma ordem política hoje considerada óbvia e inalienável. Coloquemo-nos, no entanto, no tempo em que o grande filósofo chegou à conclusão que hoje parece risível: os ideais de 1789 não haviam penetrado em nenhum país da Europa continental, enquanto na França o Antigo Regime fora de fato derrubado, mas para abrir caminho para a ditadura militar e belicosa de Napoleão. Na Inglaterra mesmo as coisas não estavam muito melhores:

“O habeas corpus foi suspenso por oito anos em 1794, e as tropas ocuparam a maior parte das áreas industriais como se fossem terras de conquista […]. Pitt, apoiado por grande parte da opinião pública, perseguiu implacavelmente todos aqueles que se manifestaram a favor das ideias liberais ou que, de qualquer forma, se inclinam a favor das ideias francesas. Motins, revoltas, greves ou levantes, mesmo se justificados pela miséria e sofrimento, eram esmagados impiedosamente.”

Não havia dúvida aos olhos de Schelling! As ideias de 1789 revelaram-se uma utopia, e nessa convicção o filósofo alemão foi ainda mais fortalecido após o fracasso em toda a Europa da Revolução de 1848: aspirar a um “Estado de direito completo” (Staat des vollendeten Rechts), a um “Estado perfeito” (Vollkommer Staat), significava abandonar-se a um “devaneio apocalíptico”, com as consequências ruinosas que eram visíveis aos olhos de todos.  

Outras Palavras e a Boitempo Editorial sortearão dois exemplares de A questão comunista: história e futuro de uma ideia, livro do qual este trecho faz parte, aos apoiadores do nosso jornalismo de profundidade e sem catracas. Enviaremos por e-mail o formulário para concorrer. Inscrições até sexta-feira (08/04), às 15h.

Do mesmo modo, outras “obviedades” dos dias atuais foram rotuladas como utopias no passado. Embora fosse proprietário de escravos e estivesse empenhado em aumentar sua propriedade, Jefferson, com os olhos voltados à missão internacional que os Estados Unidos desejavam desempenhar, sentia-se incomodado com a instituição da escravidão e, ainda que fosse para um futuro vago e remoto, projetava a abolição. No entanto, essa medida deveria ter sido seguida pela deportação dos ex-escravos para a África. Não era imaginável uma convivência em bases igualitárias de negros e brancos: seria um terrível desafio à natureza e às diferenças naturais; o resultado inevitável teria sido uma guerra total entre as raças com o consequente extermínio dos derrotados. Lincoln também considerava utópica a ideia de uma sociedade inter-racial e, ao final da Guerra de Secessão, projetava a ideia de deportar os ex-escravos: mas a transferência para a África era muito dispendiosa e pensava-se na América Latina. Os Estados Unidos tiveram, no entanto, que renunciar a esse projeto devido à oposição dos países latino-americanos.

É sobretudo no final do século XIX, com o advento e a fúria do regime da White supremacy, que a ideia de uma sociedade baseada na coexistência e na igualdade racial foi estigmatizada como sinônimo de utopia irrealista e funesta. Não foram poucos os visitantes da Europa a argumentar dessa forma, somando-se à comunidade branca dos Estados Unidos como um todo. Um deles, mais tarde destinado a se tornar um teórico alemão da geopolítica famoso e controverso, observou – na verdade constatou, foi obrigado a constatar – que na República norte-americana a realidade da “aristocracia racial” suplantara os projetos fantasiosos de realização do princípio da “igualdade”: a separar brancos e negros e a colocar os primeiros em uma posição de poder e privilégio, havia uma “linha de cor”, mais rígida e intransponível do que nos dias da escravidão, e tão difundida e inevitável que atravessava “até mesmo instituições para cegos”. Assim, até os “fanáticos da instrução” e da educação foram forçados a reconhecer que o artifício humano nada poderia fazer contra a natureza e suas leis inelutáveis. Nem é preciso dizer que hoje o quadro mudou drasticamente. O sonho ou o pesadelo (dependendo do ponto de vista) de uma sociedade fundada no princípio da coexistência e da igualdade entre as diferentes “raças” tende a se tornar uma realidade em uma área cada vez mais extensa do planeta.

Outros exemplos da transformação da utopia em realidade ou em um projeto político concreto poderiam ser citados. Pense-se na condição da mulher e nas relações entre homem e mulher: mesmo com suas limitações persistentes, o quadro que se nos apresenta hoje a esse respeito teria parecido uma utopia fantástica ou distopia repugnante (dependendo do ponto de vista) a algumas décadas atrás, quando era uma crença generalizada e quase inabalável que a segregação das mulheres e a sua exclusão dos direitos políticos e das profissões liberais eram impostas pela natureza. 

Agora vale a pena referir-se a um exemplo tirado de uma esfera significativamente diferente daquela considerada até agora. Não apenas para Malthus, mas para toda uma série de autores contemporâneos ou posteriores, e na verdade, para o que durante séculos foi a cultura dominante, a escassez e a miséria em massa foram um elemento constitutivo e inseparável da condição humana. Aos olhos de Tocqueville, a revolução de fevereiro de 1848 já estava infelizmente contaminada pelo socialismo e pela utopia socialista, pelo fato de nela estarem fortemente presentes “teorias econômicas e políticas” que – observam suas Lembranças – queriam nos fazer “crer que as misérias humanas são obra das leis e não da Providência, e que se poderia suprimir a pobreza mudando-se o ordenamento social”. Silenciadas com punho de ferro as massas parisienses, em um discurso de 3 de abril de 1852 o liberal francês reiterava: insano prenúncio de desastre sair em busca de um “remédio político contra esse mal herdado e incurável da pobreza e do trabalho” (sob a bandeira de dificuldades e fadiga exaustiva).

Não há dúvida de que, especialmente a partir da crise econômica que eclodiu em 2008, a miséria se faz sentir de forma generalizada e dramática no Ocidente; mas a queda ou recaída nessa condição é percebida como uma injustiça intolerável por grandes massas, incluindo aqueles que estão longe dos ideais do socialismo; após as conquistas políticas e sociais e o desenvolvimento das forças produtivas ocorridos nos séculos XIX e XX, a erradicação da miséria em massa de utopia se transformou em um projeto político concreto.


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2 comentários para "Domenico Losurdo e as fronteiras da utopia"

  1. martha aulete hirsch disse:

    O Brasil está em perigo.
    Na cultura e na arte. Só feiúra. Nada da alta literatura nas escolas. No tempo e no espaço. Breguices e baranguices da religião cujo nome é PT.
    O PT é barango.
    O PT é o Kitsch político.
    E os ditos supostos intelectuais (ditos por seus pares) como João Cezar de Castro Rocha apoia aPedeuTa bandido. A saber: O mula.
    Eis aí a esquerdalha brasileira apoiadora da cultura de massas petista.
    Está ela morrendo de raiva da tradição e do bom senso… No Brasil todo…
    E, igualmente, está querendo impor o mau gosto geral, ou seja: a cultura de massa, via ministério da cultura. Nas TVs. Nas músicas ruins. No teatro etc.
    E, também, por outro lado, impor à população todo tipo de rebaixamento cultural e educacional. O PT nivela a arte e a cultura por baixo. A favor de tudo que é baranguice.
    O PT é o Kitsch político do Brasil.
    O mula é um aPedeuTa.
    Sempre aquele papinho furadérrimo do esquerdismo…
    Como tudo irá ficar? Eis a dúvida.

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