As “identidades” e a invisível luta de classes

No drama dos imigrantes, uma chave para compreender o estratagema das elites dominantes: querem converter conflito social a mera disputa entre etnias ou gêneros. É outra máscara da eterno esforço para dividir os explorados

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Por Nuno Ramos de Almeida | Imagem: Sebastião Salgado

A portuguesa Ana Telma Rocha interrompeu um direto da Sky News para expressar a sua revolta. Vive há quase 20 anos no Reino Unido. Serviu nesse país “em 32 empregos diferentes”, segundo confessa. Trabalha 63 horas semanais. Cria riqueza na Grã-Bretanha, mas só serve para trabalhar calada. Na hora de decidir, sobre o seu futuro e a sociedade em que vive, ela não é chamada.

“O que me preocupa é o estado das coisas, o estado da sociedade da qual uma pessoa fez parte durante 20 anos e do nada é apagada, é invisível”, diz.

A operação que permite descartar os imigrantes como se fossem lixo baseia-se numa correlação de forças que faz com que lhes seja negada a voz nas nossas democracias.

As sociedades europeias têm como modelo a Grécia antiga: não a sua elevação filosófica, mas o fato de só os nacionais terem alguns direitos, o resto são metecos, que servem para trabalhar calados.

Aqueles que trabalham têm a força do trabalho, mas a sua fraqueza política baseia-se na divisão. Metade dos pobres da Europa dirigem o seu ódio e rancor para a outra metade dos pobres, por razões tão curiais como não terem nacionalidade, “raça” ou religião que os mandantes de turno garantem que é a certa. Os pobres de todas as “raças”, credos e nacionalidades podem bater-se à paulada, mas o resultado é que ficarão sempre na mesma, pobres e subalternos.

A criação da invisibilidade é uma operação ideológica que se alicerça na privação de poder da maioria da população do planeta. É um poderoso instrumento que permite fazer várias coisas, desde não conceder direitos políticos aos imigrantes nos países europeus, até negar o direito à vida às milhares de pessoas que são literalmente jogadas ao mar para morrerem afogadas no Mediterrâneo. Gente que tem como único crime procurar uma vida melhor para si e para os seus.

Para os pobres se sentirem contra outros pobres e esquecerem que quem fica com a sua parte são os ricos é preciso um processo histórico, econômico, político e conseguir condicionar a forma como os oprimidos, migrantes ou não, veem a realidade. 

As migrações são um dos processos que se aceleram com a globalização. Tal como acontecem, no capitalismo globalizado, elas não derivam da liberdade para circular, mas da liberdade de explorar. Os imigrantes – mantidos propositadamente com poucos direitos sociais e nenhuns direitos políticos – são usados como tropa de choque para implodir os poucos direitos conquistados ao longo de gerações pelas classes operárias locais. Esta degradação das condições sociais para a maioria da população é acompanhada por uma outra operação ideológica de relevo: a tentativa de etnização do conflito social. 

Quem manda na política define um território e escolhe aqueles que são amigos e aqueles que são inimigos, como explicava Carl Schmitt. Quem consegue tornar hegemônicas essas regras ganha o tabuleiro do confronto político. As elites que mandam no capitalismo vendem-nos, nos países desenvolvidos, como uma divisão entre uma enorme classe média, a que eles também pertenceriam, e uma matilha de imigrantes que habitam nos territórios selvagens dos subúrbios.

Entre as elites autoritárias, do novo populismo de extrema-direita, e as elites com o discurso clássico, apenas muda o tom. Nos primeiros, os imigrantes devem ser controlados pela polícia e não ter apoios sociais; nas elites do bloco central dos interesses, os imigrantes não devem ter direitos mas devem ter caridade e reconhecimento da sua diferença cultural. Na maioria dos países da Europa os governos reconhecem com mais facilidade a existência de comunidades com culturas próprias que a existência de direitos sociais para toda a gente. 

Nessa operação ideológica , em que se divide a sociedade em classes médias e gente de fora, consegue-se fazer desaparecer as classes populares originárias do país e, mais importante, fazem-se desaparecer da vista das pessoas o fato das elites ganharem uma fatia cada vez maior do rendimento mundial. 

Transforma-se o conflito social num jogo de sombras em que se opõem comunidades culturais e étnicas diferentes, tornando invisível a luta de classes. Essa estrutura generaliza-se para a sociedade no seu conjunto. Todo o campo da luta social se torna um conflito entre identidades diferentes. A luta das mulheres pela igualdade, dos migrantes pelos direitos políticos e sociais, dos homossexuais pelo direito a não serem discriminados, dos negros contra o racismo deixam de ser lutas universais pela igualdade para passarem a ser apenas políticas identitárias. A ideologia dominante aprofunda divisões e identidades de modo a que nunca haja uma maioria social pela igualdade de todos, e para que toda a luta seja uma continua multiplicação de divisões entre aqueles que não têm nenhum poder. 

Blanqui esteve preso 37 anos. Na sua última prisão, nas vésperas da Comuna de Paris, escreveu um enigmático texto chamado “A Eternidade Conforme os Astros”. Páginas esquecidas que o malogrado pensador Walter Benjamin comparava a Baudelaire. Nelas, o homem das muitas conspirações dos iguais remetia para um universo frio e infinito as possibilidades de novas formas de vida e sociedade que triunfassem onde a humanidade tinha tropeçado. “Saberão por certo que o céu obedece às leis da igualdade, e encontra em si mesmo os recursos para escapar à morte. Mas saberão que esse combate da vida contra a morte é um drama que não tem nem começo nem fim, que obriga os que o tomam como modelo a travar um combate indefinidamente repetido, e certo apenas quanto a uma coisa, que nenhum final feliz se encontra no fim do caminho”.

