Histórias da tragédia de Honduras – Parte I

Sobreviventes e familiares de vítimas ainda tentam entender como 359 pessoas morreram num incêndio em uma penitenciária de Honduras

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A única certeza é que guardas e diretor da prisão não fizeram nada para impedir que detentos fossem queimados vivos. “Essa ordem foi dada”, disse um dos carcereiros

Por Daniel Valencia Caravantes, no Opera Mundi

*Esta é a primeira parte de uma reportagem especial do jornal salvadorenho El Faro sobre a tragédia em Honduras. Leia também as partes II e III.

Coli subiu até o quarto andar do beliche, deitou-se para cima e começou a pressionar com as pernas, dando patadas com a sola dos pés contra a lâmina que o impedia de escapar do inferno. Antes de subir, havia dito ao seu amigo Quique que suportasse, que abrisse o teto de sua cela e logo ele voltaria para tirá-lo dali. O problema era que Coli dormia na cela 5, localizada em frente à cela 6. O problema era que duas grandes de ferro os separavam, fechadas com cadeado. O problema era que apenas um dos dois tinha verdadeiras possibilidades de sobreviver, porque na cela 6, onde começou o fogo e onde Quique dormia, as chamas estavam a ponto de consumir tudo.

Não disseram nada. No fundo, sabiam que era melhor assim. O que podiam ter dito? As chamas já estavam roçando as costas de Quique, e Coli sabia que, por mais que tentasse dobrar as grades de sua própria cela, localizada na frente da de Quique, jamais conseguiria salvar o amigo. Quando Coli desapareceu em meio ao buraco que havia no teto, Quique fechou os olhos, apertou as grades de sua cela e sentiu que ia morrer.

Quique e Coli haviam se conhecido muitos anos atrás, assim que Coli desertou da Polícia – para lucrar com o tráfico de drogas – em 2002. Coli caiu em 2005, e Quique – por roubo – entrou na granja-penitenciária de Comayagua em fevereiro de 2007. A prisão está localizada a 90 quilômetros a noroeste de Tegucigalpa, a capital do país mais violento do mundo. Dizer que, dentro da prisão, Quique e Coli eram os melhores dos melhores amigos talvez não seja de todo certo. Mas é significativo, que depois do incêndio, os olhos de Coli se ofusquem quando se lembram dessa cena trágica: Quique vencido, aferrado nas grades, com o laranja e o amarelo das chamas ao fundo, a ponto de ser tragado.

Na penitenciária, Quique e Coli se viravam como o resto de presidiários. Nas cadeias de Honduras, como nas de El Salvador ou Guatemala, se sobrevive se tem boas relações com os carcereiros, conseguem-se privilégios por boa conduta ou por dinheiro. Um detento vale o que vale cada centavo que carrega consigo, e em Comayagua esta regra também se cumpria. Para ter um celular ao alcance, por exemplo, eram necessárias 500 lempiras (45 reais). Dormir no beliche se conquistava com o tempo ou com o respeito. Dormir no chão era para os mais novos ou para os menos sortudos.

Em todas as celas havia conectores, extensões e cabos de televisão ou carregadores de celular. Se não fosse porque Comayagua tinha um sistema de reabilitação “modelo”, esta cadeia seria como qualquer outra: uma onde se compram vontades, se sofrem de muitas carências e onde os direitos dos detentos importam apenas aos detentos. O sistema de reabilitação, por outro lado, consistia em ter, durante os sete dias da semana, mão-de-obra barata para trabalhar em um chiqueiro, em uma granja de frangos e em uma estufa.

* * *

A colcha com a qual havia se coberto já tinha se desintegrado: Quique morria enraizado no chão, junto às grades. Em sua cela já ninguém gritava, o cheiro de carne queimada era o de sua própria carne, queimando, e aquilo que não se conseguia distinguir bem eram os gritos nas celas 7, 8, 9 e 10. Ele não sabia disso, mas Coli já havia pulado do teto em direção a uma mercearia que outro detento tinha em um corredor conjugado entre as celas. Quique não se lembra, mas no momento em que os detentos começaram a abrir os tetos das celas e a escapar do fogo saltando entre as chamas, e depois entre os muros, os guardas da prisão disparam para o ar uma e outra vez, prevenindo uma fuga.

