Reportagem em Afuá, a singela Amsterdam brasileira

Na ilha de Marajó, uma cidade de 35 mil habitantes convive em harmonia e frugalidade com a floresta, o rio-mar e um meio de transporte universal: a bicicleta

Por André Julião, na National Geographic

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Na ilha de Marajó, uma cidade de 35 mil habitantes convive em harmonia e frugalidade com a floresta, o rio-mar e um meio de transporte universal: a bicicleta

Por André Julião, na National Geographic

À media que ganho velocidade, o calor diminui. O incômodo causado pelo suor se dissipa com o vento que bate no rosto. Pedalar ajuda a organizar as ideias, refresca os pensamentos. É um exercício que minimiza minha condição de forasteiro. Demorei a perceber isso. Para entender um pouco melhor das coisas do trânsito e da geografia locais, até aquele dia eu insistia em andar a pé, atônito em meio ao rush de duas rodas e a algaravia de assobios, o código usado pelos ciclistas para avisar aos transeuntes de sua passagem. Depois de sofrer por dias com o clima quente, o raciocínio traindo-me e o corpo sem querer sair debaixo do chuveiro frio, começo a me sentir confortável. Por causa da bicicleta.

O veículo faz parte da identidade de Afuá, no noroeste da ilha de Marajó, por cujas ruas pedalo cada vez mais rápido. Nessa “Veneza marajoara”, a bicicleta é uma resposta criativa a uma limitação da cidade – ou uma vantagem, a depender do ponto de vista. Como foi erguida sobre plataformas de madeira, de forma a não ser inundada pelas cheias dos três rios que a cercam, Afuá provavelmente é o único município brasileiro onde carros e motos são proibidos em toda sua extensão. Isso a tornaria a única cidade livre de emissões de gases de carbono, não fosse a energia elétrica gerada da queima de óleo diesel. Não é difícil crer que, à exceção dos bebês, cada um dos 35 mil habitantes de Afuá tenha uma bike.

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A bicicleta é protagonista da existência de um afuaense desde seu nascimento. Pelas ruas, a cena é comum: uma mãe carrega seu bebê no colo enquanto, ela mesma, é conduzida na garupa. Um garoto de 4 anos anda de pé ali atrás, apoiando-se no ombro do pai ou do irmão mais velho. Aos 7, já pedala modelos grandes para ir à escola ou ao jogo de futebol. Na adolescência, a bike o conduz a passeios com a primeira namorada. Adulto, segue para o trabalho ou para casa até sair para pedalar com a mulher grávida e, no futuro, com o filho, que, por sua vez, aos 4 anos…

Essa era a doce vida do morador Sarito Souza, de 45 anos, que adorava carregar todos os filhos a bordo de sua Monark barra dupla circular. O problema é que o número de rebentos foi aumentando e, quando chegou a oito, a bicicleta já não dava conta. Premido pela necessidade, Souza teve a grande ideia: soldar duas delas – uma na outra. Instalou bancos mais confortáveis e uma cobertura para proteger do sol e da chuva, duas forças que competem em intensidade na Amazônia. Nascia assim, em 1995, o “bicitáxi”. Quando os filhos estavam na escola, ele fazia corridas para quem não tivesse bicicleta. Durante a semana, faturava até 40 reais por dia. Nos sábados, domingos e feriados, a renda dobrava.

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Com o tempo, sua criação virou mania nas ruas da cidade. Hoje, várias oficinas fabricam o veículo, chamado por alguns afuaenses empolgados de “carro”. Certos modelos chegam a ter carenagem de jipe em miniatura. Ninguém, porém, jamais sucumbiu aos combustíveis fósseis. Nem aos pequenos motores elétricos. Por mais elaborados que sejam, os bicitáxis usam apenas a energia física de seus donos. (Novos modelos servem para o transporte de açaí, indiretamente seu combustível, já que é a base da alimentação dos moradores, assim como o camarão.)

Por mais que tenha contribuído para a economia local, Souza não detém patente, apenas a fama pela invenção. Volta e meia é visitado por equipes de TV, revistas e jornais para exibir a inovadora tecnologia marajoara. Uma de suas fontes de renda são os equipamentos de som que customiza para os bicitáxis. Os alto-falantes, depois de instalados, anunciam ofertas, produtos e aspirantes a políticos em época de eleição. Mas a principal serventia é permitir ao condutor ouvir, enquanto pedala, o tecnobrega, o zouk e as versões eletrônicas da música sertaneja que ali são adaptadas ao ouvido local: ganham mais velocidade, mais graves, mais agudos, mais tudo. As músicas são baixadas de graça da internet por uma população cada vez mais conectada.

