SP: Um quilombo em luta contra o isolamento

No Vale do Ribeira, quilombolas exigem que o estado cumpra decisão judicial e construa uma estrada na região. Acesso ao território é árduo: requer contornar desfiladeiros e atoleiros. Falta luz elétrica e atendimento médico é precário

Edmilson Furquim, coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas, acompanha trecho inicial da trilha até a comunidade 📷 Júlio César Almeida/ISA
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Por Isabella Pilegis, no ISA

O caminho até o Quilombo Bombas, no Vale do Ribeira (SP), começa em uma viagem ao coração da Mata Atlântica. A partir da cidade de Iporanga (SP), a jornada é feita por uma estrada de faixa única, que contorna o relevo montanhoso e faz o carro dançar pelas curvas.

Aos poucos, um bananal de proporções gigantescas, que se estende por longos trechos do Vale do Ribeira, vai dando lugar, à direita do asfalto, ao longo e caudaloso Rio Ribeira de Iguape, que nomeia a região.

Dirigindo na contramão do fluxo das águas, passamos por diversas comunidades quilombolas, que tecem nosso caminho acompanhando o rio, como as miçangas e o fio em um colar de contas.

Nesses momentos, o melhor é deixar o ar condicionado desligado e abrir as janelas do carro para deixar entrar o ar puro da Mata Atlântica, que preenche com facilidade os pulmões e convida a conhecer as belezas do Vale do Ribeira.

Nosso destino é o Território Quilombola de Bombas, a 5 km de Iporanga, que se divide em duas áreas: Bombas de Baixo e Bombas de Cima. O acesso ao quilombo parte da Reserva Betary, espaço destinado à educação ambiental e pesquisa científica.

Do início da trilha até a comunidade Bombas de Baixo são 6 km de caminhada, e a travessia para Bombas de Cima segue por mais 4 km em mata fechada.

Aqui, a natureza exuberante do maior maciço de Mata Atlântica do país, com abundância de espécies vegetais valorizadas pelo mercado de plantas das grandes cidades e tantas outras pouco conhecidas nos centros urbanos, divide espaço com uma dura realidade.

Em alguns trechos, a trilha contorna desfiladeiros, e em outros, como no chamado ‘barro preto’, o chão de terra batida dá lugar a um atoleiro, que persiste mesmo em dias mais secos.

“Teve uma melhoria quando a comunidade fez umas mudancinhas no caminho, mas com o tempo vai ficando cada vez pior. Lá no Barro Preto, ela ia por dentro da vala e o caminho mudou também. Agora, pega um pouco de sol, porque ela é úmida, né? Ela nunca seca”, relembra João Fortes, liderança comunitária.

Além de prejudicar as condições da trilha, a chuva também causa um aumento do nível do rio que atravessa o caminho, dificultando ainda mais a passagem.

Edmilson Furquim, coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas, conta que acidentes envolvendo animais de carga e transporte também são comuns na trilha.

“Pra aprender a andar de bicicleta eu levei dois tombos, mas de burro já cai mais de 30. É um tombo atrás do outro”.

Além de comprometer o direito básico de livre circulação de quilombolas, a ausência da estrada impossibilita o acesso a serviços básicos e a execução de melhorias na infraestrutura da comunidade.

No quilombo, a coleta de lixo é inexistente e os recursos hídricos utilizados nas casas são provenientes de cursos d’água próximos. Não há linhas de transmissão de energia elétrica e os moradores contam com geradores e sistemas fotovoltaicos para abastecer temporariamente as residências.

Até 2014, os agentes de saúde faziam atendimentos no quilombo, mas um acordo feito entre o Conselho Municipal de Saúde e o Ministério da Saúde e o Departamento Regional de Saúde suspendeu a atuação dos profissionais de saúde no território e determinou um atendimento mensal à comunidade na UBS Dr Thomaz Antonio Cunha Cardoso de Almeida, em Iporanga.

Registro do antigo posto de saúde, hoje desativado, no Quilombo Bombas, Vale do Ribeira (SP) 📷 Raquel Pasinato/ISA

“Para nós fazermos um trabalho de excelência em Bombas tem que ter o acesso. Aquilo lá pra nós é um caminho, não é um acesso. […] Eu não posso colocar a equipe em risco”, diz Hélio Rodrigues Lopes, secretário de saúde do município de Iporanga.

