Por que parte da sociedade ainda defende o trabalho infantil?

Enquanto os filhos da elite adiam ingresso no trabalho, com pós e estudos no exterior, há quem defenda que os filhos dos pobres trabalhem cada vez mais cedo

Por Fernanda Sucupira, no blog do Sakamoto

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Enquanto os filhos da elite adiam ingresso no trabalho, com pós e estudos no exterior, há quem defenda que os filhos dos pobres trabalhem cada vez mais cedo

Por Leonardo Sakamoto, em seu blog

Quando trago algum texto sobre trabalho infantil, muitos leitores bradam: “eu trabalhei desde cedo e isso moldou meu caráter”; “aprendi a dar valor às coisas com meu suor desde pequeno”; “crianças ou está vagabundeando ou está trabalhando”. Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação é bonita o suficiente para ser copiada pelo filho ou filha. Até virar filme. Mas será que não imaginam que o trabalho infantil, que atrapalha o desenvolvimento da criança, não precisa ser hereditário? E que a luta maior é por criarmos condições para que ela tenha educação de qualidade, possa brincar e preparar para o momento em que será realmente demandada pela sociedade?

Com menos tempo para se dedicarem a seu crescimento, as crianças tornam-se adultas que sabem o seu exato lugar na sociedade e trabalharão duro para o crescimento do país, mas sem – necessariamente – refletirem sobre seus direitos e sem criticarem seus chefes e governantes por péssimas condições de vida.

O fato é que a programação que muitos receberam ao longo da vida, seja pelas circunstâncias, seja pela mídia e outra instituições sociais, foi tão boa que acreditam realmente que só “o trabalho liberta”, como o diz o portão do lugar aí embaixo.

Campo de concentração de Sachsenhausen. Foto Leonardo Sakamoto

 

Pedimos para Fernanda Sucupira, da Repórter Brasil, escrever um texto sobre a razão de boa parte do país ainda estar do lado do trabalho infantil. Segue:

Por que parcela da sociedade brasileira ainda defende a exploração do trabalho infantil?, por Fernanda Sucupira

Ainda que a luta pela erradicação do trabalho infantil e a consciência sobre esse problema social venham crescendo nas últimas décadas, quem atua na área costuma se deparar com argumentos de pessoas de diferentes setores da sociedade a favor das atividades laborais de crianças e adolescentes.Uma das principais justificativas é o de que é melhor que meninos e meninas estejam trabalhando do que na rua, sem fazer nada, vulneráveis ao uso de drogas e à criminalidade.

Segundo Isa Maria de Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional para a Prevenção e Eliminação do Trabalho Infantil (FNPeti), essa ideia é uma falácia. “Várias formas de trabalho infantil favorecem que crianças e adolescentes sejam empurrados para o crime organizado, para o tráfico de drogas, para o tráfico de pessoas, para a exploração sexual. Muitas vezes nesse contexto são submetidos a xingamentos, espancamentos, violência, abuso sexual”, exemplifica.

Além disso, essa ideia não se confirma quando são feitas pesquisas com adultos que estão encarcerados ou com adolescentes em medidas socioeducativas. “A imensa maioria dos presidiários trabalhou na infância, e esses adolescentes quando cometeram o delito já haviam trabalhado ou estavam trabalhando. De que forma o trabalho infantil preveniu a marginalidade deles?”, pergunta Marinalva Cardoso Dantas, auditora fiscal do trabalho em Natal (RN). Para ela, é justamente trabalhando que eles acabam caindo na criminalidade, é o trabalho que os coloca na rua.

Outra concepção bastante presente e complementar à anterior é a de que o trabalho dignifica o ser humano, molda o caráter, forma valores, portanto, é benéfico a crianças e adolescentes. É um valor cultural que, pelo menos no que se refere à população infanto-juvenil, também não condiz com a realidade. “Nosso contra-argumento é de que para crianças e adolescentes, em idade de plena escolarização, cumprir a jornada escolar, ser pontual, realizar atividades, fazer as tarefas e estudar, tudo isso são condições que favorecem a formação do caráter”, defende a secretária executiva do FNPeti.

Ela afirma que há pouca valorização da educação integral, das práticas esportivas, culturais, de lazer, do exercício da criatividade e do lúdico, atividades que contribuem muito mais para o desenvolvimento físico e emocional da criança do que o trabalho infantil, que impõe uma rotina de adulto e subtrai a condição de infância. No entanto, segundo Oliveira, é educativo e recomendável que crianças e adolescentes participem com suas famílias de uma divisão solidária de tarefas, o que os prepara para a vida, fortalece o sentimento de solidariedade, de responsabilidade para com o ambiente em que se vive.

Muitos utilizam sua própria história, ou a história de pessoas proeminentes, para exemplificar os efeitos positivos ou, no mínimo, nulos do trabalho infantil em uma trajetória de sucesso. É comum inclusive entre os políticos utilizar esse recurso, apontando pessoas como o ex-presidente Lula para mostrar que essas atividades não acarretam prejuízos para o futuro das crianças. “Essa é uma irresponsabilidade grande dos brasileiros porque essas pessoas querem nos convencer de que são bem sucedidas porque trabalharam na infância, caso contrário seriam fracassadas”, afirma a auditora fiscal de Natal. Dantas conta que ela própria já foi confrontada inúmeras vezes, inclusive em entrevistas jornalísticas, por pessoas que diziam que trabalhavam desde pequenas e que não havia nenhum problema nisso.

