A formação do psicanalista, delicado paradoxo

A necessária definição de critérios que balizem a atividade psicanalítica conflita com a radical criatividade inerente à prática inaugurada por Freud. Por isso sua transformação em mercadoria do ensino superior privado deve ser combatida

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> Este texto, cujo título original é “A formação do psicanalista: passado, presente e futuro”, é parte da edição 283 da Revista Cult — parceira editorial de Outras Palavras. O número reúne o dossiê intitulado “Como se forma um psicanalista”. Veja o índice completo e conheça o espaço Cult no OP

A profecia

No 2º Congresso de Psicanálise de Nuremberg, em 1910, Freud incumbiu o psicanalista Sándor Ferenczi de proferir o discurso propondo a criação de uma Associação Internacional de Psicanálise capaz de centralizar os esforços e ditar os rumos do movimento psicanalítico, que vinha se expandindo exponencialmente (a partir de Viena, Berlim, Zurique e Budapeste).

Ferenczi, médico húngaro e principal interlocutor de Freud por duas décadas (1910-1920), teceu um diagnóstico preciso do movimento e, por tabela, foi o responsável por uma fala de advertência que, mais de um século depois, nunca foi tão atual.

O diagnóstico indicava que os primeiros anos da difusão da psicanálise dependeram muito das iniciativas pessoais de alguns discípulos de Freud, caracterizando a parcialidade própria às estratégias de “guerrilha”. Contudo, com a popularização da obra freudiana seria preciso cuidar da reputação da psicanálise, centralizando os esforços de modo a proteger seu nome dos aventureiros e impostores que, já naquela época, divulgavam praticá-la sem qualquer conhecimento de causa. A advertência – que hoje soa profética – merece ser transcrita, tamanha sua espantosa atualidade. “Tais amigos constituem para a psicanálise uma ameaça maior que a de seus inimigos”, escreve Ferenczi em 1911, acrescentando: “O perigo que nos espreita, de certa maneira, é que viéssemos a ficar em moda e crescesse rapidamente o número daqueles que se dizem psicanalistas sem o ser”.

A “guerra” estava declarada. Desde então, saber quem é ou não psicanalista tornou-se não uma questão indicativa de abuso de autoridade, tampouco de reserva de mercado, mas um problema ético referente à constituição de uma comunidade psicanalítica.

O diagnóstico

Mais de meio século depois, em conferência pronunciada em Paris após os eventos de contestação estudantil e trabalhadora de Maio de 68, Anna Freud teceu novo diagnóstico sobre o que se passava no campo psicanalítico. Tratava-se então do espanto perante o fato de que os jovens em busca de formação psicanalítica tinham um perfil muito diferente dos pioneiros que se aproximaram do seu pai. Enquanto os primeiros discípulos – médicos e não médicos, os chamados “leigos”, que se interessaram pela psicanálise – eram personalidades inquietas, autodidatas e também bastante neuróticas, que buscavam autoconhecimento e cura, após a Segunda Guerra o quadro era bem diverso. Na sua maioria, os candidatos eram jovens psiquiatras bem adaptados ao way of life europeu e norte-americano, com poucos questionamentos e conflitos pessoais, que se dirigiam à psicanálise – agora uma disciplina celebrada e reconhecida – como uma especialização que oferecesse um bônus para seu currículo profissional.

Assim, a psicanálise tinha de fato virado moda. De “ciência bastarda”, como a denominou o filósofo Louis Althusser, não reconhecida pela medicina nem pela filosofia, transformou-se no discurso psicopatológico dominante. Popularizada, passou a ser cobiçada, ao preço do fio de sua lâmina crítica.

Por um lado, alguns veteranos entendiam que esses jovens eram o produto inevitável de uma cultura narcísica própria do pós-guerra, que tendia a promover sujeitos bem adaptados, porém submissos e acríticos, o que contradizia o clamor juvenil das ruas. Por outro, pensadores mais afiados como Michael Balint e, depois, Jacques Lacan, percebiam que o próprio processo de formação psicanalítica favorecia a seleção dos bons moços e das boas moças, excluindo os mais excêntricos, os homossexuais e os jovens das classes menos favorecidas (pretos, imigrantes, filhos de trabalhadores), que não podiam arcar com o caríssimo processo de formação oferecido pela Associação Psicanalítica Internacional (IPA, sigla em inglês).

No entanto, não se tratava apenas de excluir os incomuns. Aqueles mais questionadores aceitos para a formação tornavam-se demasiado obedientes, graças ao processo que Balint denomina “intropressão do superego” ao qual eram submetidos nos institutos psicanalíticos. Emergia, assim, o que a literatura psicanalítica nomeou de normal candidate, o candidato normal, pouco afeito à escuta da loucura – da sua própria, bem como daquela que habita o âmago de cada paciente que, em sofrimento, procura o auxílio de uma análise. É evidente que houve importantes exceções que mantiveram vivo o espírito da psicanálise na segunda metade do século 20.

