"Luis Antônio-Gabriela": contraditório e frágil

Documentário-cênico baseado na história do irmão do diretor Nelson Baskerville, que fugiu do país para tornar-se travesti e sumiu por 30 anos, constitui-se em experiência intensa e visceral

No Fala Cultura

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Documentário-cênico baseado na história do irmão do diretor Nelson Baskerville, que fugiu do país para tornar-se travesti e sumiu por 30 anos, constitui-se em experiência intensa e visceral

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Uma das peças mais premiadas de 2011 – foi o Vencedor do Prêmio APCA – Melhor Espetáculo 2011, Luís Antônio-Gabriela faz jus às louvações acerca de suas diversas qualidades.

Baskerville compartilha com o público a trajetória de seu irmão mais velho, o Luís Antônio do título, que depois de passar a infância e a adolescência junto à família, e de sofrer com o preconceito por conta de sua homossexualidade, foi viver na cidade de Bilbao, na Espanha, onde permaneceu durante 30 anos sem dar notícias à família.

Em Bilbao, Luís Antônio tornou-se a travesti Gabriela, e alcançou a fama como uma das estrelas da noite da cidade basca. Quando a família recebeu a notícia de que Luís Antônio – Gabriela supostamente havia morrido, decidiram se mobilizar para descobrir seu paradeiro.

Em 2002, recebi uma ligação de minha segunda mãe, Doracy – segunda mãe porque minha primeira faleceu após o meu parto, fazendo meu pai, Paschoal, viúvo com 6 filhos, casar com a Dona Doracy, viúva com 3 filhos, quando eu tinha 2 anos – ela me ligou pra dizer que Luis Antonio havia morrido na Espanha. Luís Antônio, pra mim, era aquele irmão, 8 anos mais velho, que sempre mantive na sombra. Só alguns poucos amigos sabiam da sua existência. Ele era aquele que, além de me seduzir, e abusar sexualmente, fazia com que muitos dedos da cidade de Santos fossem apontados pra nós, os ‘irmãos da bicha’, ‘a família do pederasta’  e outros nomes. Sou obrigado a confessar que a notícia da morte dele não me abalou nem um pouco. Eram quase 30 anos sem saber nada dele, sem saber se ele estava vivo ou morto, enfim, liguei pra minha irmã, Maria Cristina, advogada, para passar a notícia pra frente e a preocupação imediata dela foi com os papéis, atestado de óbito, documentação para o espólio, etc. Mas não sabíamos nada do fato e nem ao menos o local exato de sua morte. Maria Cristina empreendeu então uma jornada fadada ao fracasso que era saber notícias do paradeiro dele. Depois de alguns meses, através da embaixada brasileira na Espanha, ela o encontrou. Mas não exatamente da forma que esperava. Luis Antonio estava vivo, morava em Bilbao e a partir disso começamos a tentar formar e entender aquela lacuna de 30 anos que nos separavam dele. Minha irmã, numa aventura ‘almodovariana’ foi encontrá-lo. Luis Antonio chamava-se agora Gabriela, tinha sido uma estrela das noites de Bilbao, era viciada em cocaína e AIDS era a menor das suas doenças. Através da Maria Cristina, passamos então a ter notícias dele até sua morte, agora verdadeira, em 2006”, explica Baskerville, que no último dia 17 de setembro lançou, pela editora nVersos, um livro que conta a história de seu irmão.

luisantonio02 Documentário cênico “Luís Antônio–Gabriela” traz história real

Com suas reverberações ampliadas por se tratar de uma história real, este documentário-cênico gera diversos sentimentos no público, do incômodo com os abusos sexuais a que Luís Antônio submetia seu irmão Nelson ou as surras violentas que o pai de ambos aplicava nos dois, à simpatia pela figura contraditória e frágil do personagem central da trama.

O elenco, composto pelos atores e atrizes da Cia. Munguzá de Teatro, interpreta com entrega e talento admiráveis – para se mensurar a preparação efetuada, todos aprenderam a tocar instrumentos para a execução da trilha sonora original composta pelo maestro Gustavo Sarzi, que também atua, ao tocar as belas melodias que criou ao vivo em um imponente piano de cauda.

Nesse sentido, inclusive, vale citar a confluência de manifestações artísticas que se faz presente no espetáculo: teatro, música, dança, artes plásticas, cinema e fotografia. A cenografia traduz com perfeição o desconforto dos personagens, e a iluminação é realizada pelo próprio elencode dentro do palco, utilizando panos e lâmpadas de diferentes cores.

A peça mescla momentos de tensão e agressividade com cenas bastante leves e divertidas, e seu caráter ritual é potencializado por uma sequencia fragmentada e um clima onírico que lembrou tanto Má Educação, de Pedro Almodovar, por conta do enredo, como também, em alguns momentos, trouxe à lembrança os filmes de Federico Fellini (Amarcord, em especial com o personagem de Lucas Beda, uma figuração do ditador italiano Mussolini).

luisantonio03 Documentário cênico “Luís Antônio–Gabriela” traz história real

Assim como o personagem principal, que nasce Luis Antonio e se transforma, à base de injeções de silicone, em Gabriela, e do próprio diretor Nelson Baskerville, que transformou a revolta com o irmão em aceitação de sua condição, o público também sai transformado do espetáculo.

Importante destacar que a primeira temporada do espetáculo foi gratuita, e que a bilheteria arrecada nessa temporada será revertida a uma instituição LGBT.

Confira entrevista com o diretor e dramaturgo de Luís Antônio – Gabriela, Nelson Baskerville:

[FalaCultura] – O que você sentiu quando sua irmã descobriu, depois de 30 anos, que o irmão de vocês, Luís Antônio, não estava morto, mas vivo, morando em Bilbao, e se tornado uma figura conhecida na noite da cidade basca? Imaginava que a história dele fosse tão singular a ponto de se tornar uma peça de teatro? Costumava lembrar-se dele com frequência antes de receber a notícia da sua (não) morte?

[Nelson Baskerville] – Difícil de explicar. Um estranhamento. Simbolicamente já o tínhamos matado antes do tempo, pela dor que o simples tocar no assunto já provocava. Pensar no Luís Antônio era pensar em dor, gritos, em risos disfarçados quando passávamos ou cochichos nas nossas costas. Era pensar no abuso. Levou tempo para eu compreender que nada disso justificava o abandono que ele sofreu.

“Simbolicamente já o tínhamos matado antes do tempo, pela dor que o simples tocar no assunto já provocava.”“Simbolicamente já o tínhamos matado antes do tempo, pela dor que o simples tocar no assunto já provocava.”Minha irmã diz, no posfácio do livro: “… Desistir de você foi mais uma forma de preservar um pouco nossa sanidade mental e emocional, de ficarmos mais refratários aos horrores da guerra que vivíamos diuturnamente.” Mas a partir do momento em que o descobrimos vivo, nasceu, partindo de minha irmã, um sentimento de dívida e cuidado. Foi quando ela foi pra lá encontra-lo. Eu jamais poderia imaginar em escrever isso para o teatro. Levei alguns anos, cinco anos, para digerir e refletir sobre meu papel nisso tudoÉ muito duro constatar que eu fui omisso e fiquei preso na minha própria dor. Me libertar disso, com o espetáculo, foi como aprender a voar.

[FC] – Em um dos vídeos que permeia o espetáculo, você aparece falando sobre a forma que gostaria que a história fosse contada: um ato seria mais denso e os outros dois, com escapes de humor. Foi uma forma de tornar a trama mais palatável tanto para o público, quanto para você mesmo, haja vista sua participação direta como um dos protagonistas que vivenciou as experiências narradas no espetáculo?

[NB] – Naquele momento, uso minha participação com duas intenções: a primeira como forma de quebrar o fluxo emocional que o público está sendo levado. É um recurso brechtiano de distanciamento. Assim que começa a peça já dizemos que o Luís Antônio morreu e mesmo assim a aproximação do final já cria na plateia uma comoção que seria impossível de segurar se não fossem essas quebras. O segundo motivo é para o público perceber que planos são feitos para serem desrespeitados. Uma das minhas maiores qualidades é me desrespeitar, não me levar a sério. O que eu falo ali é o contrário do que acontece em cena.

[FC ] – Ter feito essa peça, que traz experiências difíceis que você passou com seu irmão, de uma forma tão explicita, em um diálogo sem subterfúgios junto ao público, foi uma forma de exorcizar as memórias ruins que ainda guardava de seu irmão, e passar a enxergá-lo de uma forma mais próxima, como a um irmão, de fato? Qual foi o seu objetivo ao trazer ao público essa história pessoal tão interessante quanto dolorosa? Como encara a figura/alma de seu irmão agora? Sente-se reconciliado com ele?

[NB] – Sinto que nos perdoamos. Como eu digo no final da peça e do livro, foi um pedido de desculpas por eu não ter sabido lidar com isso e durante os ensaios, sim, os ensaios foram muito duros para mim, era como se eu fosse tomando o perdão dele em doses homeopáticas, e me perdoando também. Quando você olha pra peça, os personagens estão lá, mais vivos que nunca, e era possível eu enxergá-los de muitas outras formas.

Digo: quem seria capaz de condenar meu pai pelas surras no meu irmão? Qual informação nós tínhamos nos anos 1960 sobre a transsexualidade? Quem poderá jogar alguma pedra sobre alguém. Como já disse,Luís Antônio-Gabriela é um exercício de perdão pleno e irrestrito.

[FC] – Qual foi o motivo de escolher uma atriz (Verônica Gentilin), ao invés de um ator, para interpretar o jovem Nelson Bolinho Baskerville?

“Luís Antônio-Gabriela é um exercício de perdão pleno e irrestrito.”[NB] – Em primeiro lugar porque a Verônica pediu pra fazer o papel. Fiquei lisonjeado pelo desejo dela. Ela dizia que se interessava mesmo era pelo Bolinho e gostaria de “defende-lo”. Não tive dúvidas. Narro na peça/livro que, depois de ter sido “seduzido” por meu irmão e tê-lo visto se transformar em mulher, me trancava no banheiro todas as tardes para olhar meus peitos que cresciam (fase adolescente), pensando que eu ia virar travesti também. Era um pânico imaginar que todos descobririam e que eu ia apanhar muito, como meu irmão. Então, nada melhor que uma menina pra me representar (e ela o faz maravilhosamente bem). Em segundo lugar, a peça não é realista, lanço mão do teatro épico brechtiano, onde não é necessária a verossimilhança de gênero.

[FC] – A aposta em aliar ao teatro elementos de diversas outras vertentes artísticas, como a pintura, a música/canto, as artes plástica, o cinema/documentário, a dança/balé, nasceu durante o processo de construção da peça, ou foi algo previamente pensado? Como se deu esse processo de criação?

[NB] – Isso são experiências minhas que já vinham desde os tempos do teatro-escola Célia Helena, desde 1991, onde comecei a pesquisar a forma épica de teatro. Quem viu meus espetáculos anteriores sabem disso: 17XNelson – Parte 1, Camino Real, de Tennessee Williams, O Despertar da Primavera, enfim, eu já misturava todos esses elementos desde 1991 – porque acredito na transversatilidade da linguagem, acho menos puro, menos ingênuo – não quero fazer um teatro limpo, quero que o espectador passe por uma experiência rica e sensorial, muito mais que racional.

[FC] – Além da dramaturgia de Bertold Brecht, qual foram (são) suas outras referências como ator e diretor teatral? O espetáculo muitas vezes me trouxe lembranças da atmosfera onírica dos filmes de Federico Fellini, com uma das cenas, inclusive, a do pai repressor e violento, aludindo à Amarcord, e à figura despótica de Mussolini. É correta essa vinculação?

““É muito duro constatar que eu fui omisso e fiquei preso na minha própria dor. Me libertar disso, com o espetáculo, foi como aprender a voar””[NB] – Acho correta porque mexi com as suas referencias. Não sou exatamente felliniano, minhas referencias tem raízes no teatro de Hamilton Vaz Pereira, Tadeuz Kantor, Frank Castorf, Ostermeier, Zé Celso, Antunes Filhos e outros que estão fazendo ou fizeram um teatro que sempre me provocou. Por outro lado, gosto que meus espetáculos sejam mosaicos abertos a interpretações e por isso eles nunca são limpos, por isso o espectador nunca vai receber uma única informação porque, em minha opinião, nossos olhos estão acostumados a dezenas de informações ao mesmo tempo, é algo que nos é familiar.

[FC] – Em que sentido a peça pode auxiliar no processo de desconstrução de preconceitos e ideias petrificadas, sejam eles relacionados à sexualidade, sejam relacionados ao perdão ou relativização dos traumas, tão importante em nossa sociedade, porém ainda tão incipiente?

[NB] – Acho que a peça presta esse serviço. É comum escutarmos na saída do espetáculo alguém dizer que nunca mais olhará um travesti com os mesmos olhos. Acho que foi uma grande constatação saber que todos os transexuais têm histórias parecidas de expulsão do núcleo familiar, do sistema educacional, a ida para a rua, a prostituição, as drogas, a penitenciária. E ainda existem igrejas que “vendem” a cura para isso e um estado que os considera doentes.

Fique perto de um travesti. Você não vai virar travesti, ou gay, ou homossexual por causa disso. Então minha pergunta é: qual o medo? E o medo só pode ser que você descubra em você um homossexual que você tentou esconder toda a sua vida e é o grande motivo de sua infelicidade.

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Serviço

Luís Antônio – Gabriela

Até 16 de dezembro de 2012

Teatro Alfredo Mesquita

Av. Santos Dumont, 1770 – Santana [próximo à estação Carandiru do metrô]

Quinta a sábado, às 21h | Domingo, às 19h 

Ingresso: R$ 20 [inteira] | R$ 10 [meia]

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