Quique não soube a princípio, mas quem chegou com uma tábua para estourar o cadeado de sua cela não era nenhum carcereiro, mas outro detento.

Quique ainda não entende como é que os guardas deixaram que fossem queimados vivos.

Héctor e Jhony

Dentro dessas quatro divisões se respira um cheiro que penetra fundo, mas, um instante depois, o olfato se acostuma. Três dias depois do incêndio em Comayagua, em meio a uma dessas divisões, um dos sobreviventes pega um ovo e o coloca em uma cartela. Depois outro, e outro, e outro. Umas 400 galinhas cacarejavam ao seu redor.

É a primeira vez desde a tragédia autorizam Jhony a sair da penitenciária. Ele não tem dormido bem. Diz que ninguém tem dormido bem lá dentro. Fede carne queimada, e quando fecham os olhos todos lembram o que aconteceu na noite de 14 de fevereiro. “Ninguém consegue dormir. Há uns que ainda se levantam gritando: ‘Abram, que estou queimando, estou queimando!’”.

Jhony é um dos detentos que ganhou privilégios por boa conduta, segundo diz. Entrou na Comayagua quando tinha 20 anos, em 1999. Foi condenado por um assassinato. Este ano completa seu décimo terceiro ano preso.

Por trabalhar na granja, recebe 1.600 lempiras por mês (144 reais), um pouco mais que 84 dólares. Ao meio-dia de sexta-feira (17), Jhony tem uma dúzia de cartelas cheias. Nesta sexta-feira, pela manhã, havia respirado ar fresco pela primeira vez em três dias.

Jhony estaria melhor se no galinheiro estivessem todos os que ali trabalham, mas dois de seus companheiros morreram na cela 7, na noite do incêndio. “Acabo de me dar conta de que perdi os companheiros com quem eu mais trabalhava aqui dentro”, disse.

Um deles era “Ventura”. Faltavam-lhe nove meses para sair da prisão. O outro era “Ponce”. Este ainda não estava condenado. Em Comayagua, apenas 40% dos 897 presos tinham condenação judicial.

Frederick Meza

Presos tiveram que ficar no pátio da penintenciária, em meio ao cheiro de corpos queimados, para curar feridas 

* * *

Na tarde de 14 de fevereiro, Jhony, Ventura e Ponce terminavam uma partida de pebolim junto de outros presos antes que o carcereiro os chamasse para dentro. Ainda que fosse dia do amor e da amizade, na cadeia ninguém celebrou nada, exceto um preso, que conseguiu que os guardas deixassem sua mulher entrar, para que passasse a noite com ele na cela número 10. Horas mais tarde, esse preso se salvaria por milagre, e sua mulher morreria, cozida, dentro de uma pia.

Os guardas chamaram para a reclusão às seis da tarde e, como era costume, contaram um por um os presos das celas 1 a 12. Também se certificaram de que os detentos com privilégios entraram em seus quatros, localizados nas celas contiguas 6 e 5, perto do comando de guarda.

Jhony não lembra que horas o incêndio começou porque, quando acordou, a fumaça o sufocava e uma chama havia entrado pelo teto de seu quarto, um espaço muito pequeno onde só cabia uma cama e um tamborete de madeira. Jhony tentou alcançar suas chaves e seu celular, mas uma chama o empurrou para fora, para o patio que levava até o corredor de celas que se incendiavam.

Do pátio, Jhony viu como o quarto que estava ao lado do seu desabou por completo, e da cela 6 escutou uns gritos: “Ajuda! Fogo! Carcereiro!”

Quando Jhony escutou isso, correu até o portão do comando de guarda, gritando para que os ajudassem, para que os deixassem sair. Pela janela do comando de guarda nenhuma cara se mostrava, tampouco se viu uma só sombra.

O normal, se tudo tivesse ocorrido de forma normal naquele noite, é que, pelo corredor que divide as fileiras das celas, um guarda da penitenciária fizesse rondas a cada 30 minutos, e que um chaveiro (outro guarda) estivesse atento, diante de qualquer emergência, ao comando de guarda. O comando de guarda é a única entrada e saída que a cadeia tem.

