Stiglitz: EUA e UE alimentam a crise econômica
Nobel de Economia aponta: ricos protegem seus mercados, mas querem os de outros países abertos. Alternativa é controlar finanças, tributar corporações (inclusive as da internet) e retomar investimentos públicos que rompam os oligopólios
Publicado 30/09/2019 às 19:04 - Atualizado 30/09/2019 às 19:08
Joseph Stiglitz, entrevistado pelo Le Monde, traduzido por Aluisio Schumacher, na Carta Maior
Longe de proteger melhor os perdedores da globalização, a política econômica de Donald Trump agravará as desigualdades. Em seu novo livro a ser publicado em 26 de setembro, People, Power & Profits (Ed. The Free Links, 24 euros), Joseph Stiglitz, professor de economia da Universidade de Columbia (New York), é muito crítico em relação ao Presidente dos Estados Unidos. Se julga que os riscos de uma nova grande crise financeira são limitados no curto prazo, o Prêmio Nobel de Economia de 2001 prega por uma reforma do capitalismo, favorecendo a regulação e o papel do Estado.
Guerra comercial, tensões de mercado, Brexit … Devemos temer uma nova recessão ou mesmo uma crise financeira?
As
incertezas são numerosas e as intervenções do Federal Reserve dos EUA
(Fed, banco central), que injetou precipitadamente nos últimos dias
bilhões de dólares em liquidez nos mercados, deixaram muitas pessoas
nervosas. A probabilidade de que tenhamos em breve uma crise financeira
da mesma magnitude que a de 2008 permanece baixa. Por outro lado, é
certo que nossas economias registrarão uma desaceleração acentuada.
Na
Europa, as novas medidas de acomodação adotadas em setembro pelo Banco
Central Europeu (BCE) serão suficientes para combater essa
desaceleração?
A ação do BCE retirou a zona do euro da crise
da dívida soberana de 2012, mas falhará em restaurar um crescimento
dinâmico. A redução das taxas novamente tem agora um efeito desprezível
ou mesmo negativo em atividades como a oferta de crédito. Hoje, a único
instrumento que pode efetivamente apoiar o crescimento é a política
fiscal – especialmente em estados com espaço de manobra nessa área, como
a Alemanha.
Os outros países membros, como a França, estão limitados pelas regras do pacto de estabilidade. O ideal seria flexibilizá-las e que a área do euro adotasse também um real instrumento orçamentário comum. Mas isso requer reformas complexas e demora para implementar.
No fundo, Donald Trump não está certo em escolher a China como alvo, que nem sempre respeita as regras do comércio mundial?
Quando
tributam as importações de alumínio e aço em nome da chamada “segurança
nacional”, os Estados Unidos não respeitam as regras do jogo, definidas
na Organização Mundial do Comércio (OMC)! Pior ainda, ao bloquear a
nomeação de novos juízes para o órgão de resolução de disputas dessa
instituição, eles estão questionando o multilateralismo sobre o qual foi
construída a prosperidade do pós-guerra.
Isso ilustra como Donald Trump atropela o conjunto de regras e os equilíbrios que baseiam nossas sociedades democráticas. É importante que as discussões com a China continuem no quadro da OMC, mesmo que esta [instituição] possa ser melhorada.
O protecionismo preconizado pelo presidente
americano pode ser uma solução para a desindustrialização observada nos
países desenvolvidos?
Não, porque não podemos voltar ao
passado: a suposta era de ouro da década de 1950, quando os Estados
Unidos dominavam a economia e a indústria mundiais, enquanto muitos
países emergentes ainda eram colônias, se foi.
A partir de agora, nossa economia é dominada por serviços, e o fechamento das fronteiras não fará retornar aos Estados Unidos as indústrias realocadas na China. Em vez disso, elas irão para outros países de baixo custo, como o Vietnã.
Mesmo que voltassem, os carros 100% fabricados nos Estados Unidos seriam mecanicamente mais caros do que os produzidos na Ásia ou na Europa, por exemplo, cujas fábricas estão parcialmente localizadas na Europa Oriental. Finalmente, dificilmente beneficiariam o emprego nos EUA, porque os veículos certamente seriam montados por robôs.
