Sobre buracos negros e a banalidade da vida terráquea

“Quem sabe lá, onde o tempo como o conhecemos acaba e a realidade nos suga para dimensões desconhecidas, seja possível superar a sina triste das sociedades incapazes de enxergar a si mesmas”

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Por Ricardo Machado, no IHU

“E no entanto… no entanto… negar a sucessão do tempo,
negar o eu, negar o universo astronômico
são desesperos aparentes e consolos secretos…
O tempo é a substância de que sou feito.
O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio;
é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre;
é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo.
O mundo, desgraçadamente, é real;
e eu, desgraçadamente, sou Borges.”

Jorge Luis Borges, “Uma refundação do tempo”, em Outras Inquisições


Num dia como o de hoje, como de ontem na verdade, a primeira imagem de um buraco negro foi divulgada. O feito é resultado do trabalho de uma série de cientistas que, para dizer de forma resumida e um tanto vulgar, triangularam imagens e informações capturadas por dezenas de satélites – foram feitos 420 cenários físicos diferentes – que integram o projeto Event Horizon Telescope – EHT. Para desespero cético dos terraplanistas, a publicação do estudo foi feita no The Astrophysical Journal Letter, um dos mais importantes periódicos da área.

Na imagem divulgada, um círculo de luz em tom avermelhado ocupa a parte central de uma imagem escura com o miolo igualmente negro. Albert Einstein, em sua Teoria Geral da Relatividade, publicada 100 anos atrás, denominou os buracos negros dessa forma porque sua imensa massa de matéria concentrada gera uma gravidade tal que qualquer fóton ou estrela que passe perto dele é engolido. Sem contrariar a tese de Einstein, o que a imagem mostra em vermelho, laranja e amarelo é o disco de acreção, que se forma pelo movimento orbital e aquecimento das matérias que são atraídas para o centro do buraco negro.

Distante 50 milhões de anos luz de nós, este buraco negro é do tamanho de três milhões de planetas terras. Sim, três milhões de vezes maior que esse ínfimo lugar no infinito do cosmos, onde 7 bilhões de seres humanos convivem em menos harmonia do que deveriam, embora de maneiras um tanto quanto pacíficas quando se leva em conta o grau de violências a que a maior parte das populações são submetidas. O abismo cósmico que nos separa do buraco negro recém descoberto bem que poderia nos parecer incompreensível, sobretudo por sua escala, mas quando se trata de produzir abismos, principalmente sociais, somos bastante mais competentes que os seres regidos pelas leis do universo.

Poucos anos atrás o banco de investimentos Credit Suisse divulgou dados sobre a desigualdade no mundo. O estudo dava conta que 1% da população mundial possui cerca de 45% de toda a riqueza produzida no globo. Nesse mesmo planeta, que orbita em um universo que tende à entropia, a vida biológica opera em sentido contrário. As mais variadas espécies crescem e se multiplicam, dentre elas a humana, melhor dizendo, a despeito da espécie humana. Num paradoxo quase irreconciliável, 70 milhões de pessoas que nasceram no mesmíssimo planeta têm o direito à vida negado. Para todos eles inventaram eufemismos estranhos, como “refugiados”, “migrantes”, “pobres”, quando na verdade são, simplesmente, pessoas humanas. Diante de um cenário em que, em nome da economia, o sacrifício das gentes não somente é tolerado, mas celebrado debaixo de nossas barbas, a economia alega obedecer, da maneira mais vulgar possível – não raro evocando-se como justificativa irrefutável –, o que ela chama de “leis da natureza”. Os papas da economia, com seu assustador determinismo, definem os rumos da vida no planeta terra com uma certeza capaz de ruborizar, inclusive, a face desconhecida da mão invisível.

Para Ilya Prigogine, autor de O fim das certezas. Tempo, caos e leis da natureza (2011), a plasticidade do tempo opera no vão entre o determinismo absoluto e o puro acaso. A economia neoliberal é, talvez, o mais sofisticado e eficaz buraco negro produzido nesse diminuto planeta da Via Láctea. Trata-se uma força de atração que suga vidas para seu centro em nome da própria existência, sem dar-se conta de que, de forma radical, opera entropicamente. Em uma entrevista ao jornalista catalão Jordi Évole, o Papa Francisco salientou que nos esquecemos de chorar, ao fazer memória das vítimas da política anti-imigracionista da Europa, todas elas mortas no paradisíaco Mediterrâneo ou nos conflitos deflagrados na África e Oriente Médio. De certa forma, na Venezuela a situação guarda suas semelhanças.

Nossos modos de vida se tornaram de tal forma pusilânimes com a dor do outro, que nosso choro foi engolido pelo vórtice de uma economia sacrificial que nos levou ao buraco negro da humanidade. É o tempo como desgraça existencial, tal qual na versão de Borges, do qual somos indiscerníveis. Há, no entanto, a memória e a sucessão do tempo. Talvez coubesse lembrar, nos dias pascais que se sucedem, que a figura mais conhecida do Ocidente, Jesus Cristo, deu sua vida como último sacrifício. Depois disso, todo o sacrifício, quer em sentido histórico, teológico ou social, é uma forma estúpida de satisfação hedonista. Em meio à relatividade múltipla do tempo, cientistas fotografam a existência de um buraco negro. Provam-no, enfim. Quem sabe lá, no buraco negro, onde o tempo como conhecemos acaba, onde a realidade nos suga para dimensões ainda desconhecidas, nós encontremos as lágrimas que esquecemos de chorar por nossos irmãos mortos.

Ricardo Machado é jornalista e doutorando em Cultura e Significação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

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