Por que pandemia pesa mais sobre ombros femininos

Estudo mostra efeitos do isolamento social sobre o trabalho e a reprodução doméstica. Metade das mulheres passou a cuidar de alguém; violência aumentou. Mais afetadas pelo desemprego, 40% viu a sustentação da casa em risco

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Estudo em parceria da Sempreviva Organização Feminista e Gênero e Número

A pandemia causada pelo novo coronavírus alterou as dinâmicas de vida, trabalho e cuidado na sociedade. Entre tantas dimensões de desigualdades evidenciadas neste período, a sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidado foi uma das questões que as mulheres sentiram logo que as medidas de isolamento social foram iniciadas nos municípios brasileiros. Contraditoriamente, essa questão aparece com mais destaque justamente em um momento em que o cuidado passou a se reconcentrar nos domicílios, dada a necessidade de interromper o funcionamento presencial de instituições fundamentais para o cuidado, como creches e as escolas.

Essa pesquisa, realizada por Gênero e Número e SOF Sempreviva Organização Feminista, teve o objetivo de conhecer as dimensões do trabalho e da vida das mulheres durante a pandemia.

Os eixos da pesquisa tratam dos efeitos da crise da saúde e do isolamento social sobre o trabalho, a renda das mulheres e a sustentação financeira, contemplando o trabalho doméstico e de cuidado realizado de forma não remunerada no interior dos domicílios.

Os resultados da pesquisa apresentados neste relatório demonstram que as dinâmicas de vida e trabalho das mulheres se contrapõem ao discurso de que “a economia não pode parar”, mobilizado para se opor às recomendações de isolamento social. Os trabalhos necessários para a sustentabilidade da vida não pararam – não podem parar. Pelo contrário, foram intensificados na pandemia. A pesquisa indica como as desigualdades raciais e de renda marcam a vida e o trabalho das mulheres na pandemia, assim como a diversidade de experiências de mulheres rurais e urbanas.

50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia

No caso das mulheres rurais esse percentual alcança 62% das entrevistadas. O cuidado está no centro da sustentabilidade da vida. Não há a possibilidade de discutir o mundo pós-pandemia sem levar em consideração o quanto isso se tornou evidente nesse momento de crise global, que nos fala sobre uma “crise do cuidado”. Não se trata de um problema a ser resolvido, nem de uma demanda a ser absorvida pelo mercado. Trata-se de uma dimensão da vida que não pode ser regida pelas dinâmicas sociais pautadas no acúmulo de renda e de privilégios. Não deu certo até aqui sendo assim. A organização do cuidado ancorada principalmente na exploração do trabalho de mulheres negras e no trabalho não remunerado das mulheres é um fracasso retumbante para a busca de redução das desigualdades antes e durante a pandemia do coronavírus.

72% afirmaram que aumentou a necessidade de monitoramento e companhia

Entre as mulheres responsáveis pelo cuidado de crianças, idosos ou pessoas com deficiência, quase ¾ fizeram essa afirmação. Essa é uma dimensão do cuidado muitas vezes invisibilizada, pois não se trata de uma atividade específica como é o auxílio na alimentação, por exemplo. Em casa, os tempos do cuidado e os tempos do trabalho remunerado se sobrepõem no cotidiano das mulheres: mesmo enquanto realizam outras atividades cotidianas, seguem atentas.

41% das mulheres que seguiram trabalhando durante a pandemia com manutenção de salários afirmaram trabalhar mais na quarentena

A maior parcela delas é branca, urbana, concluiu o nível superior e está na faixa dos 30 anos. Uma camada privilegiada, sem dúvida. Mas a crise sanitária sacudiu as estruturas em todas as casas de mulheres trabalhadoras. Entre as que responderam que estavam trabalhando mais do que antes da quarentena, 55% delas são brancas e 44% são negras. Transformadas em atividades remotas, as jornadas de trabalho se estendem. Além disso, as relações entre trabalho e atividades domésticas se imbricaram ainda mais, e se antes pagar por serviços era a solução possível para algumas, a pandemia mostrou a intensificação do trabalho das mulheres. Elas trabalham mais porque as tarefas ainda não são distribuídas igualmente no ambiente doméstico.

