LGBT+ em 2019: retrocessos e resistência

Ataques, pela ministra, à educação sexual e à diversidade. Censura à produção artística e cultural. Ameaças a quem expôs afeto gay. Os impactos da chegada da extrema-direita ao poder. Ainda assim, resistência conquistou vitória no campo da Justiça

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Por Paloma Vasconcelos, na Ponte Jornalismo

As eleições de 2018 trouxeram ao poder políticos de extrema direita e com pensamentos conservadores e retrógrados no que se diz respeito a população LGBT+. João Doria (PSDB) foi eleito governador no estado de São Paulo e Jair Bolsonaro eleito presidente da república. Um ano antes, em 2017, Marcelo Crivella assumia a Prefeitura do Rio de Janeiro. Em 2019, esses três nomes foram atores de retrocessos para a população LGBT+.

Quando Jair Bolsonaro se tornou presidente, em outubro de 2018, parte da população LGBT+ temia por sua vida e pela retirada de direitos básicos para viver. O então deputado federal já se classificou como “homofóbico, com muito orgulho“, disse ser incapaz de amar um filho LGBT+ e que preferia que um filho morresse em um acidente do que “apareça com um bigodudo por aí“.

A Ponte conversou com a professora doutora e pesquisadora trans Jaqueline Gomes de Jesus para relembrar os assuntos mais problemático para a população LGBT+ ao longo de 2019.

Jaqueline é professora do IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro) e psicóloga, com doutorado em Psicologia Social do Trabalho pela UnB (Universidade de Brasília) e pós-doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.

Também é autora dos livros “Homofobia: identificar e prevenir”, “O que é racismo?” e organizadora do “Transfeminismo: Teorias e práticas”. Mulher transexual e negra, ela foi uma das 52 candidaturas de pessoas trans nas eleições de 2018. Em outubro, ela foi vítima de agressão por um desconhecido na região da Cinelândia, centro da cidade do Rio de Janeiro.

Antes mesmo do ano terminar, por exemplo, o número de casamentos homoafetivos aumentou expressivamente. Parte dos LGBTs tinha medo de que, com o novo governo, esse direito fosse retirado. Os casamentos aumentaram 340% depois da eleição de Bolsonaro, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

“Com a eleição do Bolsonaro, que fez sua carreira política em cima do ódio e conseguiu agremiar muita gente em volta desse discurso, isso era uma boa justificativa para as pessoas LGBTs, por medo, oficializassem as suas uniões com medo de que o executivo federal agisse de alguma forma impedindo o seu direito conquistado junto ao judiciário”, explica Jaqueline.

Janeiro: Menino veste azul e menina veste rosa

Jaqueline Gomes de Jesus – O governo Bolsonaro abriu janeiro com a fala da Damares [Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos], do menino veste azul e menina veste rosa. Ela, como ministra dos direitos humanos e da mulher, representa uma camada da população e é vista bastante por esse grupo, mesmo que, no caso, reproduzindo estereótipos de gênero como esse.

Ela já abre o ano com uma questão que tem a ver com o apartheid de gênero, que é a questão da ideologização, não é uma questão apenas de cores, como muita gente colocou, como se fosse uma questão simples de menino usar azul e menina usar rosa, mas é algo mais grave, que foi estabelecer na fala do governo que era comum desde a construção toda da campanha, mas de todo esse processo de construção da falácia da ideologia de gênero, de apoio à escola sem partido, de perseguição a professores que trabalham com educação sexual, que trabalham com valorização da diversidade, com educação para diversidade de gênero e sexual.

Isso tem a ver com transfobia disfarçada com um discurso genérico em falar que se está opondo com a possibilidade de existência de pessoas trans. Se ressalta mais nesse contexto a dificuldade das pessoas no geral entender que se estava falando sobretudo de transfobia, de que o governo, esse grupo fundamentalista, estava assumindo com uma proposta de apagamento de pessoas trans.

É mais uma falha de percepção de cenário por falta de debater questões de populações trans e como isso é central para esse pessoal que trabalha com ideologia de gênero e escola sem partido que, fundamentalmente, questiona a diversidade fora dos estereótipos de gênero.

Março: Golden Shower

Jaqueline Gomes de Jesus – A questão do carnaval chega a ser anedótica. Algumas notícias referentes ao presidente Bolsonaro são mais do campo da psicopatologia do que necessariamente só da questão ideológica, partidária e política de campanha. Então dá para se pensar qual foi a preocupação dele inclusive daquela frase que ficou famosa, dele perguntando o que era golden shower.

O ódio daquela imagem específica, que remete a algo que a gente não tem como fazer análise psicológica dele particularmente, mas demonstram várias questões, dificuldades dele lidar com o que se remete que não diretamente relações homossexuais, as referências constantes que ele faz a questões anais, confundindo relacionamentos afetivos com relações partidárias-políticas.

