Pataxós pedem socorro e justiça no Sul da Bahia
Recente operação policial em território que aguarda homologação resultou em prisões e tumulto, com uso de armas letais. Há sinais de retaliação ruralista à luta pela retomada indígena de suas terras. Enquanto o governo federal adia demarcações, aldeias sofrem novas ameaças
Publicado 10/04/2025 às 18:07

Leandro Barbosa/ISA
Por Leandro Barbosa, no ISA
No extremo sul da Bahia, o povo Pataxó resiste nas Terras Indígenas Barra Velha, Barra Velha do Monte Pascoal, Comexatiba e Águas Belas. Em meio à violência de fazendeiros, grileiros e forças policiais, lideranças pedem socorro — e justiça.
“Essa terra é nossa desde antes de 1500. Não estamos invadindo nada de ninguém. Cada canto desse território é sagrado. É onde nossos encantados vivem”, afirmou o cacique Suruí Pataxó ao Instituto Socioambiental (ISA), logo após seu povo ter sido alvo da Operação Pacificar, quando 150 policiais civis e militares da Bahia adentraram a TI Barra Velha do Monte Pascoal para cumprir 12 mandados de prisão e sete de busca e apreensão, no dia 20 de março.
Durante a operação, 11 indígenas foram presos. Porém, nesta terça (08/04), sete deles tiveram a liberdade concedida, após pedido da Defensoria Pública do Estado. Os quatro restantes ainda não tiveram o pedido de habeas corpus deferido.
Em nota, a Polícia Civil afirmou que a ação buscava desarticular grupos armados de “supostos indígenas” que, “a pretexto de estarem atuando em ‘retomadas’ de territórios de seus ancestrais, agem com violência e grave ameaça contra trabalhadores e proprietários rurais”.

Leandro Barbosa/ISA
Afirmação que Suruí contesta. “É muita perseguição. Tem vários dos nossos com mandados de prisão. Eles alegam que a gente é invasor, falsos índios, criminosos. Que tomamos a terra para roubar coisas dos ruralistas”, explica. “Mas a história é outra: nós não estamos invadindo nada de ninguém, como eles chamam. Apenas estamos ocupando o que é nosso, que é uma terra de ancestralidade da comunidade pataxó”, afirma o cacique.
A operação policial ocorreu dias após uma comitiva de lideranças do povo Pataxó viajar até Brasília para exigir do governo federal a assinatura da portaria declaratória da TI Barra Velha do Monte Pascoal e denunciar o cenário de violência, grilagem e omissão estatal que tem marcado a região. O que levou o Conselho de Caciques da TI Barra Velha a publicar uma carta, onde afirma que a operação foi “uma movimentação além de suspeita, estranha e com cara de retaliação”.
“Que seja apurado e responsabilizados os agentes públicos e políticos envolvidos nesta operação; inclusive a inobservância e respeito aos nossos direitos. Bem como as violações contra os direitos das crianças e das pessoas mais vulneráveis, vítimas da violência que estamos sofrendo”, diz trecho da carta, que também denuncia a violência policial.
Nesta semana, os Pataxó estão de volta a Brasília para participar do 21º Acampamento Terra Livre (ATL) e denunciar a violência que os aflige. “Vamos dançar Pataxó / Pelo parente que morreu / Agradecemos ao pai Tupã / Pela vista que nos deu”, eles cantaram ao ocupar a tenda principal do acampamento iniciado na segunda-feira (07/04).
“A gente costuma vir ao Acampamento trazer algumas demandas, mas dessa vez a gente veio numa forma de luta – de luto, na verdade. Luto por tudo que está acontecendo no nosso território”, conta Apêtxiênã Pataxó, liderança da juventude pataxó, que revela que algumas das 150 pessoas da delegação presente no ATL tiveram de sair escoltadas de suas terras.
“Teve um massacre no ano de 1951, quando nosso povo foi praticamente exterminado, e com toda a luta dos nossos velhos a gente conseguiu reconstruir. E hoje esse massacre está retornando, só que de uma forma bem mais visível”, analisa o jovem, lembrando da repressão policial sofrida durante o “Fogo de 1951”. Apêtxiênã denuncia: “O nosso povo está morrendo lá na base, injustamente estão presos, então a gente vem pedir que as autoridades olhem pelo povo Pataxó”.

