O secretário-geral da ONU denuncia o colonialismo

Nos países mais pobres, 17% das pessoas nascidas há 20 anos já morreu, admite António Guterres, ao falar em homenagem a Mandela. Ele admite desigualdade começa no Banco Mundial, FMI e a própria ONU — e é escancarada pela pandemia

Mulher passa diante de mural em homenagem a Nelson Mandela, na Cidade do Cabo, África do Sul (AP Photo/Nardus Engelbrecht)
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Por Karen McVeigh, no The Guardian, traduzido pela IHU Online

Em um discurso cujo tom fugiu do comum, António Guterres propôs uma reforma geral no Conselho de Segurança da ONU, no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial, para o combate às desigualdades sistêmicas expostas pela pandemia do coronavírus.

A crise atual na saúde relevou uma fragilidade mundial e “expôs os riscos que vínhamos ignorando há décadas: sistemas impróprios de saúde; lacunas na proteção social; desigualdades estruturais; degradação ambiental; crise climática”, disse Guterres.

Segundo ele, a pandemia está expondo “as falácias e falsidades em todos os lugares: a mentira de que mercados livres podem distribuir cuidados de saúde para todos, a ilusão de que vivemos num mundo pós-racista e o mito de que estamos todos no mesmo barco”.

A fúria dos movimentos #EuTambém e Vidas Negras Importam é uma medida da “total desilusão com o status quo”, afirmou Guterres, enquanto o colonialismo e o patriarcado são as fontes históricas da desigualdade.

“Não nos enganemos: o legado do colonialismo ainda reverbera. Vemos ele na injustiça econômica e social, no aumento dos crimes de ódio e xenofobia; na persistência do racismo institucionalizado e na supremacia branca.

“Vemos ele no sistema mundial de comércio. As economias que foram colonizadas correm um maior risco de se prenderem na produção de matérias-primas e bens de baixa tecnologia – uma nova forma de colonialismo. E vemos ele [o legado] nas relações mundiais de poder”.

Guterres fez estas declarações ao proferir, diretamente da sede da ONU em Nova York, a palestra anual Nelson Mandela – no dia em que o líder africano completaria 102 anos – para um público on-line.

A África, explicou ele, é uma “vítima dupla”, primeiro por causa do colonialismo e, segundo, porque os países africanos estiveram sub-representados nas instituições internacionais criadas após a Segunda Guerra Mundial.

“Os países que saíram vencedores 70 anos atrás se recusaram a contemplar as reformas necessárias para a transformação das relações de poder nas instituições internacionais. A composição e os direitos ao voto, no Conselho de Segurança da ONU e nos conselhos do sistema Bretton Woods, são um caso em questão. A desigualdade começa no alto: nas instituições mundiais. A abordagem da desigualdade deve começar pela reforma dessas instituições”.

Os países mais avançados, disse, não conseguiram entregar o apoio necessário aos países em desenvolvimento nestes tempos perigosos. O palestrante pediu por um novo acordo global, baseado na justiça e em um contrato social renovado, para promover uma cobertura universal na área da saúde e permitir uma renda básica universal.

Estes seus comentários vieram na esteira do que falou o relator especial da ONU para a pobreza extrema e os direitos humanos, Philip Alston, que descreveu a linha internacional de pobreza do Banco Mundial (1,90 dólares diários) como um “ponto de referência escandalosamente pouco ambicioso” que pintou um quadro falso de “conquistas heroicas” contra a pobreza.

Guterres disse que o mundo foi posto de joelhos por um vírus microscópico que reverteu o progresso havido na erradicação da pobreza, estreitando mais ainda os níveis de desigualdade. Alston alertou que a situação atual pode criar um número de famintos “em proporções históricas” e empurrar 100 milhões para a pobreza extrema.

“Enfrentamos a recessão mundial mais profunda desde a Segunda Guerra e a maior queda nos rendimentos desde 1870”, disse. Os trabalhadores na economia informal, das pequenas e médias empresas e os que atuam na área do cuidado, composta principalmente por mulheres, são os mais atingidos.

“As disparidades profundas começam antes do nascimento e definem vidas – e mortes precoces”, falou.

Mais de 70% da população mundial vive com uma crescente desigualdade de renda e riqueza, enquanto os 26 mais ricos do mundo detêm nada menos que a metade da riqueza que a outra metade da população do mundo. Nos países em desenvolvimento, mais de 50% dos jovens na casa dos vinte anos cursam educação superior, número que cai para 3% nos países menos desenvolvidos.

“E o mais chocante ainda: cerca de 17% dos que nasceram há 20 anos em países com baixo índice de desenvolvimento humano já morreram”.

Todos sofremos as consequências, segundo ele, porque a desigualdade associa-se à instabilidade econômica, à corrupção, às crises financeiras, ao crime e à saúde mental e física.

Guterres disse também que a crise climática e a transformação digital são “mudanças sistêmicas” que definirão o século XXI e que anunciam um novo movimento por igualdade racial, direitos humanos e direitos das gerações futuras. Os ativistas climáticos jovens são os que se encontram na linha de frente, explicou.

“Esse movimento rejeita a desigualdade e a divisão, e une os jovens, a sociedade civil, o setor privado, as cidades, as regiões e outros, por trás das políticas pela paz, pelo planeta, por justiça e direitos humanos para todos. Esse movimento já tem feito a diferença.

“Chegou a hora de os líderes mundiais decidirem: vamos sucumbir ao caos, à divisão e à desigualdade? Ou iremos corrigir os erros do passado e seguirmos em frente, para o bem de todos?

“Nós nos encontramos num ponto de ruptura. Mas sabemos de qual lado da história estamos”.

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