Tem várias questões de nível pessoal que ficaram evidentes, que ele elegeu aquela cena como sendo cenas que se veem em carnaval mais do que em outras épocas do ano e que incomoda ele profundamente vê-las, assim como incomoda muitas pessoas do grupo dele, que não consegue ver diversidade sexual e de gênero.

É uma estratégia desse governo porque apaga a existência de populações LGBT+, principalmente que são alvo da campanha deles dentro da lógica de trabalho, de posicionamento ideológico, e que uma expressão como aquela, expressão artística representando o que foi colocado, incomoda ele a nível pessoal. Há questões psicológicas significativas.

Junho: PM de João Doria impede PM gay de usar farda para pedir namorado em casamento

Jaqueline Gomes de Jesus – No Mês do Orgulho LGBT, as notícias têm muito a ver como a polícia foi construída em cima de uma lógica machista, que constrói uma determinada imagem de homem, que é heteronormativa, e que não pode conceber outras possibilidade de existência do homem sem ser um homem que impõe a violência, a força, como representante do estado, machista e homofóbico principalmente contra homens homossexuais.

Então essa tentativa de espionagem e de impedimento de direito de um policial militar de pedir em casamento o seu companheiro usando farda reproduz essa homofobia que está entranhada na própria construção da polícia. Nem vou falar só da Polícia Militar porque é da própria ideia de polícia no Brasil que precisa avançar, que precisa ser superada no entendimento de que existe uma diversidade sexual e gênero dentro da própria corporação.

Não existem só policiais homens, existem policiais mulheres. Não existem só policiais homens dentro de um padrão heteronormativo ou mesmo cisnormativo, existem policiais que não necessariamente reproduzem o estereótipo do heterossexual machão e os que não são heterossexuais, que estão em outros contextos.

É essa diversidade que não é reconhecida porque se quer preservar um padrão de dominância masculina tóxica dentro da imagem que se foi construída na Polícia Militar – que é muito difícil de mudar, mas em situações como essa tem que ser colocadas e discutidas.

Uma reeducação da polícia, e principalmente da Polícia Militar, é um debate antigo, da desmilitarização, de como unir as polícias e de como trabalhar a valorização de direitos humanos e da diversidade não só da relação da polícia com o outro, que é comum discutir isso, mas dentro da própria força policial.

Agosto: Bolsonaro barra financiamento da Ancine para filmes com temática LGBT+

Jaqueline Gomes de Jesus – O presidente Bolsonaro barrou o financiamento para filmes ligados às temáticas LGBTs e foi contra o vestibular específico para pessoas trans na UniLab, isso mostra como ele não entende o pacto federativo, ele não entende a lógica republicana e não entende de democracia.

Apesar de falar em república, ele reproduz um discurso padrão que vem muito do militarismo, mas de forma superficial, sem maiores reflexões e assim ele interfere de formas negativas nas diferentes esferas com base nos preconceitos dele.

Judicialmente ele tem tido enfrentamentos e tem que usar o judiciário como se tem feito nos últimos anos para garantir direitos das populações excluídas, não só LGBTs, mas população negra e mulheres ante ao legislativo extremamente retrógrado. Isso é um fator histórico e frente ao executivo que também assumiu esse discurso.

Setembro: Marcelo Crivella retira HQs com beijo entre homens da Bienal do Livro

Jaqueline Gomes de Jesus – A questão da HQ não é específica do governo Bolsonaro, mas reflete o pensamento desse grupo fundamentalista que assumiu o poder, de interferência nas expressões artísticas e culturais que não se enquadrem na pedagogia da exclusão, da pedagogia do apagamento de existência que eles defendem.

Chama a atenção da reação das pessoas sobre esse ato de censura dentro da Bienal, que é um espaço comercial privilegiado, e aí fiquei pensando que seria uma oportunidade para se divulgar mais a literatura LGBT+, se pensar também sobre o que está sendo escrito, pensado e discutido para além de uma história em quadrinhos, que é muito importante. O que a população LGBT+ tem produzido? Porque aquela história em quadrinhos não é especificamente produzida pela população LGBT+, tem a imagem de um beijo entre dois homens, mas é muito diferente.

Ainda se tem nessas discussões uma questão de apagamento da produção de conhecimento da população trans, da expressão artística da população LGBT+ de forma geral. Porque que, por exemplo, quando a atriz Renata Carvalho foi censurada várias vezes por ser Jesus na peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” não se lembrou desse ato de censura que o próprio Crivella implementou no ano anterior? Quando é com determinados grupos não existe a mesma reação.

Isso mostra um avanço da população de modo geral, quanto aos avanços dos gays, dos homens homossexuais, mas ainda existem falhas quando a gente fala em LGBT+, e por isso que eu faço uma crítica do uso indiscriminado, porque quando se refere às pessoas trans ainda existe esse apagamento e não reconhecimento da possibilidade de existência.

E de como os nossos conhecimentos pode ser difundido, a população LGBT+ produz conhecimento, que escreve, que pesquisa, que tem literatura não consegue ter acesso à Bienal. Então, como fica essa questão? Isso precisava ser mais discutido junto com a população em geral.

