S.Paulo sob a lógica do encarceramento fútil

Estudo da USP revela causas do aumento absurdo de prisões. Polícia é incapaz de investigar; Judiciário, na dúvida, condena por preconceito

140722-presidio estadual SP

.

Estudo da USP revela causas do aumento absurdo de prisões. Polícia é incapaz de investigar; Judiciário, na dúvida, condena. Ativistas são vítimas mais recentes

Por Bruno Paes Manso, em seu blog

Já foi dito que as perguntas certeiras são o ponto de partida para boas reportagens e pesquisas. Concordo e já coloco uma questão que há tempos me intriga: como São Paulo (e o Brasil) consegue mandar tanta gente para a prisão se possui uma polícia civil com sérias dificuldades para investigar? Já somos o terceiro País do mundo no ranking de pessoas presas, sendo que nas prisões paulistas há um terço do total de presos nacionais. Como produzimos provas para condenar tanta gente?

As respostas ajudam a decifrar como funcionam as engrenagens dessa fábrica de aprisionamento em massa que estamos construindo em São Paulo e no Brasil. O caso das prisões de Fábio Hideki e de Rafael Marques, detidos sob a acusação de prática de crimes durante os protestos em São Paulo, servem para mostrar a lógica desse mecanismo.

Os dois foram presos no dia 23 de junho numa manifestação na Avenida Paulista durante a Copa do Mundo. A Secretaria de Segurança Pública paulista defendeu a legitimidade das prisões afirmando ter provas de que eles portavam explosivos. Diversas testemunhas afirmaram, no entanto, que o flagrante foi forjado, incluindo o padre Julio Lancelotti, vigário do Povo da Rua, que estava ao lado dos jovens quando eles foram detidos. A SSP rebate e diz que o Ministério Público acompanha de perto as investigações e que os promotores denunciaram Hideki e Marques à Justiça.

Na semanas que se seguiram às prisões, campanhas foram feitas para que os dois fossem soltos, entidades contestaram a legitimidade da ação, o diretor da Politécnica da USP escreveu carta aberta, mil origamis de tsurus (pássaro da sorte) foram confeccionados para libertá-lo, houve manifestações em São Paulo, Guarulhos e Rio, juristas e juízes democráticos reclamaram, funcionários da USP marcharam, uma página no Facebook foi criada e recebeu mais de 6 mil curtidas, além de inúmeros memes que se espalharam pelas redes sociais.

Mesmo com a pressão legítima, baseada em depoimentos e vídeos que contestavam a credibilidade das ações da segurança pública e as decisões da Justiça, nossas instituições não se deram o trabalho de apresentar as supostas provas ou de justificar seus atos de força. Como se não se sentissem obrigadas a prestar contas de seus atos aos cidadãos que pagam suas contas. Talvez porque se sentem intocáveis. Porque acham que somos todos cegos, que não enxergamos os erros que eles cometem.

Mas já é possível juntar as peças. A figura do quebra-cabeças está ficando cada vez mais visível.  A prisão de Hideki e de Marques é apenas a ponta de um profundo iceberg do frágil mecanismo de encarceramento de pobres moradores das periferias. Hideki e Marques foram exceção à regra.

Sem estrutura para realizar investigações competentes, o sistema de Justiça vem condenando faz tempo com base em frágeis evidências. Essa foi uma das principais conclusões da pesquisa feita por Maria Gorete Marques do Núcleo de Estudos da Violência (USP) sobre a aplicação da Lei de Drogas em São Paulo. Boa parte do crescimento do total de presos decorre do aumento da prisão de pequenos traficantes.

Em 2006, havia cerca de 17 mil presos por tráfico. Cinco anos depois, já era 52 mil. Conforme a pesquisa, quase nove entre cada dez prisões feitas no Estado foram ocorrências em flagrante, quando a maioria estava circulando na rua. A maioria (52%) não tinha antecedentes em sua ficha criminal e eram negros e pardos (59%). Na primeira etapa do processo de aprisionamento em massa, a polícia vê um negro em atitude suspeita andando na rua. Ele é abordado e preso em flagrante.

No Judiciário, o depoimento do policial militar que prendeu o suspeito acaba sendo sobrevalorizado. O que ele fala é considerado verdade, mesmo quando a vítima acusa o flagrante de ser forjado. Isso ocorre porque  são depoimentos que gozam de fé pública, termo que define juridicamente os documentos e testemunhos que são dados por autoridades públicas no exercício de sua função. São presumivelmente considerados verdadeiros, o que acaba dispensando a necessidade de provas robustas para a condenação.

Na prática, isso significa que, depois de acusado pelo policial, o suspeito passa a ter que provar a sua inocência. As provas materiais do crime ou outros testemunhos de acusação acabam sendo meros complementos em muitos processos. O que não impede o promotor de acusar e o juiz de condenarem o réu. Na pesquisa do NEV-USP, as autoridades explicaram que a gravidade do crime justificaria a decisão de condenar com base em depoimentos de PMs e em provas frágeis.

Não foi o caso do crime Hideki e Marques. Não eram graves. Eles eram meros bodes expiatórios para que a segurança pública e o judiciário dessem uma resposta aos protestos durante a Copa do Mundo. Eles são black blocs? Só dando risada. Acompanhei o movimento e sei sobre os dois presos. Essa afirmação é ridícula. Mas qual é o ponto nevrálgico da questão? Depois de anos e anos prendendo e condenando por nada, nosso sistema já estava acostumado a engolir acusações mal feitas. Qual o problema em condenar mais dois sem que haja provas?