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Um bicitáxi estacionado em um bar que só vende bebidas destiladas. A falta de emprego é uma das razões do alcoolismo. A expansão da cidade pode gerar mais postos de trabalho, assim como agravar os problemas sociais – Foto: Maurício de Paiva

Veículo bonito, equipamento de som potente, computador mais atual: ambições como as de tantos brasileiros. Uma delas, apenas, é imposta pela geografia. Em Afuá, as primeiras bicicletas apareceram nos anos 1970. Até que, nos idos de 1990, vieram as motocicletas. “Quem tinha uma não respeitava nem pedestre nem ciclista”, lembra-se Souza. A proibição veio logo. Além do risco de acidentes e da poluição, as motos – bem mais pesadas que as similares movidas a pedal – desgastavam as passarelas de madeira em menos tempo. Não demoraram a ser banidas.

Na cidade das bicicletas, os endereços não são nem avenidas nem ruas, mas sim rios, igarapés, furos e outras bifurcações fluviais corriqueiras para aqueles que vivem à margem dos rios – no caso, afluentes do Amazonas. Assim, em um sábado ensolarado, Souza leva-me em uma jornada de voadeira (barco de alumínio com motor) ao “interior”, como chamam as comunidades distantes da sede do município. Tais lugares resumem-se a poucas casas à beira de um rio de água cristalina. O tamanho dessas vilas contrasta com a magnitude do ambiente em que estão inseridas, onde só cabem superlativos: Amazonas, a maior bacia hidrográfica do mundo; Marajó, a maior ilha fluviomarinha do planeta. Tudo cercado pela maior floresta tropical da Terra.

Chegamos à vila Tessalônica. Ali, o movimento de avanço e recuo do rio, com frequência, revela fragmentos de cerâmica marajoara, como vasos com grafismos complexos concebidos por povos ancestrais. Sem resgate apropriado, as peças acabam destruídas pela ação da água e do sol. Os guardiões desse tesouro são apenas os moradores – assim como em tantos lugares na ilha de Marajó, onde se encontram vestígios arqueológicos. Logo avisto a parte exposta da boca de uma urna, suficiente para comprovar que ali caberia um crânio e outros ossos humanos.

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Não é preciso nenhuma relíquia dessas, porém, para entrar em contato com um modo de vida antigo. O açaí é peça viva do quebra-cabeça histórico da ocupação humana na Amazônia. O fruto, consumido em toda a região ainda hoje, já servia de alimento a civilizações que tiveram seu apogeu na Amazônia por volta do ano 1000.

No retorno à vila onde passado e presente se sobrepõem, paramos na casa de Caetano Gonçalves, coletor que mora tão próximo do rio quanto dos pés da fruta, em um arranjo perfeito para colher e vender a mercadoria às grandes embarcações que chegam à porta de sua casa. Ele nos recebe com alegria, embora lamente não estar a nossa espera. “Se tivessem avisado que viriam, eu teria batido açaí para todo mundo”, diz.

A polpa roxa de textura aveludada e sabor marcante é comprada em qualquer esquina de Afuá, em média, a 2 reais o litro. Em 2010, o município produziu mais de 4 mil toneladas do fruto, movimentando cerca de 4,5 milhões de reais. Fonte de nutrientes como cálcio, ferro e potássio, o alimento é ainda mais farto e barato que o camarão de água doce, que alguns moradores vão ao rio, eles próprios, pescar com matapi, uma armadilha feita em fundo de quintal.

Assim como o açaí, o crustáceo está arraigado na cultura local. Há 30 anos a cidade promove o Festival do Camarão. No fim de julho, a população dobra por causa da chegada de turistas, ávidos pelas atrações musicais e pela “batalha camaroeira” – uma criação mais recente. Nesse embate, as agremiações de camarão Convencido e Pavulagem disputam quem faz a melhor apresentação, com base em vários critérios, nos moldes da festa amazonense do boi de Parintins.

 

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