Indignação e frustração
O encontro com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, no dia 12 de março, era aguardado com expectativa pela comitiva pataxó que foi a Brasília — mas terminou em frustração e revolta.
“Foram mais de 40 horas de estrada. A gente foi pedir proteção, pedir que o governo faça o que a Constituição manda. E saímos de lá com mais dor”, relata a liderança indígena Uruba Pataxó.
Segundo Uruba, a reunião com o ministro foi marcada por falta de escuta, pressa e desrespeito. A liderança conta que o ministro chegou atrasado, permaneceu pouco tempo e demonstrou mais preocupação com um outro compromisso, que teria após o encontro, do que com os assassinatos e conflitos relatados pelos Pataxó.

“Ele falou que só podia ficar 30 minutos porque tinha um compromisso, uma cerimônia que não podia perder. Nem deu boa noite. Foi direto dizendo que não dava para assinar a demarcação, que podia cair na Justiça”, disse Uruba.
Nesta terça-feira (08/04), a 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF) divulgou uma nota técnica recomendando que o ministério comandado por Lewandowski assine imediatamente as portarias declaratórias de três Terras Indígenas no Sul da Bahia, incluindo Barra Velha do Monte Pascoal e duas outras do povo Tupinambá.
A violência contra os Pataxó também foi pauta de uma reunião do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que, além de recomendar a declaração da área pelo MJSP, indicou o deslocamento da Força Nacional à região.
De acordo com o relato dos Pataxó, na reunião de março o ministro justificou a inércia do governo em avançar no processo de demarcação afirmando que os invasores das Terras Indígenas são pessoas muito influentes e com grande poder econômico, capazes de contratar os melhores advogados para reverter qualquer ato administrativo.
“Ele disse assim, com todas as letras: ‘Hoje, quem manda no Brasil é o dinheiro’”, lembra Uruba.
A liderança reagiu imediatamente:
“Falei pra ele que nossa terra tá banhada de sangue, que nosso povo tá morrendo, e que quem tem que mandar no Brasil é a Constituição, não o dinheiro. E se o governo não demarcar, a gente vai continuar fazendo as retomadas”.