O paradoxo

O processo de institucionalização da psicanálise foi, ao longo da sua história centenária, atravessado por um inexorável paradoxo: transmitir a experiência da escuta do inconsciente, sempre perturbadora, à qual a moral social resiste e, ao mesmo tempo, fazer com que a psicanálise fosse reconhecida pela comunidade científico-cultural, mantendo-se de pé (sentido literal de instituir-se), o que implicava formar novos analistas. Trocando em miúdos: a experiência psicanalítica tem como um dos seus objetivos maiores favorecer o acesso, a cada um que sofre psiquicamente, ao que há de singular em seu desejo, provocando muitas vezes abalos nas subjetividades alienadas aos imperativos familiares, religiosos, grupais, sociais e políticos vigentes. E o psicanalista é aquele que, antes de se oferecer à escuta do sofrimento do outro, passou ele mesmo por essa visitação do próprio inconsciente “infamiliar”.

Desse modo, o grande problema de uma formação psicanalítica é regulamentar ou mesmo definir a priori critérios para a extraordinária experiência do inconsciente. As respostas a esse paradoxo variaram bastante ao longo do tempo: nos primeiros anos do século 20, Freud recomendava àquele que desejava ser analista – havia em torno de Freud profissionais de diversas formações, como advogados e educadores – que começasse a praticar e que buscasse uma análise pessoal quando reconhecesse as dificuldades do ofício. Os pioneiros pagaram, assim, o preço existencial da falta de oportunidade de uma análise minimamente aprofundada, o que foi responsável por vários incidentes e rupturas no seio do movimento.

A partir dos anos 1920, estabeleceu-se o tripé hoje aceito por todas as orientações teórico-clínicas: um psicanalista deve submeter-se, ele mesmo, a uma análise pessoal com um analista experiente; deve aprofundar o estudo da metapsicologia (teoria do funcionamento psíquico) e da psicopatologia psicanalíticas; e deve cumprir um período de supervisão clínica, durante o qual endereça a um colega mais experiente as dificuldades encontradas na condução dos casos que atende. Ou seja, análise pessoal (chamada de análise didática), estudo teórico e supervisão clínica compõem o percurso da formação de um psicanalista.

A opção da IPA foi a da padronização, definindo tempo mínimo de análise, número de sessões semanais, orientação para a escolha do analista e critérios para os resultados esperados dessa análise, sempre referidos a alguma norma, suprema contradição. Contudo, a padronização e a ingerência institucional sobre uma experiência tão singular, caracterizada pelo privilégio dado à delicada relação analista-analisando, chamada de relação transferencial, acabaram comprometendo a sua dimensão subversiva e culminando na produção de sintomas indesejados, com destaque para o comprometimento da criatividade – o “livre jogo das faculdades psíquicas” – dos novos analistas.

A partir dos anos 1960, a querela em torno da formação e dos critérios da análise didática foi um dos motivos que levou Lacan a se desligar da IPA e, com isso, quebrar a sua hegemonia, favorecendo a emergência de novas instituições psicanalíticas e de modelos alternativos de formação. A ampla maioria dessas iniciativas, porém, reconhece três princípios inelutáveis: 1) o tripé da formação; 2) o psicanalista não necessita ter uma graduação específica em medicina, psicologia ou afins para cumprir uma formação específica; e 3) o reconhecimento de um psicanalista e de uma instituição de formação é resultado de sua inserção na comunidade psicanalítica.

Créditos a Karl Marx: a história se repete como farsa. O acesso proporcionado pelas novas mídias digitais, aliado à presença de psicanalistas nos principais jornais e programas de televisão, o que já vinha despertando o interesse dos brasileiros pela psicanálise há alguns anos, explodiu com a pandemia de covid-19. E o fluxo de postagens, lives e afins foi sucedido pela abertura de algumas “formações online em psicanálise” e pela notícia bombástica da oferta, por parte de um centro universitário privado, de um bacharelado EAD em psicanálise, em vias de ser validado pelo MEC.

As instituições psicanalíticas brasileiras são, na sua maioria, associações científicas ou culturais sem fins lucrativos, que se dedicam à pesquisa, à transmissão da psicanálise e à formação de analistas. Por sua vez, as novas formações online e, evidentemente, o bacharelado proposto, aproveitando-se do fato de a psicanálise não ser regida por nenhum conselho profissional em nosso país, pretendem “criá-la” como profissão um século depois de Freud e sem nenhum apoio da comunidade psicanalítica brasileira, hoje organizada em torno de um movimento intitulado Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

Ao lidar com o sutil paradoxo da formação de analistas, o movimento psicanalítico criou, pelo excesso de regulamentação, sintomas de resistência à psicanálise oriundos do próprio campo psicanalítico, com os quais vem lidando com relativo sucesso ao longo da sua história. Mas é preciso também combater a transformação da psicanálise em mercadoria do ensino superior privado brasileiro, que decidiu liquidar diplomas de psicanalista sem qualquer referência à comunidade dos profissionais que exercem, desenvolvem e transmitem a psicanálise há décadas em nosso país.

Que a psicanálise esteja na moda não é exatamente o problema. Grave, como alertara Ferenczi, é deitar a cabeça no divã de um psicanalista “diplomado”, mas sem formação adequada.

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