Por que romper com a “monotonia alimentar”

Pobreza nutricional e crise climática exigem diversificar cultivos e comida. Até as instituições que ajudaram a propagar modelo atual admitem que ela se esgotou. E futuras pesquisas devem apoiar-se na relação com ecossistemas locais

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Por Ricardo Abramovay, em A Terra é Redonda

A simplificação das paisagens agropecuárias é a base em que repousa o sistema alimentar contemporâneo. Seis produtos (arroz, trigo, milho, batata, soja e cana-de-açúcar) respondem por mais de 75% das calorias vegetais oferecidas globalmente. Esta concentração representa um gigantesco risco à segurança alimentar global, sobretudo pela intensificação dos eventos climáticos extremos. Além disso, a riqueza calórica desta monotonia contrasta com a deficiência em micronutrientes que marca a alimentação de bilhões de pessoas globalmente. O paradoxo da obesidade em meio à má nutrição exprime bem a unidade entre monotonia agropecuária e monotonia alimentar.

Mas existem soluções alternativas a este cenário que “aumentam a qualidade das dietas e da nutrição, ao mesmo tempo em que reduzem a dependência global com relação a algumas culturas básicas (staple foods) e aos países que dominam suas exportações”.

Este diagnóstico e as propostas de diversificação que dele decorrem não seriam tão relevantes se não se originassem na instituição que reúne, há mais de cinquenta anos, as principais organizações de pesquisa agropecuária do mundo, o Consultative Group on International Agricultural Research (CGIAR). Num artigo publicado no diário britânico “The Telegraph” (23/10/2023), Shakuntala Haraksingh Thilsted e Ismahane Elouafi mostram que a oferta alimentar global seria mais resiliente e nutritiva se fosse diversificada. Ambas pertencem ao CGIAR e Elouafi acaba de assumir sua direção.

O CGIAR, criado com apoio da Fundação Rockfeller e da Fundação Ford, foi um dos principais vetores de difusão global das tecnologias da Revolução Verde e dos métodos pelos quais sementes de alta potencialidade ampliavam seus rendimentos por meio do uso em larga escala de fertilizantes químicos e agrotóxicos em ambientes dominados pelo cultivo de alguns poucos produtos.

Claro que o CGIAR teve várias mudanças dos anos 1970 para cá. Mas agora é a própria narrativa sobre o que a sociedade deve esperar da pesquisa agropecuária que passa por mudança que, sem exagero, deve ser chamada de paradigmática. Trata-se de investir na diversificação dos cultivos, em produtos mais nutritivos e na revalorização de culturas que a Revolução Verde negligenciou, incrementando o conhecimento das condições ecossistêmicas locais necessárias a sua adaptação. Isso exige transformação no eixo da pesquisa agronômica e nos investimentos públicos e privados do sistema agroalimentar.

Esta mudança paradigmática se exprime na afirmação que intitula um importante artigo publicado na prestigiosa Proceeding of the National Academy of Sciences (9/02/2023): “The next era of crop domestication starts now” (A próxima era da domesticação das plantas começa agora). Embora as modalidades de domesticação vegetal praticadas até aqui tenham sido eficientes na ampliação da oferta de calorias e na redução dos preços alimentares, diz o artigo, elas são cada vez mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos.

Enfrentar este problema exige mudar o foco e transitar da maximização da produção calórica para a maximização da densidade nutricional, da resiliência climática, da diversidade biológica e da equidade. Isso não significa volta ao passado, mas ao contrário, uma nova orientação para a própria pesquisa agronômica e até para a engenharia agrícola. Colheitadeiras fabricadas para culturas homogêneas, por exemplo, serão substituídas por máquinas mais flexíveis, dotadas de dispositivos que permitam fazer colheitas inteligentes respeitando os solos e a plasticidade dos diferentes cultivos e de suas épocas de maturação.

Os caminhos da transição para diversificar o sistema agroalimentar global não estão, nem de longe, traçados. É ainda difícil avaliar o alcance das diferentes iniciativas. Mas talvez não seja irrelevante que Cary Fowler, o enviado especial de segurança alimentar do Departamento de Estado, esteja dando início a uma transformação que, em tese, rompe com tudo o que foi feito pelos Estados Unidos em matéria de segurança alimentar desde a Segunda Guerra Mundial. A tal ponto que, segundo o jornal The New York Times (22/01/2024), Anthony Blinken, o secretário de Estado dos EUA, no Fórum Econômico Mundial, chamou a mudança de “genuinamente revolucionária”. Seu orçamento ainda é reduzido (US$ 100 milhões), mas o projeto merece ser conhecido.

Apoiar-se em algumas poucas culturas básicas, diz o programa criado por Cary Fowler, em cooperação com a União Africana e a FAO/ONU, aumenta a vulnerabilidade sistêmica, as perdas de colheitas e a redução nos rendimentos. As culturas tradicionais carecem de pesquisa e investimento para que venham a ser comercialmente competitivas. Mas são elas que mais podem contribuir para melhorar a qualidade da alimentação. Além disso, a pesquisa em torno de produtos negligenciados e pouco utilizados pode auxiliar na reversão da severa degradação dos solos pela qual passam várias regiões africanas, já que são produtos adaptados às condições ecossistêmicas locais. A mensagem é clara: por mais importante que seja o comércio internacional, a segurança alimentar e a vitória da luta contra a fome na África subsaariana devem contar, antes de tudo com o fortalecimento das capacidades produtivas locais e apoiar-se em produtos adaptados a seus ecossistemas.

E é claro que o papel dos produtos negligenciados e subutilizados será muito variável segundo os diferentes ecossistemas. O enriquecimento biológico dos solos nas grandes extensões cultivadas com alguns poucos produtos e a severa redução no uso de insumos químicos são rotas que permitirão acelerar a transição das técnicas que dominaram a Revolução Verde e que se tornam obsoletas no Antropoceno, mesmo naquelas regiões dominadas até aqui por plantios homogêneos.

O que é certo é que a diversidade estará no centro da transformação do sistema agroalimentar global. Este é um dos temas que o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, promovido por diversas organizações da sociedade civil, em São Paulo, discutirá nos dias 26 e 27 de fevereiro, logo antes do encontro dos Ministros das Finanças do G20.

Ricardo Abramovay é professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP. Autor, entre outros livros, de Infraestrutura para o Desenvolvimento Sustentável (Elefante)

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