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Manobras jurídicas
A TI Barra Velha foi demarcada administrativamente em 1981 e homologada em 1991 com uma área de apenas 8.627 hectares — onde se concentram hoje oito aldeias, entre elas, a Aldeia Barra Velha, chamada pelos Pataxó de Aldeia Mãe. Desde então, os Pataxó afirmam que a área não corresponde à totalidade de seu território tradicional.
Segundo o antropólogo José Augusto Sampaio, essa primeira demarcação não respeitou os critérios legais nem levou em conta a história e a territorialidade dos Pataxó. Na época, o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar, e o processo foi conduzido por dois órgãos ligados ao regime: a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), criada em 1967, e o extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), antecessor do Ibama.
“Foi uma delimitação arbitrada pela Funai e o IBDF, sem nenhum estudo. Por isso, não atende aos requisitos constitucionais do que são as Terras Indígenas. A área foi definida por conveniência administrativa, não por critério técnico ou histórico. Foi uma decisão imposta, não dialogada”, explicou Sampaio, que é professor na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e presidente do conselho diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí).
Firmado em 1980, esse acordo entre os órgãos federais envolvia a sobreposição de Barra Velha pelo Parque Nacional do Monte Pascoal — criado em 1961, quando a permanência dos Pataxó foi restringida a uma área de apenas 210 hectares. “Era a ditadura. Tudo foi feito sem respeitar o direito dos povos indígenas, como se estivessem lidando com posseiros comuns”, explica Sampaio.
Segundo um artigo da antropóloga Sheila Brasileiro publicado pelo ISA em 2004, a tentativa de regularização da TI Barra Velha, homologada em 1991, foi marcada por irregularidades, contrariando a legislação indigenista de então e fazendo com que metade do território de ocupação tradicional dos Pataxó – já identificado por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) –, fosse cedida ao Parna. Aos Pataxó, restaram uma terra de brejos arenosos do entorno do Monte Pascoal e um longo histórico de contendas com os órgãos ambientais.
Relembre: Os Pataxó e o Monte Pascoal
“Foram muitas formas de violências que os indígenas sofreram por parte dos servidores do IBDF, especialmente as mulheres. Essas violações marcaram gerações”, explica Milene Maia Oberlaender, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA.
Ela, que atuou por oito anos como gestora do Parna Monte Pascoal, conta que as famílias eram impedidas de colherem suas próprias plantações, o que gerou fome em grande parte da população pataxó. “Eles eram obrigados a coletar alimentos durante a noite, para que não fossem ‘pegos’ pelos fiscais, se sentiam ladrões em sua própria casa. Essas agressões psicológicas marcam até hoje os Pataxó”, contextualiza.
Foi apenas após a promulgação da Constituição de 1988, que reconheceu de forma explícita os direitos originários dos povos indígenas sobre seus territórios tradicionais, é que os Pataxó puderam iniciar, com apoio do Ministério Público Federal (MPF) e da universidade, o processo de regularização de sua verdadeira terra.
No início dos anos 2000, com a retomada pelos Pataxó do Parna Monte Pascoal e por ações do MPF, a Funai finalmente deu início aos estudos técnicos necessários para reparar os feitos do passado e corrigir os limites da TI Barra Velha.
O trabalho foi concluído em 2009, resultando na identificação da TI Barra Velha do Monte Pascoal, uma área de 52.748 hectares, distribuída pelos municípios de Itabela, Itamaraju, Prado e Porto Seguro. O relatório técnico confirmou que a área corresponde ao território de ocupação tradicional dos Pataxó, abrangendo e ampliando significativamente os limites da porção de terra demarcada em 1991.
Aprovado e publicado pela presidência da Funai, o relatório de identificação e delimitação foi enviado ao Ministério da Justiça para emissão da portaria declaratória — mas travou ali. Em parte, por conta de ações judiciais movidas por fazendeiros e, posteriormente, pela mudança de postura política nos governos Temer e Bolsonaro com relação às demarcações de TIs.

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Com o novo governo, os Pataxó voltaram a pressionar. O processo chegou à mesa do Ministério da Justiça em novembro de 2023, após passar pelo crivo do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Desde então, aguarda assinatura.
Em 2024, uma decisão da Justiça Federal determinou que a Funai e o Governo Federal concluam os trâmites da revisão de limites e a demarcação da TI Barra Velha do Monte Pascoal em até dois anos, sob pena de multa de R$10 milhões. Ainda assim, nenhuma medida concreta foi tomada até o momento.
“Essa terra está na mesa do ministro há mais de um ano. E ele não assina. Nem devolve. Nem explica. Só enrola”, conclui Sampaio.
Enquanto o processo segue travado, as comunidades relatam situações de conflito, medo e resistência. “Nós já fizemos a nossa parte. A terra é nossa e já está ocupada por nós. Falta o Estado fazer o que a Constituição manda”, afirma o Cacique Suruí.
Autodemarcação e a resposta a tiros
O processo de autodemarcação começou em 1999. Desde então, os Pataxó vêm sendo reprimidos a cada novo avanço – até 2022, 11 aldeias foram reocupadas, segundo o Mapa da Autodemarcação Pataxó da TI Barra Velha do Monte Pascoal, que registra os avanços na autodemarcação até 2022 e foi produzido pelo Observatório Pataxó do Território. Hoje são cerca de 20 áreas reocupadas. Saiba mais.

