“Pacote Moro”: o muito ruim e o pior

Das medidas que passaram na votação final, 71% ampliam o punitivimo. Caíram o excludente de ilicitude, a prisão em segunda instância e a plea bargain. Em tática questionável, parte esquerda votou com o governo. Valeu a pena?

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Por Patrick Mariano e Rafael Borges, na Revista Cult

A Câmara aprovou nesta quarta (4) alterações legislativas no direito e no processo penal, naquilo que se convencionou chamar de Pacote Anticrime, uma colcha de retalhos punitivistas que uniu uma proposta elaborada por comissão de juristas coordenada pelo ministro do STF Alexandre Moraes e outra apresentada pelo ministro da Justiça Sergio Moro. As duas propostas foram analisadas por um grupo de trabalho instituído para este fim. O debate gerado em torno deste fato permite traçar um retrato preocupante da questão penal na atualidade.

Em linhas gerais, o que se noticiou nos grandes conglomerados de comunicação foi que a aprovação, na forma como ocorreu, seria uma “desidratação” do projeto de Moro dado possível receio dos congressistas em “combater” a corrupção. Nos blogues de esquerda se vendeu a ideia de uma derrota de Moro em razão de sua inabilidade em lidar com o parlamento. A esquerda votou, com raras exceções, a favor do chamado texto alternativo. Alguns deputados desse espectro político chegaram a falar em vitória e invocaram a correlação de forças para justificar o apoio ao texto aprovado. Essas leituras estão equivocadas.

Moro não saiu derrotado porque nunca quis aprovar 100% do seu projeto. A lógica da sua relação com o Congresso é a mesma de Bolsonaro, pouco importa o que o parlamento fará. Se aprovarem tudo ele fatura, se aprovarem parte, também. Se não aprovarem nada, da mesma forma. É uma relação autoritária e não de composição. Basta ver a quantidade de painéis em defesa da proposta, com a foto do ministro, espalhadas pelo país. Só existiriam duas hipóteses em que se poderia cogitar a derrota de Moro: a não entrada na pauta ou uma votação que rejeitasse o texto.

O chamado “campo da esquerda” estava em uma aparente sinuca de bico: votar pelo texto alternativo e aprovar o “menos pior”, se ausentar do debate parlamentar ou votar contra e correr o risco de aprovar o “pior”. Uma justificativa para a opção foi o uso enviesado e, de certa forma, arrogante da exculpante da “correlação de forças”. Por óbvio, não se desconsidera que a realidade das forças no Congresso há muito se mostra desfavorável para a afirmação e garantias de direitos, mas isso não serve, por si, para sustentar a opção. Para aceitar essa justificativa como válida, o texto aprovado deveria ser bom para o sistema de justiça criminal ou ao menos, no balanço entre as boas e más medidas aprovadas, que o saldo fosse positivo.

Se o texto que Moro apresentou não poderia ser levado a sério, pois sequer foi acompanhando de justificativa – nem mesmo se observou alguma sistemática ou atenção às regras mínimas do processo legislativo em seu conteúdo, sendo mais um apanhado de ideias punitivas populistas salpicadas ao léu e enviadas ao Congresso -, o da Comissão presidida pelo ministro do STF tampouco poderia ter algo digno de nota. Ambos representam aquilo que existe de mais torpe na ciência penal.

Foram realizadas 59 alterações legislativas nos códigos penal e processual penal, Lei das Execuções, dos crimes hediondos, da lavagem de dinheiro, drogas, entre outros. Adotando como critério a ampliação do punitivismo e do estado policial ou a garantia direitos, temos um resultado desolador: 71% das alterações aprovadas são punitivistas, apenas 11% garantistas e, outros 17% não podem ser classificadas nestes termos.

Nas justificativas de seus votos, viram-se parlamentares de esquerda, muito dos quais bravos resistentes ao avanço do estado policial, listando quatro “conquistas” que teriam resultado da composição com o campo conservador: 1) a retirada da prisão em segunda instância; 2) a retirada do plea bargain; 3) a retirada da excludente de ilicitude em favor do agente de segurança e 4) a implementação do juízo de garantias.

Os três primeiros eram praticamente “bodes” que estavam na sala e que sabidamente não havia clima para aprovação por vários motivos. Nenhum desses pontos, isolada ou cumulativamente, tem aptidão para reduzir os níveis de maxiencarceramento que experimentamos e/ou qualificar o processo penal brasileiro. O juiz de garantias já estava no projeto de novo CPP e, de pouca coisa vale, se não mudar a mentalidade inquisitorial e o processo de formação de magistrados, nem mesmo se reformar a contento e sistematicamente a legislação.

Outro elemento é que nada garante que essas partes retiradas não poderão voltar ao debate em breve em textos e projetos de lei avulsos e durante a própria tramitação no Senado.

Por outro lado, o restante do texto aprovado aprofunda a tragédia social no sistema de justiça criminal na qual o Brasil se vê submerso. São medidas que aumentam o prazo para progressão de regime, tornam mais rigorosas as penas aplicadas, aumenta o tempo máximo de prisão para 40 anos, criando prisão perpétua de fato, além de fortalecer o lobby de empresas que trabalham com perfis genéticos.

Não há o que comemorar, infelizmente. Ainda que seja possível entender as batalhas e as negociações ocorridas nos debates de construção do texto normativo, dizer que o texto aprovado foi uma conquista, além de legitimar e exaltar um projeto assistemático e encarcerador, informa como ainda urge à esquerda compreender lições básicas acerca da função da pena em países capitalistas de economia periférica.

Não existe caminho de superação do quadro atual que não passe pela deslegitimação do estado policial, o fim da necropolítica e o reposicionamento dos direitos à vida e à liberdade como molas propulsoras do modelo democrático. Negociar garantias fundamentais e submetê-las a cálculos políticos, por mais respeitáveis e bem intencionados que sejam os nossos interlocutores, é algo que transborda de mandatos parlamentares do campo popular democrático. Deles se esperam luta, pedagogia, tática, estratégia e principalmente compromisso.

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