O chamado do cacique Raoni

Aos 93, o grande lutador reúne 800 indígenas em Cuiabá e convoca novas lutas. Derrotar o “marco temporal”. Rechaço às parcerias agrícolas nos territórios. Mais recursos para a saúde dos povos. E mensagem a Lula: “aguardamos sua chegada”

(Foto: Kamikiá Kisedjê/Cobertura Colaborativa)
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Por Keka Werneck, na Amazônia Real

Em uma carta assinada por 54 lideranças, povos indígenas exigem do Estado brasileiro “uma posição concreta” sobre o marco temporal, proposta que restringe a demarcação de terras indígenas ao tentar limitar o processo às áreas ocupadas pelos povos até a promulgação da Constituição de 1988.

O documento é resultado da segunda edição de O Chamado do Cacique Raoni, um grande encontro de lideranças realizado entre 24 e 28 de julho, na aldeia Piaraçu, território Kayapó em São José do Xingu, no Mato Grosso, na Amazônia Legal. Aos 93 anos, Raoni é mundialmente reconhecido e respeitado pela defesa dos povos originários e da Amazônia. 

O encontro atraiu 800 indígenas de todo o país e teve a tese do marco temporal como a principal pauta de debates. “Ao restringir a demarcação apenas às terras indígenas que estavam estabelecidas antes de 5 de outubro de 1988, fica ignorada nossa memória e história por ações de colonizadores, latifundiários e empreendimentos econômicos de deslocamentos forçados, violências, massacres e expulsões vividos em nossos territórios tradicionais, o que resultou em perdas irreparáveis para nossas culturas e modo de vida”, diz a carta

Os indígenas exigem que o Ministério da Justiça cumpra o papel de demarcar as terras indígenas, dando prioridade às judicializadas e em situação de risco, como os territórios dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Reivindicam também a desintrusão imediata de todas as terras indígenas já demarcadas e homologadas e a proteção para garantir direitos previstos em lei e tratados internacionais.

Quanto ao garimpo, pedem respeito aos limites legais no entorno dos territórios e, dentro deles, a destruição de todas as formas de extração, a expulsão de invasores e a responsabilização de seus financiadores. Pedem ainda testagem em massa de indígenas, para verificar contaminação por mercúrio.

Os participantes repudiam qualquer arrendamento ou parceria agrícola dentro de terras indígenas e defendem uma espécie de auditoria do que já existe em relação ao mercado de carbono nos territórios.

Outra questão reivindicada é a ampliação do orçamento e o fortalecimento do Ministério do Povos Indígenas, da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Instituto de Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama); do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade – ICMBio; da Defensoria Pública da União (DPU); do Ministério Público Federal(MPF), da Secretaria de Especial de Saúde Indígena (Sesai) e que seja criada a Secretaria Especial de Educação Escolar Indígena no Ministério da Educação. Reivindicam também concursos para contratação de servidores para a Funai e a Sesai, com cotas para indígenas.

Após as reflexões iniciais do evento, Raoni gravou um vídeo direcionado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao lado de quem subiu a rampa do Palácio do Planalto na posse, em janeiro. “Ouça-me, aqui já estão todas as lideranças aguardando sua chegada, eu peço que venha logo”. 

Com o vídeo, ele cobrou o compromisso firmado entre os dois em Brasília, na posse. “Eu não sou criança, somos da mesma geração, somos adultos. Antes que fiquemos velhos demais precisamos conversar sobre as terras indígenas para os parentes viverem em paz nas suas terras, para que garimpeiros e madeireiros não invadam as terras indígenas. É nisso que eu acredito! Por isso você tem que vir. Essa é a minha mensagem para você”, disse. 

O presidente não esteve presente devido a dores na cabeça do fêmur. Ele informou na live semanal “Conversa com o Presidente” que vai passar por uma cirurgia em outubro e nos últimos dias foi submetido a dois procedimentos, no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, para aliviar as dores. 

Lula foi representado pela ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, que chegou, nesta sexta-feira (28), à aldeia Piaraçu, junto com as deputadas Célia Xakriabá (PSOL) e Juliana Cardoso (PT). Foram recebidas pelo cacique e por mulheres indígenas de todo o país, assim como a presidente da Funai, Joenia Wapichana, que já participava do evento desde quinta-feira (27). 

Joenia havia afirmado à Amazônia Real que a Funai estaria presente para ouvir e responder às demandas e que encaminharia a carta assinada pelas lideranças ao governo. Ela disse também que “a Funai tem a obrigação de fazer cumprir a política indigenista, já reconhecida em lei e de extrema importância para a vida dos povos indígenas.”

No evento, a presidente da Funai apresentou o documento de aprovação do relatório do estudo de regularização e delimitação da Terra Indígena Kapot Nhinore, território Kayapó no norte do Mato Grosso e parte do Pará. O local delimitado abriga a aldeia onde o cacique Raoni nasceu e é uma área sagrada para o povo Kayapó. O anúncio foi feito durante a recepção à ministra Sônia Guajajara.