ISA, com informações do Observatório Pataxó do Território
“Tiraram os parentes à força da bala. E a gente voltou. Porque essa terra é nossa. Já que o governo não demarca, a gente faz a autodemarcação. E por isso somos perseguidos, presos, mortos”, afirma o Cacique Suruí.
A escalada da violência nas aldeias pataxó tem crescido ano após ano. Em março de 2025, o indígena Vitor Braz, de 53 anos, foi assassinado a tiros por pistoleiros em um ataque noturno à Aldeia Terra à Vista, na TI Barra Velha do Monte Pascoal. Em janeiro de 2023, dois jovens — Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e Nauí Brito de Jesus, de 16 — foram executados por homens armados. Ambos viviam em uma aldeia na Fazenda Condessa, propriedade rural localizada dentro dos limites da mesma TI, reocupada em 2023.
Na TI Comexatiba, território vizinho, no município de Prado, João Celestino Lima Filho, de 50 anos, morreu após ser baleado durante a reocupação da Fazenda Japara Grande, sobreposta à TI, realizada no último dia 4 de abril. A confirmação da morte do índigena foi dada pela Polícia Civil de Teixeira de Freitas, no domingo (06/04). Até agora ninguém foi preso. Em 2024, o adolescente Gustavo Silva da Conceição, de 14 anos, foi morto com um tiro na nuca durante um ataque no mesmo território.
A TI Comexatiba, também conhecida como Cahy-Pequi, é um território tradicionalmente ocupado pelos Pataxó que enfrenta a mesma lógica de exclusão e racismo: desmatamento, loteamento ilegal e omissão do Estado em finalizar a demarcação. Saiba mais.
São constantes as denúncias de cerco armado imposto por pistoleiros, que incluem queima de casas e intimidações contra mulheres. A terra também é sobreposta por uma Unidade de Conservação, o Parque Nacional do Descobrimento.
Esses assassinatos fazem parte de um número ainda maior. Um documento destinado a Lewandowski pela subprocuradora-geral da República Eliana Peres Torelly de Carvalho, obtido por Sumaúma, aponta que, nos últimos 11 anos, 74 pessoas pataxó foram assassinadas no extremo-sul baiano, a maioria na luta pela terra. “Nós pedimos socorro às autoridades! Que demarquem o nosso território. Só assim esses conflitos cessarão”, frisa Suruí.

Leandro Barbosa/ISA
Diante da omissão histórica do Estado brasileiro e da escalada de violências sofridas nos territórios, as lideranças Pataxó recorreram à esfera internacional. Em março de 2025, o Conselho de Caciques da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal entregou à Organização das Nações Unidas (ONU) um dossiê completo denunciando assassinatos, perseguições, invasões, conivência de autoridades locais e a paralisação da demarcação da terra.
Segundo o documento, a repressão às autodemarcações pataxó não é obra do acaso, mas resultado de ações orquestradas por grupos com forte interesse econômico na manutenção da posse ilegal das terras, para a produção, entre outros, de cacau e café.
Entre os principais atores contrários à demarcação das terras pataxó estão fazendeiros, grileiros e milicianos que atuam em conluio para impedir o avanço das autodemarcações. De acordo com o dossiê, lideranças indígenas são constantemente ameaçadas por representantes do agronegócio local e por pistoleiros contratados para intimidar e atacar as comunidades.
O documento aponta que setores do Estado — incluindo servidores públicos, representantes do sistema judiciário e órgãos de proteção aos povos indígenas — têm se omitido ou mesmo atuado ativamente contra os indígenas, favorecendo interesses privados sob o disfarce de legalidade.
Além disso, ao lado dos grileiros, milícias armadas ligadas ao narcotráfico consolidaram uma estrutura de poder paralela nas áreas mais vulneráveis do território. Esses grupos impõem o medo por meio de agressões, torturas e assassinatos, e tentam controlar o cotidiano das aldeias, inclusive interferindo na vida cultural e espiritual dos Pataxó. “Jovens são cooptados, lideranças ameaçadas, e diversas famílias vivem em estado constante de alerta”, denuncia Uruba.
O documento exige a responsabilização do governo federal e pede apoio internacional para garantir a proteção das lideranças e a conclusão do processo demarcatório. “A gente cansou de pedir ajuda para o governo. A ONU foi o último caminho que encontramos para dizer: estão matando nosso povo. E a terra, que é nossa por direito, continua na mão dos fazendeiros”, desabafou Uruba Pataxó.
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