Parasita, fruto de país que se preocupa com cultura

Hoje, Coreia do Sul lança um filme novo por semana. Para firmar cinema nacional, políticas públicas definiram cotas de exibição obrigatória, que agora abrem espaço a filmes independentes e garantem diversidade da produção

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Por Rafael Barifouse, na BBC Brasil

Um filme falado em outro idioma que não o inglês nunca havia ganho o prêmio principal da cerimônia. Foi a consagração final do longa sul-coreano, que já havia vencido outras três das seis categorias em que concorria — diretor, filme internacional e roteiro original.

Mas a coleção de estatuetas de Parasita, o mais premiado da noite, tem um significado que vai além deste único filme.

O sucesso passa por uma década de ouro distante, um período de baixa durante a ditadura e um renascimento calcado em apoio do governo, fortalecimento da cultura e investimento de grandes grupos privados.

O cinema sul-coreano não havia recebido até então uma única indicação sequer ao Oscar, apesar de se reinventado a partir dos anos 1990, tornando-se um sucesso de bilheteria e crítica e conquistando prêmios nos mais importantes festivais do mundo.

O Oscar foi a forma de Hollywood, após ter ignorado os filmes da Coreia do Sul por tanto tempo, finalmente reconhecer sua qualidade, diz Marc Raymond, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Kawngwoon, em Seul, na Coreia do Sul.

Parasita é um filme excelente, feito por uma indústria excelente. Era vergonhoso que nenhum filme sul-coreano tivesse sido ainda indicado ao Oscar. E, de repente, veio uma enxurrada de prêmios. Foi um reconhecimento dos trabalhos feitos há quase duas décadas pelo país”, afirma Raymond em entrevista à BBC News Brasil.

Ditadura militar e redemocratização

A Coreia do Sul começou a produzir seus primeiros filmes no começo do século 20, diz Raymond, e sua indústria atingiu um ponto de excelência nos anos 1950, que podem ser considerados “uma era de ouro” do cinema no país. Apesar de não ter sido reconhecido internacionalmente na época, o movimento daquela década foi bem sucedido nacionalmente.

Em 1961, um golpe militar deu início a um longo período de ditadura, que durou 26 anos e teve impacto bastante negativo sobre a indústria cinematográfica.

“A censura se instalou. Leis dificultavam a criação de estúdios e restringiam a quantidade de filmes independentes e mais criativos que eram financiados e produzidos. Nos anos 1970, a qualidade caiu bastante, e, nos anos 1980, piorou ainda mais. Os filmes não eram populares nem entre os coreanos, que preferiam os estrangeiros”, afirma Raymond.

Um movimento amparado na crescente insatisfação popular com o regime militar levou à convocação de eleições diretas e à restauração de direitos civis em 1987, quando teve início a redemocratização da Coreia do Sul.

Parte dos integrantes desse movimento pró-democracia e de esquerda passaram a ter mais poder na sociedade e um interesse maior pelas artes e pelo cinema, explica Raymond.

“Estas pessoas buscaram criar um novo cinema nacional com filmes que tratam das questões sociais e políticas que ocorrem no país. Assim, o cinema sul-coreano cresceu gradualmente e ser tornou mais respeitado até que, no início do século 21, passou a fazer filmes de sucesso que competem domesticamente com Hollywood.”

Incentivo público, cotas, investimento privado e festivais

Algumas medidas do governo contribuíram para transformar a produção cinematográfica sul-coreana. Uma das principais políticas foi um sistema de cotas para filmes nacionais nos cinemas do país.

Criado em 1966, ainda durante o regime militar, o programa previa um mínimo de dias de exibição para produções nacionais — a exigência foi progressivamente ampliada até atingir seu pico, de 146 dias, em 1985, dois anos antes do fim da ditadura e mantida neste patamar pelo regime democrático até 2006.

“Depois do período militar, também foram criados um conselho cinematográfico, uma academia de cinema e um arquivo do cinema coreano, para uma valorização do cinema por meio do incentivo e financiamento público da produção, distribuição e exibição de filmes do país”, diz Josmar Reyes, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e pós-doutorando em cinema sul-coreano na Universidade Sorbonne, em Paris.