Outubro: Bolsonaro filho usa camiseta ironizando sigla LGBT+ e nome da família Bolsonaro aparece nas investigações do assassinato de Marielle Franco

Jaqueline Gomes de Jesus – Foi interessante a questão do Eduardo Bolsonaro ironizar a sigla LGBT porque aponta esse interesse de retornar sempre a esse tema, que obviamente é um tema silenciado pelo pai dele e o silenciar sobre algo é mostrar que se odeia aquilo e que se quer de alguma forma destruir.

Então quando ele fala, mesmo que ironizando, evoca muito mais uma proximidade e uma amizade que não existe com o Trump [presidente dos Estados Unidos] e um espaço conquistado que não foi feito, do que necessariamente para além de um ódio direto a essa população. Esse ódio tem um fundamento, uma negação dessa existência e uma urgência no caso do Eduardo Bolsonaro em anunciar isso e mostrar, mesmo de forma distorcida, que há um ódio.

Mesmo que o pai silencie, não digo que ele diretamente se relaciona essa questão LGBT, mas é um tema que é silenciado e que tem que ser dito, mesmo que não necessariamente tenha a ver com ele de forma direta. 

Ainda em outubro, a relação do nome da família Bolsonaro nas investigações do caso Marielle não me espantou, pois já sabíamos a proximidade física e de relações que foi divulgada bastante pela imprensa, sobre a família e os milicianos, inclusive que mataram Marielle.

Espero que as investigações avancem. Houve muitas provas e pessoas que não foram ouvidas, problemas na investigação, como que a Delegacia de Homicídios lidou com o caso, denúncias várias de propinas. É algo muito complexo, ainda mais por envolver uma família que está no momento no poder, o que torna mais difícil encontrar quem mandou matar Marielle.

Novembro: Festivais culturais quase não saem do papel por falta de apoio financeiro do governo

Jaqueline Gomes de Jesus – Em novembro teve o Festival Mix que quase não saiu do papel, mas quero lembrar que vários festivais culturais e artísticos não tiveram financiamento, principalmente ligados às causas LGBT+. Isso já era esperado por conta dos discursos desse governo, já se esperava que não houvesse o financiamento.

Isso é uma questão de como mobilizar a população LGBT+ em busca de outras formas de financiamento para que não se dependa de governo. Principalmente a Parada Gay de São Paulo, que avançou muito nessa busca de financiamento privado, que também não é de todo uma garantia.

É necessária uma forma de fomentar movimentação de recurso e de capital dentro da própria população LGBT+ ou do que a gente pode chamar de comunidade LGBT. Isso ainda é um desafio muito grande. De uma forma simples, é falar que LGBT+ compra de LGBT+, LGBT+ contrata LGBT+.

A empregabilidade trans é um tema que não tá sendo debatido de forma mais intensa e deveria, junto ao movimento LGBT+, criar estratégias para que pessoas trans sejam empregadas, para que tenham uma formação. Mais de 90% das mulheres trans e travestis, segundo a ANTRA, só encontram trabalho na prostituição. Como movimentar recurso aí dentro? Como fazer outras possibilidades de renda além do trabalho informal? Esse é o grande desafio.

Pontos positivos de 2019 para LGBTs

Jaqueline Gomes de Jesus – Os pontos positivos não têm a ver com o governo Bolsonaro, tem a ver com o movimento social afetando o Judiciário, como é o caso da criminalização da LGBTfobia, que é um movimento de décadas da população LGBT+ que o judiciário reconheceu a equiparação da LGBTfobia ao racismo.

Agora a grande luta é que as delegacias reconheçam e tratem a homofobia e a transfobia como crimes equiparáveis ao racismo. É um desafio que o próprio movimento negro reconhece que existe essa dificuldade, quase nenhuma delegacia registra o crime de racismo como racismo, geralmente colocam como injúria ou injúria racial. Então tem esse desafio na prática.

A Justiça de São Paulo usar pela primeira vez o termo “feminicídio” para assassinato de mulher trans é parte do movimento intelectual, do que temos produzido de críticas contra a violência da população trans. Eu tenho escrito bastante sobre a violência contra mulheres trans e travestis enquanto feminicídio, é fundamental reconhecer essa categoria para que seja tratada a partir dessa lógica de violência de gênero e não como crime comum. É um grande desafio.

O Brasil é o quinto país em feminicídio e o primeiro em feminicídio de mulheres trans e travestis. Então São Paulo tem esse paradoxo de haver tanta violência transfóbica, mas ao mesmo tempo é um estado em que a justiça reconheceu o feminicídio de mulheres trans.

A Polícia Militar de São Paulo agora usa o meu e-book “Orientações sobre identidade de gênero” na sua formação de direitos humanos, pelo menos foi o que saiu esse ano que eles vão estudar. Espero que haja grandes transformações a partir dessas ações em SP que tem muita repercussão e refletem bastante a nível nacional.

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