Outro atentado contra a História negra

Ao batizar de Japão-Liberdade estação do Metrô em SP, autoridades desprezam a memória de bairro que ganhou seu nome em homenagem à resistência de um escravo

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Por Abilio Ferreira, no Geledés

Oficializada no dia 18 de julho pelo prefeito de São Paulo Bruno Covas e no dia 25 pelo governador Marcio França, a adição da palavra “Japão” ao nome original da estação Liberdade do Metrô provocou polêmica nas redes sociais. Um texto do advogado Renato Igarashi – ele próprio um descendente de imigrantes japoneses –, postado dia 26 em sua página do Facebook, foi curtido e compartilhado milhares de vezes.

Igarashi aborda aspectos que alguns militantes do Movimento Negro, acompanhados por certas pesquisas acadêmicas mais atentas, vêm denunciando há décadas, não apenas em relação ao bairro da Liberdade, mas a diversas outras regiões da cidade e do país. “A Praça da Liberdade”, escreveu Igarashi, “(agora Japão-Liberdade, muito antes da chegada da comunidade japonesa, se chamava Largo da Forca, pois era palco de execução de escravos negros fugitivos e condenados à pena de morte. Foi, aliás, por causa de um negro que a praça e o bairro foram chamados de Liberdade.”

Esse negro a que Igarashi se refere é o militar que, em 1821, às vésperas da proclamação da Independência do Brasil, liderou uma revolta contra a falta de pagamento de soldos. Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, cultuado como um santo popular na Capela dos Aflitos, próxima à agora estação Japão-Liberdade do Metrô, era duro de matar. A corda que deveria lhe tirar a vida arrebentou três vezes, o que levou o povo reunido no Largo da Forca a clamar por “Liberdade! Liberdade! Liberdade!”. Consolidou-se, ao longo do tempo, a tradição de acender velas e fazer pedidos na cela, pegada à Capela, onde Chaguinhas aguardou a execução da pena. A tradição também se manifesta na Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados, situada na Avenida da Liberdade, vizinha do Largo da Forca.

Ainda no início de 2018, Aloysio Letra, jovem negro morador de Guaianases, distrito do extremo leste de São Paulo, compôs o samba Rua da Glória, em homenagem a Chaguinhas, que é como um dedo em riste apontado para a cara da cidade: Estou enterrado na rua da glória / Lembre de mim se passar por aqui / Sou fato oculto da tua história / Mas veja ainda estou aqui.

Ninguém lembra. Ninguém vê. Essa atitude, no entanto, não é suficiente para calar vozes como a do advogado nikkei e a do compositor preto e pobre da periferia. Muito pelo contrário. Um post publicado no dia 22 de julho na página Perigo Amarelo do Facebook, com mais de sete mil seguidores, demonstra que Renato Igarashi não é voz isolada a se posicionar solidária aos negros escravizados e seus descendentes:

“Precisamos, urgentemente, entender os nossos privilégios enquanto minoria modelo; precisamos entender que o fato de não sermos brancos não nos impede de sermos opressores com outras minorias étnico-raciais. E, sobretudo, precisamos entender que os danos psicológicos, a nível individual, que sofremos com certas expectativas que nos impõem são consequências do mito da minoria modelo – e a anti-negritude presente nesses nossos discursos sustentam ela.”

A polêmica sobre a troca de nome da estação do Metrô é pertinente, portanto, à velha questão dos patrimônios material e imaterial representada pelo abandono da Capela dos Aflitos e pela icônica figura de Chaguinhas, inseridos que estão na diversidade étnico-racial do território da Liberdade. É nesse sentido que a agenda política do ano de 2018, como se não bastassem os projetos de nação em jogo nas próximas eleições de outubro, transcende os 12 meses do calendário. Basta observar a programação da 4ª Jornada do Patrimônio (jornadadopatrimonio.prefeitura.sp.gov.br/2018/), que este ano recebeu nove propostas de roteiros de memória ligados aos territórios negros da cidade, expondo as fraturas de uma São Paulo construída muito mais de esquecimento do que de lembranças, mais de barbárie do que de civilização.

Capela dos Aflitos, de 239 anos, vai se deteriorando e sumindo entre prédios e caminhões. Ali ficava o primeiro cemitério público de SP, onde era sepultada, em sua maioria, a população negra da cidade (Foto: Ilth Maria Figueiredo)

Enquanto os vários grupos organizados do Movimento Negro finalizam os preparativos da Marcha da Consciência Negra, a ser realizada no dia 20 novembro, data evocada desde os anos 1970 como contraponto ao 13 de maio, a União dos Amigos da Capela dos Aflitos (UNAMCA) e a Nova Frente Negra Brasileira (NFNB) – óbvia referência à FNB original (1931-1937), cuja sede ficava onde hoje é a Casa de Portugal, na Avenida Liberdade, 602 – se organizam para homenagear Chaguinhas no dia 20 de setembro, uma tradição incentivada a partir do final do século 19 pelo então promotor público Antonio Bento de Souza e Castro (1843-1898), continuador da campanha abolicionista inaugurada nos anos 1860 pelo escritor, jornalista e advogado negro Luiz Gama (1830-1882), morto no dia 24 de agosto.

É importante ressaltar, inclusive, que, ao escolher a Igreja da Boa Morte como ponto de encontro do evento, a UNAMCA e a NFNB buscam lembrar o pioneirismo da Marcha Noturna pela Democracia Racial, que entre 1997 e 2010, sempre na madrugada de 12 para 13 de maio, reunia a militância em cortejo pelos lugares de memória negra da cidade.

A agenda de 2018 também marca os 30 anos da Constituição Federal e da fundação do Geledés (Instituto da Mulher Negra), os 130 anos da abolição incompleta da escravatura, os 40 anos do lançamento do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e os 40 anos de publicação anual da série Cadernos Negros, entre tantas outras iniciativas que não terão destaque na sociedade do espetáculo. Por outro lado, cabe retomar outro trecho do samba de Aloysio Letra: São chagas no esquecimento / Ferida que teima a sangrar / Ninguém silencia o lamento / A vela não vai se apagar.

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