Se em alguns casos o trabalho infantil não surte efeitos nocivos, essa não é a regra para a maioria dos que são obrigados a trabalhar precocemente. “Crianças que trabalham ficam com mil problemas psicológicos, autoestima baixa e não vão para a escola. Depois têm que aceitar tudo o que ninguém quer, o que não presta, trabalhos perigosos, desagradáveis, porque não se prepararam”, diz Dantas. Para a secretária executiva do FNPeti, não se pode deixar que algumas exceções sejam vistas como regra. “Quem mais da família do Lula que passou pelo trabalho infantil teve a projeção que ele tem?”, questiona. “Foi a militância sindical e não o trabalho infantil o que formou o Lula. Foi apesar do trabalho infantil e não por causa dele”, avalia.

Preconceito de classe – Para Rafael Dias Marques, da Coordenação Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (MPT), na visão de quem defende essa prática, o trabalho é um mal menor. “Essas pessoas não têm a concepção de que é altamente nocivo, de que pode trazer os mesmos prejuízos que as drogas e o crime”, afirma. Ele acredita que elas não sabem das dificuldades de aprendizado causadas pelo trabalho infantil; do grande risco que crianças e adolescentes têm de se acidentar nessas atividades. Não levam em conta que são retirados do convívio familiar, afastados do lazer, da brincadeira, do ócio. “A sociedade entende o trabalho como solução para a criança pobre, no lugar da educação, de garantir a proteção integral por parte do Estado”, completa o procurador do trabalho.

Isso revela que nesse discurso de defesa do trabalho infantil está presente também um preconceito de classe, uma discriminação em relação à população mais pobre. Num momento em que filhos e filhas das classes altas estão adiando cada vez mais a entrada no mercado de trabalho, preferindo antes concluir cursos de graduação, pós-graduação, e temporadas de estudos no exterior, para conseguir postos mais bem pagos, muitos defendem que os filhos e filhas das classes baixas ingressem nele cada vez mais cedo.

“Quando se trata do filho alheio, é uma verdade, mas só para o pobre, para grupos marginalizados. Para meu filho, educação integral: de manhã na sala de aula e à tarde aulas de inglês, balé, judô, natação. É uma demagogia daqueles que sentem na criança do outro uma ameaça à sua própria estabilidade. O outro, por ser pobre, a priori é um delinquente em potencial, só tem duas alternativas na vida, trabalhar ou ser delinquente. Mas a criança tem direito a outra via”, defende Renato Mendes, coordenador do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil no Brasil da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Reações contra o enfrentamento ao trabalho infantil – Não são raros os casos de ameaças aos auditores fiscais do trabalho em todo o Brasil durante as fiscalizações de casos de trabalho infantil, pelos familiares, pelos empregadores e até pelas próprias crianças e adolescentes, que entendem que estão sendo prejudicados pela atuação do Estado para eliminar essa prática. “Sempre somos ameaçados pelas mães quando fiscalizamos, elas são agressivas. E pelos empregadores também, que têm medo de perder a mão de obra barata, não têm nenhum interesse na criança”, relata Dantas.

Como parte dessa reação, são frequentes as propostas de emenda constitucional (PEC) que vão na contramão da erradicação do trabalho infantil, propondo a redução da idade mínima para entrar no mercado de trabalho. Uma PEC com esse conteúdo (268/2008), apresentada pelo então deputado federal Celso Russomanno (PRB-SP), foi barrada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), em 2009, por ser considerada inconstitucional. Afirmava que “o impedimento ao trabalho faz com que os jovens busquem a saída de seus problemas na droga, no furto, no trabalho informal, no subemprego, na mendicância e na prostituição”.

Atualmente, duas PECs que propõem a redução da idade mínima para 14 anos se encontram na CCJ, uma do deputado federal Dilceu Sperafico (PP-PR) e outra do deputado federal Onofre Santo Agostini (DEM-SC), respectivamente PEC 18 e PEC 35, ambas de 2011. Eles defendem que o trabalho infantil não prejudica os estudos e, havendo acompanhamento, “só trará benefícios, tendo em vista que além de gerar rendimentos para a família será um fator positivo para a sua formação moral e educacional”.

O procurador do trabalho Marques acredita que elas também serão consideradas inconstitucionais por dois motivos. Primeiro porque tratados internacionais adotados pelo Brasil proíbem a redução da idade mínima, como a Convenção 138 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2001. Em segundo lugar, os direitos fundamentais são cláusulas pétreas da Constituição Brasileira, por isso não podem ser alterados por PECs, somente através da formação de uma nova Assembleia Constituinte.

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4 comentários para "Por que parte da sociedade ainda defende o trabalho infantil?"

  1. Jean disse:

    Chamar de “exploração do trabalho infantil” deixar um galalau de 15 ou 16 anos e mais de 1,70 de altura trabalhar durante 4 horas por dia no setor de serviços é de uma desfaçatez a toda prova. O jovem da sociedade de consumo quer e precisa de dinheiro para, vejam só!, consumir. Se não tiver oportunidade de ter seus presentinhos sustentados pela família, e se não for permitido que trabalhe para ganhar esse dinheiro honestamente, ele fatalmente vai encontrar outros meios para consumir. Tráfico, furtos e golpes são a opção natural para os mais “corajosos” e ocupações clandestinas (muitas vezes degradantes) são o caminho trilhado pelo resto.

  2. O trabalho infantil pode ser combatido, através da criação de políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes que vão além da educação formal. Que tal uma política de proteção familiar, pois às vezes muitos problemas começam pela falta de estruturas de seus membros. Crianças e adolescêntes, não estão separados de um contexto e é nesse contexto familiar que se deve voltar a atenção.

  3. Pedro Cuello disse:

    Opino en español- La defenza del trabajo infantil como medio de evitar delincuencia, drogadiccion es una falacia de quienes solamente especulan con la explotación economica de los niños. Es "volver" a la revolucio industrial inglesa y sobre todo limitar las posibilidades de una formación cultural y economica de las clases bajas de la ociedad. REPUDIABLE

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