Respondendo aos questionamentos, ela alegou que “o que não acontece não é falta de comprometimento, mas falta de estrutura, porque ainda estamos trabalhando com planejamento e orçamento do governo passado. Ainda estamos em reconstrução”. A ministra garantiu que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC III) terá obras positivas para os povos indígenas.

Diante delas, Raoni disse que as apoiou quando foram indicadas para os cargos que estão ocupando e que vai cobrar resultados. Ele agradeceu as presenças. “Todos que estão aqui hoje, apoiadores, governo, Justiça, comunidade e caciques: acredito que estamos formando uma aliança muito forte. Eu penso que nós precisamos fazer o presidente Lula assumir um compromisso com os povos indígenas que os próximos presidentes vão precisar cumprir. Eu comecei a minha luta há muito tempo e hoje posso acreditar que não estou sozinho”.

Também estiveram presentes o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Herman Benjamim, e o defensor público Igor Roberto Albuquerque.

Lideranças presentes

Outra liderança presente, o cacique Kayapó Megaron Txucarramãe, já havia denunciado à Amazônia Real a tentativa de estabelecer 1988, o ano da promulgação da Constituição Federal, como marco temporal para definir o direito dos povos indígenas às suas terras. “Não chegamos aqui agora, não chegamos aqui em 1988, não chegamos aqui nem em 1500. Sempre estamos aqui, então não tem que mexer nisso, em marco nenhum”. 

Geovani Krenak, do povo indígena Krenak, de Minas Gerais, exaltou o momento marcante. “Estou aqui, nesse importante evento, em que estamos tratando de várias questões, do fortalecimento das nossas culturas e dos problemas que estamos enfrentando com as mudanças climáticas”. Para ele, o cacique Raoni é inspiração que deixa grande legado aos guerreiros mais jovens. “Ele nos inspira a permanecer na luta, que ele tem feito no Brasil e fora do Brasil”.

De Roraima, o xamã e líder político do povo Yanomami, Davi Kopenawa, presidente da Hutukara Associação Yanomami, falou sobre cosmologia ancestral e as concepções dos indígenas sobre o universo e suas forças. Ele é um grande defensor da união entre os indígenas. Sobre Raoni, destacou que foi seu grande orientador político. “Me ensinou a lutar contra o garimpo, contra a mineração e desmatamento”.  Às autoridades presentes, ele reivindicou pressa.  “Governo, Funai, Ibama e Exército precisam se mexer. Ninguém está morrendo de fome, estamos morrendo de doenças do garimpo ilegal”.

A pajé Mapulu Kamayurá, uma das grandes lideranças femininas indígenas, do Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, expressou sua preocupação. “Gente, se deixar matar floresta, não vai chover, nós vamos sofrer, nossa muda não vai nascer, a gente não pode perder cultura e tem que respeitar a luta do nosso cacique Raoni”.

Do Xingu para o mundo

Todas essas questões aparecem no manifesto que deve correr o mundo ao denunciar o marco temporal como uma ameaça planetária. A mensagem é um alerta geral. “Estamos muito preocupados com a situação territorial não somente dos povos indígenas que habitam a região amazônica, mas também das demais regiões do Brasil e do mundo”, dizem as lideranças.

Além disso, ressaltam que mudar o marco temporal é uma violação aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração dos Povos Indígenas da ONU e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

Durente o evento, Raoni recebeu uma carta assinada pelo rei britânico Charles III citando o líder Kayapó como “impressionante exemplo” a ser seguido. O documento chegou às mãos do cacique por meio da encarregada de negócios da Embaixada do Reino Unido no Brasil, Melanie Hopkins.

Fiquei muito entusiasmado em saber que a organização britânica Global Canopy está dando suporte ao evento em julho deste ano para honrá-lo por seus feitos globais memoráveis e para encorajar a próxima geração a seguir seu impressionante exemplo. Sua voz tem sido fundamental no Brasil, e no mundo, em esforços para preservar a Amazônia e em seu apoio aos direitos de todos os povos indígenas”, disse Charles. “Durante minha própria visita à Amazônia em 2009, testemunhei em primeira mão os profundos impactos do desmatamento e das mudanças climáticas na floresta tropical e nos povos e comunidades indígenas que ali residem. Também me lembro com apreço de nosso encontro no mesmo ano no magnífico Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde conversamos sobre o desejo compartilhado de ver a Amazônia protegida, e o prazer que mais tarde tive em recebê-lo na Clarence House”.

O cantor Sting também manifestou apoio ao Chamado do Raoni. Ao lado de sua mulher, a atriz Trudie, ele gravou vídeo em que reforça a importância da floresta para regular o clima no mundo e elogia a “integridade espiritual e cultural” do cacique.

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