Será que eu estou sendo injusto com nosso sistema de segurança e de Justiça? Há apenas dois meses, eu me deparei com um caso emblemático que foi publicado neste blog em maio. Foi a história de José, um jovem negro de 17 anos que estava em seu apartamento num sábado à noite. A PM perseguia quatro assaltantes de carro pelas ruas. O grupo bateu em um poste durante a fuga, mas tiveram tempo de descer do carro e correr dos policiais. Os PMs acharam que um dos jovens havia subido em um edifício que ficava perto do local da batida. Era onde José morava. Falaram com o porteiro, invadiram o apartamento do garoto às 2 horas da manhã e o prenderam.

José tinha provas de que havia saído de casa somente para fumar no portão. As imagens das 19 câmeras do edifício eram claras. Batom na cueca. Mesmo assim, José continuou preso. O promotor pediu sua condenação e o juiz bateu o martelo. No processo, sobre as imagens que provavam a inocência do acusado, foi afirmado que o “condomínio não tinha fé pública”. O testemunho dos policiais foi suficiente para prendê-lo e condená-lo. As imagens de nada adiantaram. José foi solto apenas depois que a reportagem mostrou neste blog as provas de sua inocência. A Justiça foi forçada a soltá-lo no mesmo dia.

A sociedade merece respostas sobre o flagrante e as provas contra Hideki e Marques. As polícias demandam reformas urgentes. O Estado pode nos tirar os olhos, mas isso não significa que estamos cegos. Segue abaixo, aliás, o belo vídeo feito pela Ponte sobre Alex e Sérgio, fotógrafos baleados durante manifestações.

Leia Também:

2 comentários para "S.Paulo sob a lógica do encarceramento fútil"

  1. vera vassouras disse:

    Vamos aos fatos: são políticas de genocídio nas quais o judiciário e o ministério público são atores, co-atores e carcereiros. Observe-se o fato ridículo de funcionários do estado comparecerem como testemunhas de acusação de delitos que não acompanharam. Observe-se o fato de que os pedidos de liberdade dos pobres levam meses para serem julgados e, virtualmente, pois ninguém mais tem responsabilidade funcional e são indeferidos sob os mesmos argumentos usando-se as teclas copiar e colar. Ademais, se existisse responsabilidade, verificariam que são as famílias de políticos e diretores os escolhidos a prestar serviços nas penitenciárias, por exemplo, na área da alimentação. E não se pode olvidar de que a desumanidade no encarceramento é oriunda de uma indubitável pederastia, de cunho nazista. É preocupante quando renomados juristas limitam-se a assinar protestos, enquanto se calam diante da barbaridade de manter prisioneiros dois jovens que, por um azar do destino, não conseguiram conduzir um foguete. De delito culposo a crime doloso, de direito à manifestação: formação de quadrilha. O sistema prisional brasileiro não está administrado por quadrilheiros? Quantas mortes e quantos futuros ainda destruirão apenas para satisfazer a morbidez bárbara dessa gentalha que anda não perdeu o rabo nem as mandíbulas? Repito: somente uma nova Constituição poderá, quem sabe, conceituar e criminalizar as quadrilhas institucionalizadas, os exterminadores do futuro, imunes, impunes e sustentados por aqueles que vão matar, por ação e omissão.

  2. amarildo garcia disse:

    Muito oportuna esta discussão. Mas é bom lembrar que não vivemos no Brasil um verdadeiro estado de direito democrático. Vivemos num estado latente de guerra civil, porque se matam neste país quase 60 mil pessoas, as cadeias, presídios e penitenciárias estão superlotados de uma massa de miseráveis, sem defesa, gente que sempre foi excluída de tudo. A polícia que temos – civil ou militar – são inúteis. A civil nada investiga. A militar é só violência, talvez seja uma trágica herança da ditadura militar, que nos persegue. Você já acompanhou audiências nas varas criminais de sua cidade? Vá ter essa experiência. Ver quem são as pessoas que estão presas, entender por que elas estão presas, ver quem as defende. Você tem dois tipos de presos nos presídios brasileiros: esses coitados, que, excluídos de tudo, acabaram presos e condenados; de outro, a elite, os membros do PCC, Comando Vermelho & outros, que são intocáveis, que o governo – particularmente o de São Paulo – trata com deferência. Veja Guarulhos – o cartão de visitas da cidade, logo na sua entrada, não são escolas bonitas e suntuosas, são presídios. Quem vai para o Aeroporto Internacional de Cumbica pode apreciar aquela paisagem sui generis. O estado faliu há muito tempo. A esperança era a esquerda, que não tivemos, quer em níveis municipal, estadual e federal. Sem direito a educação, saúde, acesso a bens, emprego decente, tratamento digno, essas pessoas acabam vivendo encarceradas. Vivemos uma grande mentira no Brasil, a mentira que temos democracia, a mentira que temos justiça, que temos direito, que temos um estado organizado. Nós temos muita roubalheira, muita exclusão e muita injustiça. Nem Franz Kafka imaginou um cenário tão fértil para escrever seus clássicos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *