Por dentro do bairro autônomo de Seattle

Em cidade conhecida, nos EUA, por sua rebeldia, manifestantes determinaram uma zona livre, após a polícia abandonar o distrito. Desde então, organizam cooperativas de trabalho, hortas comunitárias, e debatem sobre gentrificação e liberdade

Pessoas se reúnem ao redor da Delegacia Leste do Departamento de Polícia de Seattle, no Protesto Organizado do Capitol, mais conhecido como ‘Zona Autônoma do Capitólio’, em Seatle, Washington, em 14 de junho (Noah Riffe/Anadolu Agency via Getty Images)
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Por Katelyn Burns, na Vox, traduzido pela Carta Maior

Depois de oito dias de contínuos confrontos com manifestantes, funcionários do distrito leste da polícia de Seattle desocuparam o prédio na segunda-feira, 8 de junho, destruindo documentos e deixando o prédio vazio.

Entre os manifestantes, houve uma confusão inicial sobre o motivo pelo qual a polícia teria ido embora, mas os organizadores suspeitaram de uma armadilha.

“Parece que o que o Departamento de Polícia de Seattle queria fazer era abandonar a Delegacia Leste e esperar nas imediações, a poucos quarteirões de distância, para alguém tentar iniciar um incêndio no prédio e repetir o que estava acontecendo em Minneapolis”, Carla, uma manifestante que está sendo identificada por um pseudônimo para proteger sua privacidade, disse à Vox. “Então eles poderiam se apressar e dizer: ‘Agora uso da nossa força militar contra civis desarmados está justificada'”.

Mas não foi isso que aconteceu. Em vez disso, os manifestantes começaram a criar um bairro pacífico – e seguro – sem policiais. E os policiais não se deram ao trabalho de voltar.

A Zona Autônoma de Capitol Hill, ou CHAZ, como foi mencionada no início, começou como um meme, disse Carla. “Eu estava lá na manhã seguinte ao abandono do Distrito Leste, e a CHAZ era apenas uma piada que as pessoas estavam compartilhando, como ‘Oh, essa é uma zona autônoma’”, ela disse a Vox, referindo-se a uma área livre da estrutura e controle do governo local.

Mas a ideia logo deslanchou entre os manifestantes. Os funcionários da cidade apareceram, no dia seguinte ao abandono da delegacia, para remover as barricadas que a polícia havia criado para controlar os protestos, mas os manifestantes convenceram os trabalhadores a permitir que eles montassem barreiras para manter o tráfego da cidade fora da área. Eles acabaram sequestrando uma área de aproximadamente seis quarteirões no bairro central de Seattle, no bairro de Capitol Hill.

“Este é o núcleo urbano da cidade”, disse à Vox, Kshama Sawant, vereadora da cidade de Seattle, cujo distrito abrange a área de protesto. “É densamente povoado e tem uma longa história, incluindo o ativismo pelos direitos LGBT nos anos 80”.

Desde então, a CHAZ evoluiu para um centro de protestos pacíficos, liberdade de expressão política, cooperativas e hortas comunitárias. Os manifestantes convidaram a população sem teto cidade, que havia sido sujeita a uma “limpeza” em massa de comunidades de barracas por toda a cidade, para ficar no bairro. Foram realizadas noites de cinema, incluindo Mississippi Burning, sobre dois agentes do FBI que investigam linchamentos de negros e ativistas no Mississippi durante a era dos direitos civis.

“Houve um jogo improvisado de queimada”, disse Carla. “Há pessoas fumando maconha em círculos … e apenas conversando normalmente, e a 6 metros de distância, você tem esse grande grupo de pessoas ao redor de alguém com um megafone falando sobre marxismo”.

A zona autônoma, onde se pode ver centenas de pessoas por dia, é praticamente sem líderes, com decisões muitas vezes sendo tomadas por votação. Mas os voluntários entraram de qualquer maneira, fazendo de tudo, desde a distribuição de alimentos até a limpeza do lixo na área. A vibração do lugar é bem descontraída, disse Carla.

“É realmente difícil definir este lugar”, disse ela. “Este é um lugar que é construído e mantido por pessoas marginalizadas e elas são as vozes que estão impulsionando isso”.

No entanto, a mídia de direita pintou a CHAZ como uma espécie de zona de guerra, retratando o pequeno bairro como se estivesse se separando à força dos EUA. Embora os organizadores de protestos na área estejam compreensivelmente reticentes em falar com os repórteres – vários líderes de protestos não responderam aos pedidos de entrevista da Vox -, não há indícios da violência sugerida pelos semelhantes à Fox News.

Também há metas para os protestos. Os organizadores fizeram uma extensa lista de demandas em um post do Medium em 9 de junho, dividido em quatro categorias: sistema de justiça, saúde e serviços humanos, economia e educação. Eles incluem o retirada do financiamento ao Departamento de Polícia de Seattle, o fim do ‘oleoduto escola-prisão’ e a ‘de-gentrificação’ de Seattle, entre muitas outras demandas.

Após nove dias da criação da zona autônoma, seu nome também evoluiu, como agora é conhecido como Protesto Organizado do Capitol Hill, ou CHOP. Mas, independentemente de como é chamado, a série de eventos que criou a zona autônoma foi uma demonstração extraordinária da organização dos manifestantes – e da incompetência da polícia.

Os protestos que deram origem ao CHOP

Provocados pela morte de George Floyd nas mãos da polícia em Minneapolis, Minnesota, protestos em massa eclodiram em todo o país nas últimas semanas, e Seattle assistiu a algumas das mais intensas manifestações.

“Tem havido vários protestos em toda a cidade diariamente”, disse Sawant à Vox. “Um dos principais campos de batalha aconteceu no cruzamento da 11a com a Pine, em Capitol Hill.”

De acordo com Sawant, que estava no protesto no Capitólio na noite de 7 de junho, que sofreu a mais intensa repressão policial da semana, foi a polícia quem primeiro se tornou violenta contra manifestantes pacíficos da região.

“Num momento eu estava tendo conversas políticas com um grupo de jovens sobre como combatermos a violência policial e o racismo e como isso se conecta ao próprio capitalismo”, disse ela. “E no momento seguinte, senti spray de pimenta nos meus olhos. E alguns instantes depois, houve granadas de gás lacrimogêneo e explosões repentinas. Alguém contou centenas delas na manhã seguinte.

A violência das ações da polícia contra manifestantes pacíficos enviou ondas de choque por toda a cidade progressista. Durante a semana anterior, os pedidos de renúncia da prefeita de Seattle Jenny Durkan começaram a aumentar.

“Essa violência está à porta do establishment democrata e da prefeita Durkan”, disse Sawant. “Começaram a haver pedidos de renúncia a Durkan porque as pessoas ficaram horrorizadas com a violência. As pessoas ficaram surpresas que esta fosse a Seattle em 2020.”

No dia seguinte ao protesto, a polícia desocupou o prédio da delegacia e, mesmo agora, mais de uma semana depois, ninguém sabe quem a ordenou. Nem Durkan, nem a chefe de polícia Carmen Best assumiram a responsabilidade. “Nos pediram para fazer um plano operacional caso precisássemos sair”, disse Best em entrevista coletiva na quinta-feira. “A decisão foi tomada. Ainda estamos avaliando como essa mudança ocorreu, mas não partiu de mim.”

No entanto, Best contestou a caracterização de que foi abandonado em primeiro lugar. “Não abandonamos a delegacia, mas tivemos que remover pessoal por um curto período de tempo”, disse Best ao programa Good Morning America na sexta-feira.

Embora a polícia ainda não tenha se movido diretamente contra os manifestantes, policiais foram vistos dentro e ao redor do prédio da delegacia nos últimos dias, de acordo com relatos da mídia social.

Pânico da direita pela zona autônoma de protesto

Os primeiros relatos da mídia sobre a zona autônoma, especialmente na Fox News e em toda a mídia conservadora, retratavam a zona autônoma como uma espécie de ameaça anarquista à sociedade. Uma notória transmissão ao vivo da Fox News incluía uma legenda indicando que a rede estava reportando da fronteira EUA-CHAZ, como se a zona autônoma não fizesse mais parte dos Estados Unidos.

Além disso, vários meios de comunicação de direita informaram que os empresários locais haviam sido abordados por anarquistas armados que exigiam pagamentos de proteção semelhantes a uma quadrilha. Desde então, isso foi desmascarado pelos empresários que explicaram que era falso e que as empresas locais estavam aumentando as vendas, essenciais depois de terem sido atingidas pela pandemia de coronavírus.

Então, em 12 de junho, a Fox News foi flagrada pelo Seattle Times por criar no Photoshop uma imagem de um homem armado com uma máscara verde no meio de imagens de manifestantes na área.