“Antigamente os médicos vinham, mas agora já não vêm mais. Daí eu pergunto ‘será que nós não tem o perigo de se machucar também? De uma cobra picar a gente?’”, questiona Edilaine Ursulino, da Comunidade de Bombas.

Antigamente os médicos vinham, mas agora já não vêm mais”, diz Edilaine Ursulino com o filho Bruno, de dois anos 📷 Júlio César de Almeida/ISA

A jovem quilombola, que ainda era adolescente quando a luta pela construção da estrada teve início, também pede pelo retorno dos atendimentos à saúde na comunidade.

“Já mudaria bastante o futuro dos que estão vindo, né? Eu quero que eles tenham um futuro a mais do que eu”.

Quase uma década sem estrada

Em 1958, o Governo de São Paulo instituiu o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR), sobreposto ao território tradicional, mas foi na década de 1980 que ocorreu a demarcação física do perímetro.

A sobreposição do parque limita a autonomia da comunidade no manejo sustentável da vegetação para as práticas tradicionais, em especial para as roças, e dificulta a permanência no quilombo.

“Os parques, a exemplo do PETAR, são criados com fundamento na lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Segundo essa lei, não poderia haver ocupação humana, com residências, nos parques. Mas o direito constitucional quilombola ao território se sobrepõe ao SNUC, garantindo a permanência de quilombolas”, conta Fernando Prioste, advogado popular no Instituto Socioambiental (ISA).

Sobreposição do PETAR ao território escancara racismo ambiental

Em 2015, uma determinação [link] do Poder Judiciário obrigou o Estado, na figura da Fundação para a Conservação e a Produção Florestal, a construir uma estrada conectando o Quilombo Bombas à Rodovia Antonio Honório da Silva, o que ainda não aconteceu.

Há três anos, a Fundação Florestal realiza tímidas ações para viabilizar a construção da obra. Em 2022, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) disse serem necessários estudos mais aprofundados, uma vez que a Lei da Mata Atlântica determina a realização de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) para construção do traçado da estrada proposto pela Fundação Florestal.

“É muita coisa que eles ficam jogando em cima de nós. Fica parado, daí depois volta de novo dizendo que vai fazer outro estudo para poder liberar e nada. Ficamos aqui feito bobo, esperando”, reclama Laíde Ursulino, moradora do Quilombo Bombas.

Para Edmilson Furquim de Andrade, coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas, a sensação que fica é de descaso do poder público com o bem viver da comunidade.

“É uma dificuldade imensa. Há quanto tempo nós estamos correndo atrás disso? O que eu aprendi, de 2014 para cá, o que eu vivenciei, se não fosse meu antepassado que lá atrás passou essa segurança para nós, eu acho que não aguentaria”.

O traçado aprovado para construção da estrada vai apenas até a comunidade de Bombas de Baixo, deixando os moradores e a escola de Bombas de Cima a parte desse direito.

“Isso não tá certo. Deus mandou o sol pra todos. A maioria do povo mora lá em cima. Se a estrada chega até aqui embaixo, porque não pode chegar até lá em cima?”, questiona Suzana Pedroso do Carmo, moradora do quilombo.

Esta não é a primeira vez que a comunidade quilombola de Bombas precisa lutar durante longos períodos para fazer cumprir os seus direitos.

Em 2002, a Associação dos Remanescentes do quilombo de Bombas, solicitou ao Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) seu reconhecimento como quilombo, o que só aconteceu 12 anos depois.

Foi em novembro de 2014, nove meses após a Defensoria Pública do Estado entrar com outra ação judicial, esta pedindo reconhecimento imediato do território, que esse direito foi assegurado à comunidade.

Agora, os quilombolas de Bombas buscam a titulação definitiva do território, direito exercido a apenas seis das 36 comunidades quilombolas do Vale do Ribeira.

Fernando Prioste explica que a lentidão no cumprimento das ações judiciais também é uma manifestação do racismo arraigado no aparato estatal e na sociedade brasileira.

