Por que criar um Sistema Nacional de Educação?

Projeto que propõe mecanismos para integrar escolas brasileiras chega à Câmara. Demanda histórica, ele inspira-se no SUS para capilarizar ensino de qualidade. Porém, mais que reunir gestores públicos, o desafio é envolver sociedade

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Por Cátia Guimarães, na EPSJV/Fiocruz

Teve escola aberta e escola fechada. Houve rede oferecendo ensino remoto e outras praticamente sem aula. Num mesmo bairro, teve escola municipal fechada e escola estadual aberta, ou vice-versa. “Foi tudo descoordenado”, resume Carlos Jamil Cury, professor da PUC-MG. Como você já deve imaginar, essa descrição se refere ao cenário da educação brasileira em meio à crise causada pela pandemia de Covid-19, mas o que os entrevistados desta reportagem destacam é que, embora tenha se explicitado com o surgimento do novo coronavírus, a falta de articulação entre governos e entes federados na política educacional do país vem de muito antes.

E se o problema é antigo, a solução também é: há 90 anos, profissionais, pesquisadores e militantes da área defendem a criação de um Sistema Nacional de Educação (SNE) como estratégia para incentivar e viabilizar uma maior cooperação entre municípios, estados e governo federal. Como explica Cury, mais do que uma proposta puramente administrativa, essa ‘bandeira’ expressa uma concepção de educação que precisa ser disputada ainda hoje. “Desde o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, há uma recusa à uniformidade, mas não à unidade, além de uma recusa à dispersão e à descontinuidade sem abrir mão da diversidade”, explica o professor, defendendo que um Sistema Nacional “erigido de forma republicana” seria capaz de conciliar esses princípios. Pois agora em 2022, depois da experiência traumática da pandemia – e talvez incentivado por ela –, tudo indica que finalmente essa proposta vai sair do papel: aprovado no Senado, o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 235/2019, apresentado como um substitutivo de autoria do Senador Dario Berger (PSB-SC), foi encaminhado para análise da Câmara. A promessa, segundo o texto, é promover a “integração de planejamento, formulação, implementação e avaliação de políticas, programas e ações das diferentes esferas governamentais”. Em suma, construir um novo pacto federativo para a educação brasileira.

Legalmente, a ideia de um Sistema Nacional de Educação foi incluída no texto da Constituição Federal em 2009 por meio da Emenda Constitucional 59. Desde o texto original, no entanto, o artigo 211 da Carta define que deve haver “regime de colaboração entre os sistemas de ensino”. E, para dar conta de tudo isso, em 2006 a Emenda Constitucional 53 alterou o parágrafo único no artigo 23 estabelecendo que “leis complementares” (no plural) deveriam “fixar normas para a cooperação entre a União e os estados, o Distrito Federal e os municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”. Faltava, portanto, uma regulamentação do que a Constituição anunciava. E essa é, precisamente, a função da nova lei que sairá do Congresso este ano, se a aprovação do Senado se confirmar na Câmara.

Sentar para conversar

No projeto que, até o fechamento desta reportagem, aguardava apreciação da Câmara, a principal estratégia para incentivar essa articulação é a criação de instâncias de pactuação entre os entes federados, em moldes muito semelhantes às que existem no SUS, o Sistema Único de Saúde. Até os nomes são praticamente iguais: comissões intergestores tripartite e bipartite da Educação, respectivamente, Cite e Cibe. A primeira envolve os três níveis de governo, incluindo a União; já a segunda é espaço de negociação entre os gestores da educação dentro de um mesmo estado. De acordo com o texto, esses são “fóruns responsáveis por definir parâmetros, diretrizes educacionais e aspectos operacionais, administrativos e financeiros do regime de colaboração”, com o objetivo de garantir uma “gestão mais coordenada da política educacional”. “Não há hoje no país um espaço onde os gestores municipais, estaduais e federais de educação se reúnam para conversar”, explica Yuri Santos, assessor parlamentar do Senador Dario Berger, que participou ativamente da elaboração do projeto.

Novamente, o exemplo da pandemia talvez ajude a entender a importância dessa novidade que o projeto do SNE promete: para os entrevistados ouvidos pela reportagem, não apenas a estrutura operacional instalada mas também a experiência consolidada de pactuação entre os gestores do SUS funcionaram, nas palavras de Cury, como um “amortecedor” dos desmandos que marcaram o combate ao novo coronavírus no Brasil. E isso permitiu, por exemplo, que a vacinação contra a Covid-19 fosse um sucesso, apesar do que Santos caracteriza como problemas de “coordenação política” no enfrentamento à crise sanitária no país. Como a educação não tinha essa estrutura, o aprendizado é que ter arranjos federativos em funcionamento, com espaços permanentes de conversa e negociação, ajuda a desconcentrar o poder de decisão e implementação de políticas setoriais. “A gente dá mais poder aos estados e municípios na hora de discussão de toda política educacional do país, que normalmente vem de cima para baixo”, acredita Santos, referindo-se ao texto aprovado no Senado.