Até o ministro da Economia da França, Bruno Le Maire, ou o “Financial Times” pedem a reforma do capitalismo. Por onde começar?
Estamos
vivendo um momento interessante: finalmente há consenso sobre os males
do capitalismo! Como opera hoje, não distribui equitativamente os frutos
do crescimento, capturados por uma minoria. Além disso, acelera a
destruição do meio ambiente e é contestado por uma parte crescente da
população, que sofre com as desigualdades.
Mas é possível avançar em direção a “um capitalismo progressista”, com tributação mais justa, maiores investimentos públicos em educação e infraestrutura. Isso requer o fortalecimento do papel do Estado, tanto na direção do estado de bem-estar como nas regulações permitindo enquadrar melhor as finanças e os mercados.
A melhor ilustração é o sistema de saúde americano, amplamente privatizado. É mais caro do que na Europa – mais de 17% do produto interno bruto (PIB), segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, em comparação com 11% na França ou na Suécia – onde é público. E isso, para resultados piores: a expectativa de vida está diminuindo nos Estados Unidos, onde muitas pessoas são incapazes de pagar as contas do hospital.
Esse “capitalismo progressista” pode ser compatível com a transição ecológica?
Será
se conseguirmos o equilíbrio justo entre as instituições. Quer dizer,
entre os mercados, susceptíveis de resolver os problemas quando bem
regulados, o Estado e a sociedade civil. Nessas circunstâncias, acredito
que seja possível um crescimento que respeite as restrições ambientais e
a justiça social.
O modelo que você defende está próximo do
estado de bem-estar dos países escandinavos. Mas estes também falharam,
em menor grau, em conter o aumento da desigualdade …
Apesar
disso, as desigualdades permanecem muito mais baixas na Suécia do que
nos Estados Unidos. Mas é verdade que os países nórdicos cometeram um
erro: pensar que o forte consenso social em que se baseia seu modelo
igualitário estava conquistado.
Ora, este se deteriora, desde que aplicam certas receitas de inspirações neoliberais. Ao permitir o desenvolvimento de muitas escolas particulares, por exemplo, a Suécia corre o risco de ver as desigualdades aumentarem drasticamente no futuro. É uma tendência perigosa.
Como estabelecer um imposto mais justo quando multinacionais, como as GAFA, livram-se facilmente dos impostos?
O
assunto é particularmente importante na União Europeia (UE), onde
apenas a introdução de um imposto corporativo mínimo comum limitaria a
concorrência para baixo [nos custos] entre Estados-Membros.
Mas há progresso: na última cúpula do G7 [de 24 a 26 de agosto, em Biarritz], os principais países concordaram com a necessidade de criar um imposto mínimo. Ao introduzir seu próprio imposto sobre os GAFA [Google, Apple, Facebook e Amazon], Paris também mostrou que, contrariamente aos receios, era possível agir em nível nacional: a Amazon não vai interromper suas operações na França porque o grupo terá que pagar impostos.
No entanto, a Amazon ameaça repassar o
custo desse imposto para as PME (pequenas e médias empresas) francesas
usando sua plataforma de vendas …
Por que, então, não se
desenvolve uma plataforma de vendas alternativa? Pública ou mesmo
privada, com empresas locais inovadoras, apoiadas por fundos públicos.
Esse seria um eixo promissor de política industrial na Europa. Já
percebemos: o monopólio das multinacionais americanas não é mais um
problema apenas nos Estados Unidos, tornou-se um problema mundial.
Como o país do liberalismo permitiu se criarem tais monopólios?
Há
quarenta anos, as leis anticoncorrenciais e antitruste foram sendo
progressivamente descosturadas nos Estados Unidos. Quando se tornaram
suficientemente grandes, as empresas em posição dominante no mercado
norte-americano usaram seu poder econômico – e, portanto, político –
para influenciar a legislação a seu favor.
Neste domínio, a política anticoncorrencial tem sido mais eficaz na UE. Ao impedir a criação de monopólios, permitiu, por exemplo, uma redução significativa no custo dos serviços de telecomunicações, agora muito mais baratos que nos Estados Unidos.