Mas os relatos iniciais foram suficientes para chamar a atenção do presidente Donald Trump. Em 11 de junho, Trump tuitou para o governador de Washington, Jay Inslee e Durkan, para “retomar” a cidade à força antes de ele ser obrigado a intervir.

As pessoas no local, dentro da zona de protesto, têm incentivado uns aos outros a não acreditarem em relatos da mídia ou rumores sobre o que está acontecendo na zona autônoma, a menos que eles mesmos vejam.

“É um jogo de telefone”, disse Carla. “Adquiri o hábito de dizer que se você não conhece a pessoa com quem está falando e se não tem o contexto completo de um videoclipe ou de um clipe de áudio, basta assumir que é desinformação deliberada. Pergunte a si mesmo quem pode ganhar com esse tipo de desinformação. ”

Vida dentro do CHOP

Uma das razões para toda a confusão da mídia conservadora é que zonas autônomas como essa não acontecem com tanta frequência. Como o CHOP, o Camp Maroon, na Filadélfia, é uma zona autônoma recentemente criada por pessoas sem-teto, com sua própria lista de demandas para autoridades municipais e estaduais.

Mesmo com os relatos imprecisos, isso não significa que não haja discórdia no CHOP. Segundo Carla, a mudança de nome e a subsequente confusão vieram de uma luta interna entre dois grupos de manifestantes com visões diferentes da área. Por dias, disse Carla, houve uma luta pelo poder entre os organizadores que viam a zona autônoma como um protesto pacífico e organizado contra a violência policial, e outro grupo que queria que o CHOP se tornasse mais um espaço anarquista onde pessoas marginalizadas poderiam obter ajuda mútua quando necessário.

Embora o protesto tenha alguma liderança frouxa, existem poucas estruturas formais. Sawant compara o espaço à “Noite das 500 tendas” durante o movimento Occupy Wall Street em Seattle, em outubro de 2011, do qual ela fazia parte. Naquela ocasião, os manifestantes do Occupy conseguiram afastar a polícia de seu espaço, mas a polícia voltou e desocupou a área onde os protestos ocorreram.

Já, disse Sawant, o CHOP sobrevive ha mais tempo do que o Occupy conseguiu sobreviver, ele durou apenas três dias. Mas ela disse que espera que a polícia desocupe a área em algum momento no futuro próximo. “Não acho que possamos, de forma alguma, supor que a polícia não voltará e não atacará especificamente esse espaço”, disse ela. “Acho que devemos pressupor que isso pode acontecer a qualquer momento, porque foi exatamente o que aconteceu no Occupy“.

Nesse meio tempo, os manifestantes conseguiram criar um espaço livre da polícia, no qual pessoas negras, indígenas, pessoas de cor, pessoas queer e sem casa se sentem especialmente seguras. O espaço até se tornou uma atração turística para famílias brancas e progressistas mais ricas.

“Conversando com meus amigos e conversando com duas pessoas no local, continuo ouvindo as pessoas dizerem: ‘Nunca me senti tão seguro andando na cidade’”, disse Carla, observando que a arquitetura anti-sem-teto e a sensação corporativa do bairro em grande parte cedeu a grafites e rostos amigáveis. “O conhecimento de que a polícia não está lá [criou] a sensação de que este é um espaço que pertence a todos.”

Sawant tem uma explicação mais complexa. “Temos interesse em ter bairros seguros, mas o que torna os bairros inseguros não é a ausência de polícia”, disse ela. “O que torna os bairros [e] vizinhos inseguros e o que gera as condições para o crime são, predominantemente, a desigualdade econômica e a injustiça.”

De sua parte, Sawant está entrando com várias medidas na Câmara da cidade para atender às demandas dos manifestantes, incluindo transformar o prédio da Delegacia Leste em um centro comunitário, cortar o orçamento da polícia da cidade e banir permanentemente o uso das chamadas armas não letais contra os manifestantes. Polícia.

Carla e Sawant esperam que o espaço persista no futuro como um local de protesto e organização política. Mas Sawant também observa que conquista foi mostrar ao mundo, em primeiro lugar, que esses protestos não precisam de duras repressões.

“Apenas alguns dias atrás, o mesmo espaço em Capitol Hill era um cenário de guerra, com a polícia infligindo 100% de violência e brutalidade contra manifestantes pacíficos”, disse Sawant. “Desde que os jovens conseguiram obter essa vitória política no campo de batalha, eles conseguiram demonstrar [que podem criar um espaço] que é acolhedor, pacífico e multirracial”.

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