40% das mulheres afirmaram que a pandemia e a situação de isolamento social colocaram a sustentação da casa em risco

A maior parte das que têm essa percepção são mulheres negras (55%), que no momento em que responderam à pesquisa tinham como dificuldades principais o pagamento de contas básicas ou do aluguel. Como a pesquisa tem recorte por escolaridade também, ficou evidente que para as respondentes que têm até o Ensino Médio, a dificuldade no acesso a alimentos também foi uma preocupação

58% das mulheres desempregadas são negras

Não é à toa que a sensação de estar em risco é maior entre as mulheres negras. No Brasil, historicamente, a taxa de ocupação de pessoas brancas é maior em relação às pessoas negras. É preciso humanizar a leitura dos dados e destacar que “a taxa” representa milhares de pessoas que estão sempre em condição de vulnerabilidade. O que a pesquisa agora revela é o quanto maior é essa taxa, entre as mulheres (por raça) no momento da pandemia.

61% das mulheres que estão na economia solidária são negras

Se estão na base da pirâmide social pressionadas pelas estruturas que as desafiam na conquista do direito à renda, as mulheres negras que trabalham por conta própria têm estratégias de cooperação mais presentes no seu dia a dia. Elas são a maioria em relação às brancas entre as que veem a produção e a distribuição como processos a serem compartilhados. A pesquisa não aborda quais tipos de atividades predominam entre as mulheres que estão na economia solidária, mas evidencia diferenças nos arranjos econômicos entre raças.

8,4% das mulheres afirmaram ter sofrido alguma forma de violência no período de isolamento

Sobre a percepção de violência, 91% das mulheres acreditam que a violência doméstica aumentou ou se intensificou durante o período de isolamento social. Quando perguntadas sobre suas experiências pessoais, no entanto, somente 8,4% das mulheres afirmaram ter sofrido alguma forma de violência no período de isolamento. Esse percentual aumenta entre as mulheres nas faixas de renda mais baixa. Entre as mulheres com renda familiar de até 1 salário mínimo, 12% afirmam ter sofrido violência; e, entre as mulheres rurais com a mesma renda, 11,7% relataram a violência. Compreender a disparidade entre percepções gerais das mulheres e seus relatos sobre suas experiências exige compreender e dar visibilidade a uma dinâmica complexa de formas de violências que se reproduzem nas relações cotidianas e íntimas e cujo reconhecimento é ainda um desafio que se impõe às ações de enfrentamento à violência contra a mulher.

Perfil das entrevistadas

Enquanto o questionário online esteve aberto, somou 2.676 respondentes, e 2.641 foram validadas para as análises. O perfil das mulheres participantes da pesquisa indica uma maioria urbana – 85% diante de 15% que vivem no campo -, trabalhadora e responsável por pelo menos 50% da renda familiar. As que ganham mais de 5 salários mínimos não representam nem 10% do total, e 80% delas recebem até 2 salários mínimos. São predominantes os grupos de mulheres que dividem a casa com companheiro(a), 30,7%, e com familiares adultos, 25%. Do total, 14% afirmam dividir com filhos, enteados, sobrinhos ou netos. Há uma parcela de 11% que declarou morar sozinha.

Houve respondentes em todas as faixas etárias entre 15 e 89 anos, sendo a média de idade 41 anos. A presença de brancas e negras é bem equilibrada entre as participantes da pesquisa, enquanto amarelas e indígenas têm representação baixa (1%). Metade das mulheres, inclusive com equilíbrio entre brancas e negras, acessa algum tipo de benefício social ou programa de transferência de renda, o que não está necessariamente relacionado a auxílios emergenciais da pandemia.

A maior parte das mulheres, ¾ delas, afirma ter pelo menos Ensino Superior Completo, enquanto 14% possuem até o Ensino Médio. Na dinâmica da moradia, predominam contratos de aluguel e a casa própria, mas ainda há mulheres sem residência ou compartilhando cômodos, o que torna qualquer leitura sobre a condição de vida na pandemia ainda mais crítica.

Autoras do estudo

Sempreviva Organização Feminista*: Helena Zelic, Thandara Santos e Renata Moreno

Gênero e Número*N: Giulliana Bianconi, Natália Leão e Marília Ferrari

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