“A ausência da estrada, a demora em cumprir a decisão judicial e todas as demais dificuldades vivenciadas pela comunidade quilombola de Bombas estão estruturadas a partir do racismo. As estruturas de poder do Estado de São Paulo não estão direcionadas, minimamente, para viabilizar a quilombolas condições de vida que o Estado oferece à parcela branca da população. Nas lutas pelo combate ao racismo, as comunidades quilombolas já obtiveram muitas conquistas, inclusive o direito de serem tratadas e vistas pelo Estado como quilombolas, assim como o direito constitucional à titulação definitiva de suas terras. Mas ainda há muito a ser feito para efetivamente garantir direitos e superar o racismo”.

O futuro pede passagem

Os quilombolas também denunciam que a dificuldade em acessar serviços básicos, como educação, saúde e emissão de documentos, têm contribuído para uma mudança na ocupação do território tradicional.

O Quilombo de Bombas já contou com 90 famílias no território. Hoje, 24 núcleos familiares residem na comunidade e muitas construções ficaram vazias.

Casa de pau a pique abandonada no Quilombo Bombas há quase quatro décadas 📷 Júlio César de Almeida/ISA

“Nós vemos pessoas crescerem, pessoas irem embora. A sensação é ruim porque você sabe que a pessoa tá numa esperança de ver aquilo acontecer. Você fala ‘Pô, fulano tava tão animado, será que vai acontecer o mesmo comigo?’. E tem aquele que morre e não viu cumprir, é pior ainda. Aí dói um pouco”, lamenta Edmilson.

Apesar da luta, ele tem confiança de que a construção da estrada permitirá o retorno de muitas famílias quilombolas que hoje vivem na cidade, e com isso o crescimento da população e a preservação de sua cultura e tradição ancestral.

“Mesmo com as dificuldades, pra nós é um orgulho ser quilombola. […] Com a construção da estrada muitos vão permanecer aqui, o desejo deles é de permanecer”.

Sem quilombo, não tem quilombola

Rodrigo Marinho Rodrigues da Silva, da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (EAACONE), lembra que o processo histórico de colonização no Brasil levou a uma simplificação do olhar da sociedade sobre as comunidades quilombolas, o que desconsidera suas tradições.

“É fácil ver essas coisas num bate-pronto ‘não tá dando certo, tira a pessoa de lá’, mas isso desconsidera toda a memória e identidade de um povo. A questão quilombola foi reconstruída no Brasil a partir do espaço territorial, porque é nesses espaços que essas comunidades conseguem desenvolver todo o bojo de diversidade cultural que a ancestralidade nos deixou.”

Rafaela Miranda, advogada popular da EAACONE, destaca que a vivência quilombola e a preservação dessa cultura ancestral depende da relação dos moradores entre si e com seu território tradicional.

“A gente tá buscando isso, que a gente possa ser respeitado, possa estar permanecendo naquilo que nos faz bem, que é estar no território. O quilombo não existe sem o território e a gente também não existe sem as pessoas que estão ali”.

Ela também lembra que os moradores do Quilombo Bombas, assim como os de tantas outras comunidades quilombolas que se encontram no caminho até Iporanga, tem uma relação com o território que ultrapassa os limites estabelecidos durante os processos de reconhecimento dos quilombos.

A divisão dos territórios e o estabelecimento de regras para uso e ocupação destas áreas não é uma invenção quilombola, povo marcado pela forte presença da tradição oral, mas uma herança dos processos de colonização ocorridos em África.

“Antigamente, nossa dinâmica comunitária era diferente. Eu não vivi isso, mas meus pais viveram. O nosso povo sempre foi muito itinerante, era uma troca entre os territórios. A instituição do PETAR deixou vários passivos para as comunidades, dentre eles, que acabaram separando os territórios, o que também gerou distanciamento entre as comunidades. Hoje, a articulação é via estrada, e quando não tem esse acesso, (isso) fica muito prejudicado”.

Rafaela ainda ressalta que a resistência da população quilombola passa pela permanência no território, preservação das dinâmicas sociais existentes e garantia de autodeterminação das comunidades quilombolas enquanto povo.

“A (construção da) estrada de Bombas é uma luta de todos nós. […] O povo quilombola é um dos primeiros povos contra-coloniais do Brasil. É um grupo histórico, e de futuro, porque a gente continua aqui, reafirmando e continuando isso”.

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