Isso fez parte de uma política mais ampla do país de promover a chamada “onda coreana”, ou hallyu, ao investir em diferentes setores do culturais do país, como música pop, quadrinhos, séries de TV e novelas, além do cinema.

“É uma política de soft power do governo para fazer com que a cultura coreana seja mais conhecida mundialmente e ampliar assim a influência do país sobre o que acontece no mundo”, diz Cecília Mello, professora de cinema da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP).

Reyes também destaca o projeto de reforma educacional promovido pelo governo que, entre outras coisas, incluiu o cinema no currículo escolar. “Os alunos estudam cinema, é um assunto cobrado no vestibular, o acesso dos estudantes aos filmes é facilitado. Isso cria um público para o cinema e as artes em geral”, afirma o pesquisador.

A abertura de escolas e cursos de cinema a partir dos anos 1990 também teve um papel importante nesta reinvenção do cinema sul-coreano, ao promover uma mudança geracional na indústria.

“Hoje é mais comum as pessoas saírem dos cursos e já fazerem um filme, em vez de irem galgando postos até se tornarem diretores. Isso rejuvenesceu e revitalizou as produções da Coreia do Sul”, diz Mello.

Com a popularização do cinema e o sucesso de bilheteria de alguns filmes, grandes conglomeradores empresariais, como Samsung e Hyundai, passaram a investir em produções cinematográficas ao perceber que eram negócios lucrativos.

Também houve um apoio relevante do poder público e da iniciativa privada para a criação de festivais de cinema locais, como o de Busan, um dos mais importantes da Ásia atualmente.

“Estes festivais deram uma chance para os novos cineastas se desenvolverem e exibirem seus trabalhos e a elevar o patamar do cinema sul-coreano”, diz Raymond.

Uma política de sucesso

Desde então, produções como Oldboy (2003), O Hospedeiro (2006), A Criada (2016) e Em Chamas (2018) se destacaram no mercado internacional, conquistaram prêmios e atraíram atenção para o cinema que é produzido na Coreia do Sul.

“Há no cinema sul-coreano uma conciliação entre o cinema mais comercial e aquele dito de autor. O trabalhos de Bong Joon-ho são um grande exemplo disso. Ele e outros cineastas do país conseguem ser apreciados ao mesmo tempo pelo público mais geral e também aquele mais crítico e seletivo”, diz Reyes.

Esta reinvenção foi tão bem sucedida que, em 2006, diante de uma participação de mais de 50% das produções sul-coreanas no total de ingressos vendidos no país — e de uma pressão do governo americano para que houvesse mais espaço para as produções de Hollywood nos cinemas sul-coreanos —, o limite mínimo do sistema de cotas foi reduzido pela metade.

“Ao menos um filme nacional é lançado por semana. Todos os anos, quando se olha os dez maiores sucessos de bilheteria da Coreia do Sul, ao menos metade são filmes nacionais”, diz Raymond.

Atualmente, afirma o pesquisador, a discussão em torno das cotas no país não se dá mais entre filmes coreanos e estrangeiros, mas entre grandes lançamentos nacionais e filmes independentes.

“O objetivo é manter telas livres para produções menores. É uma tentativa da indústria de se regular para garantir que haja diversidade e que novos talentos surjam.”

Raymond diz que o exemplo sul-coreano deixa clara a importância de um país dar o apoio necessário para que sua indústria cinematográfica se fortaleça e consiga conquistar seu espaço globalmente. No entanto, a Coreia do Sul tem algumas características peculiares que tornam difícil replicar esse esforço.

“Talvez o mais difícil seja criar um público para o cinema. A Coreia do Sul é um país onde as pessoas não vivem em casas grandes e muitos jovens moram com os pais. Por isso, buscam ir para a rua para fazer alguma coisa, e o cinema se encaixa perfeitamente nisso. Não sei se ainda há sede pela experiência do cinema em outros países como aqui.”

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