Naquela noite, no entanto, e desde que se iniciou o incêndio na cela 6, a cela onde se queimava Quique, nenhum guarda fez suas rondas, e o chaveiro havia desaparecido do comando. Quando Jhony percebeu que ninguém os ajudaria, correu em direção ao pátio localizado atrás das celas que pegavam fogo. Nesse pátio havia umas pias, e perto delas estava o guarda de uma das quatro torres que vigiam a penitenciária. No pátio, também havia outros que, como ele, haviam escapado de seus quartos.

– Ei! Nos dê espaço para pular pelo muro. Não nos deixe morrer! – gritou Jhony para o guarda, mas o guarda respondeu movendo a cabeça em sinal de negação. Jhony lhe pediu três vezes e nas três vezes o guarda impediu que os presos subissem no muro que os separava do lugar do incêndio.

* * *

Nas celas, ainda se escutavam gritos quando Jhony e os outros presos refugiados no primeiro pátio do recinto jogavam água uns nos outros, e jogavam água no chão do pátio para aliviar o calor. Quando a torre de fogo ardia com mais força, ficar parados dentro da prisão era como se estivessem parados, com os pés descalços, em cima de uma chapa quente.

Depois de uns minutos, os detentos privilegiados, ilesos, viram chegar ao pátios outros companheiros que caminhavam devagar, como se estivessem congelados. O primeiro que Jhony viu chegar foi um de seus companheiros da granja de ovos. Chamava-se Nery Padilla.

– Vinha lento, com a calça caída, meio nu. Jogamos água nele e, quando caiu na cara, caiu um pedaço do couro [cabeludo].

“Ai meu Deus!”, murmurava Nery Padilla, com o corpo desfigurado. “Ai meu Deus!”.

Jhony se aproximou de Nery para lhe ajudar, para lhe vestir, para que não agonizasse nu e, quando terminou de colocar uma calça jeans meio chamuscada, ninguém mais se aproximou de Nery.

– Quando toquei nele, caíam as peles do abdome – lembra Jhony.

Depois chegou outro, também queimado. Esse sim vinha completamente nu, irreconhecível. Depois outro, depois outro… nas celas que queimavam ninguém mais gritava nada.

* * *

Ao meio-dia de 17 de fevereiro – dois dias e meio depois da tragédia –, Héctor guardou o carrinho de mão usado para limpar a sujeira das galinhas na granja. Héctor é o único companheiro que restou a Jhony. Héctor trabalha alimentando as galinhas e limpando a granja.

Héctor lembra que, na noite de 14 de fevereiro, às 21h veio um apagão, seguido de outro apagão. Héctor não dorme na parte interna aos muros do presídio, mas justamente atrás do muro, sob uma tenda erguida com sacos de juta, no interior de um porão. Ainda que não possa precisar, acredita que o incêndio e os gritos dos presos começaram por volta das 22h45. Uns 15 minutos depois, o céu já estava iluminado, e logo começou a escutar disparos.

Ao lado da penitenciária, na frente da granja, há um terreno baldio extenso, um campo cercado por um alambrado que ninguém vigia. De tanto se mover entre a granja e a lixeira que há atrás da granja, Héctor concluiu que fugir seria uma tarefa simples, porque há apenas dois guardas nas duas torres do lado direito da penitenciária, a quem custaria mirar um vulto em movimento, entre os arbustos, de noite. Héctor, no entanto, prefere sair livre “em ordem”, e por isso esse pensamento nunca se transformou em plano de fuga para ele, que anda livre pela parte de trás do presídio.

Quando escutou os disparos, na noite do incêndio, se agarrou ao muro, e olhou na direção das oficinas de cerâmica próximas do dormitório dos guardas.

– Os companheiros estavam pulando o muro, fugindo do fogo. Aí caíram, meio queimados, doloridos, uns se quebraram. Ali fora também havia uma fila de guardas os esperando.  Entre esses que pularam e se quebraram estavam Coli e Quique.

*Leia aquia segunda parte da reportagem.

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