Vendem-nos muitas vezes que a política é a arte do possível. E que qualquer acordo medíocre é melhor que uma divergência de princípios. É desta massa que é feita a atual Europa, onde se promete aos eleitores votarem em candidatos a presidente da Comissão Europeia, mas no fim, o Conselho Europeu resolve mandar fechar esse circo de ilusões e vender os lugares de poder à melhor licitação negocial.

Num livro de Slavoj Zizek, A Europa à Deriva, encontram-se duas citações da obra de Oscar Wilde, A Alma do Homem e o Socialismo: “É muito mais fácil ter-se simpatia para com o sofrimento do que ter-se simpatia para com o pensamento”, acrescentando-lhe uma outra passagem de Wilde em que este defende que o simples horror ao sofrimento e a caridade em relação à pobreza não fazem mais que prolongar as suas causas e aliviar a consciência dos responsáveis por essa situação. “Tentam, por exemplo, resolver o problema da pobreza mantendo os pobres vivos; ou, no caso de uma escola muito avançada, divertindo-os. Mas isso não é uma solução, é um agravamento da dificuldade. O objetivo adequado é tentar reconstruir a sociedade sobre uma base em que tal pobreza venha a ser impossível. E as virtudes altruístas têm, sem dúvida, impedido a realização de tal desígnio”, conclui o autor de A Importância de ser Ernesto.

Não é por acaso que Zizek escolhe o grande provocador britânico para inventariar aquilo que se propõe neste livro. O esloveno coloca-se na posição que mais gosta: a de provocador. Mas sempre vai dizendo algumas coisas fundamentais. A solução para a questão dos refugiados, apesar dos horrores das imagens, não passa pela simples caridade para resolver o problema imediato de centenas de milhares de pessoas; embora esse drama tenha que ser já resolvido, a urgência da ação não nos pode dissuadir de afirmar que essas pessoas são sujeitas de direitos e não apenas objetos de caridade. O autor defende que a resolução da crise humanitária não se faz pela abertura, maior ou menor, das fronteiras, mas por responder aos problemas globais e às suas implicações nos países de origem dos refugiados. Zizek defende, também, que não se pode deixar à extrema-direita o monopólio da proximidade das pessoas e da preocupação sobre a situação criada na Europa com o enorme fluxo de refugiados. É talvez aí o ponto mais polêmico do livro, a ideia que uma posição de abertura de fronteiras aqui e agora, é meramente uma posição simbólica de quem sabe que isso não acontecerá. Slavoj Zizek, num capítulo sugestivamente chamado “Quebrar os Tabus da Esquerda”, atira-se a uma concepção muito difundida da esquerda, dita multiculturalista, segundo a qual “um inimigo é alguém cuja história nunca ouvimos”.

Para o filósofo, “existe um claro limite para este procedimento. Também estaremos prontos a afirmar que Hitler era só um inimigo porque a sua história não foi ouvida? Ou, será que, pelo contrário, quanto mais conheço e ‘compreendo’ Hitler, mais Hitler é o meu inimigo?” E não se fica por aí, há em parte da esquerda a ideia que tudo o que vem dos oprimidos é necessariamente bom. Para além de defender que essas pessoas não sejam oprimidas, deveríamos, segundo essa esquerda, compreender de tal maneira a sua situação e circunstâncias, que tudo o que eles fazem deve ser defendido. Para o autor da Europa à Deriva, as coisas quase nunca são assim. Faz uma crítica similar a Etore Scola no filme Feios, Sujos e Malvados. A miséria não nos faz ser boas pessoas e gente aconselhável. Mas isso só reforça a convicção que se deve combater as causas que levam as pessoas a ser exploradas. No seu pensamento, a contemporização com os aspetos retrógrados da religião, em prol de um multiculturalismo fofo, não existem. Ele recupera a ideia de Marx que “a religião é o ópio do povo” ao defender que “o próximo tabu a ser descartado sem piedade é a equiparação de qualquer referência ao legado emancipatório europeu com o imperialismo cultural e o racismo”. Criticar práticas e concepções culturais do islamismo dos refugiados não significa ser cúmplice da sua opressão. “O próximo tabu esquerdista a deixar para trás é o de obstar a qualquer crítica ao islão como um caso de ‘islamofobia’”. A superação desta situação de profunda desigualdade que se vive no mundo, e a situação de selvajeria a que foram levados grande parte de territórios do mundo, a golpes de mísseis, não se corrigem por uma questão de tolerância multicultural, mas resolvendo as questões através de um novo projeto de  universalismo emancipatório. Para Zizek, existem quatro antagonismos que podem permitir que o capitalismo global, que gera os racistas e os fundamentalistas, não se reproduza eternamente: “a ameaça iminente de catástrofe ecológica, a inadequação da propriedade privada para a chamada ‘propriedade intelectual’, as implicações sócio-éticas dos novos desenvolvimentos técnico-científicos (sobretudo a biogenética), e , por último mas não menos importante, as novas formas de apartheid, os novos muros e bairros de lata”. É, para o autor, este aspeto final que politiza e dá tom às contradições existentes no sistema. 

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