Colocar a realidade das diferentes redes e territórios para conversar e decidir juntas pode contribuir, na avaliação de Nalu Farenzena, pesquisadora da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), para promover maior equidade sem abrir mão de uma perspectiva nacional na oferta de uma educação de qualidade.  A expectativa, portanto, é que, com um Sistema Nacional de Educação, a diversidade da educação brasileira seja protegida junto a um compromisso de unidade “em termos de garantia de acesso e permanência”. Trata-se, na prática, nas palavras da pesquisadora da Fineduca, de viabilizar a “garantia do direito à educação” para todos, independentemente do território em que se vive e da rede – municipal, estadual ou federal – em que se está matriculado.

Tal como na Saúde, o PL que institui o SNE prevê que a Cite deve ser formada por 15 membros, cinco de cada esfera governamental – município, estado e União – com a diferença de que, no caso da educação, segundo a proposta aprovada até agora, entre os representantes do governo federal deve constar um membro do Ministério da Economia.  Sem a exigência de integrante da área econômica, a Cibe reproduz o mesmo formato, com dez representantes divididos entre estado e municípios. De acordo com o texto, as deliberações devem ser tomadas por unanimidade e o seu cumprimento é obrigatório.

A lista de atribuições da Cite elencadas no projeto contém 18 itens que tratam de aspectos variados, como a carreira docente na educação básica pública, a formação de professores e gestores, a busca ativa de alunos fora da escola e a avaliação e monitoramento do Plano Nacional de Educação (PNE), sem contar uma série de definições sobre financiamento.

Conversar com quem?

Mas existe também a expectativa de que o Sistema Nacional de Educação fortaleça a participação social na formulação e acompanhamento de políticas nessa área. E em torno disso deve girar uma parte importante dos debates sobre o Projeto de Lei na sua próxima etapa de tramitação, na Câmara dos Deputados. Isso porque, em nota técnica, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, uma das entidades da sociedade civil organizada que mais acompanhou e elaborou propostas para melhorar o texto do PLP, defende que a Cite e a Cibe devem ser compostas não apenas pelos secretários municipais e estaduais de educação, ministros e outros gestores, mas também por porta-vozes da “comunidade educacional”. A proposta concreta da Campanha é ampliar a composição dessas comissões, incluindo dez integrantes de conselhos de educação e entidades representativas de profissionais da educação e de estudantes. “O PLP aprovado no Senado é tímido em relação a instâncias de participação social, como conferências e fóruns de educação. Então, a gente procura, ao longo do projeto, inserir a participação social nas instâncias de pactuação, tanto na tripartite quanto na bipartite, mas também no Conselho Nacional de Educação”, resume Nalu Farenzena, que também integra a Campanha.

Santos explica que, além de um espaço de discussão, a Cite e a Cibe foram concebidas como “órgãos de decisão”, inclusive orçamentária. E, por isso, defende, não faria sentido a presença de quem não tem “o poder da caneta”. Embora reconheça que a sociedade civil deve funcionar como uma “trincheira” para denunciar a insuficiência dos recursos disponíveis e propor pautas mais ousadas, Cury concorda que nas instâncias de pactuação do novo SNE são os gestores que devem sentar para discutir já que, na sua avaliação, são eles que, sempre pressionados pela sociedade, têm como levar em conta a capacidade financeira e política do momento. “Se, na composição do Cite e da Cibe, você tiver pessoas qualificadas no âmbito do orçamento federativo, eu acho que vai ser possível nós pensarmos uma reconstrução da educação que seja factível e realista”, opina.

Mas ele também defende que não se pode deixar de aproveitar a construção do SNE como uma oportunidade para ampliar o espaço de participação social na educação. Santos considera que isso foi feito e ressalta dois avanços do texto nessa direção. Um é a decisão de que o governo federal deve criar um Fórum de Valorização dos Profissionais da Educação, com gestores e representantes de entidades sindicais e científicas, para discutir questões relacionadas principalmente à carreira, remuneração e formação. Outro é uma mudança nos conselhos Nacional e estaduais de Educação, com a inclusão de representantes da Undime, a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, e do Consed, o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação, este último apenas no CNE. Na avaliação do professor da PUC-MG, no entanto, essas mudanças ainda são insuficientes. “Eu acho que não basta colocar membros da Undime e Consed no CNE. O Conselho Nacional de Educação precisa ser repensado como um todo”, opina.

De fato, se o desenho proposto pelo projeto para as instâncias de pactuação não deixa dúvidas de que sua inspiração é o SUS, o mesmo não se dá quando o assunto é participação social. Para se ter uma ideia, enquanto, apesar de todas as dificuldades práticas, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) foi concebido como espaço de acompanhamento e controle da sociedade sobre as políticas públicas, o CNE não tem caráter deliberativo, o que significa que suas decisões precisam ser homologadas pelo MEC. Além disso, também diferente do CNS, seus membros não são eleitos: sua composição é escolhida pelo governo federal a partir de uma lista de indicações. “A democracia participativa se fortalece com o aprimoramento da gestão democrática, seja por meio do reconhecimento e fortalecimento dos fóruns de educação e do Conselho Nacional de Educação enquanto instâncias autônomas e plurais, pela elaboração, implementação e monitoramento dos planos de educação em todos os níveis da Federação, seja pela garantia de realização das Conferências Nacionais de Educação”, destaca a nota técnica da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

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