Os porquês do segundo Oscar seguido para uma diretora

Jane Campion venceu este ano com “Ataque de Cães”. Números mostram avanços, mas distância ainda é grande entre homens e mulheres no cinema. Reformas nas premiações devem impulsionar mudanças

Jane Campion recebe o Oscar de melhor diretora em 2022
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Por Rayna Breuer na DW Brasil

“Well, the time has come…” (“Bem, agora chegou a hora…”), antecipou Barbra Streisand, ao tirar do envelope o nome da vencedora do Oscar de Melhor Direção de 2010: pela primeira vez em 81 anos de história dos Academy Awards, uma mulher era premiada na principal categoria.

A surpresa nos olhos de Kathryn Bigelow foi grande: com seu Guerra ao terror, ela deixara para trás James Cameron e Quentin Tarantino. Até aquele ano, só houvera quatro indicações femininas para essa prestigiada categoria: Lina Wertmüller (1977), Jane Campion (1994), Sofia Coppola (2004) e a própria Bigelow.

Em 2021, veio então a nova sensação: pela primeira vez, foram indicadas duas cineastas, Emerald Fennell e Chloé Zhao, que acabou levando a cobiçada estatueta com Nomadland. Em 2022, então, abre-se um novo precedente: a neozelandesa Jane Campion é a única diretora a ter recebido duas indicações, agora com seu Ataque dos Cães. Somando-se Greta Gerwig em 2018, o total das indicadas sobe a sete. A Academia de Hollywood se tornou mais diversificada?

“Eu hesito em classificar isso como progresso. Acho que, antes, cedeu-se diante das ressalvas constantes da comunidade de que algo está seriamente errado se, entra ano, sai ano, nenhuma mulher é indicada”, analisa Martha Lauzen, diretora do Center for the Study of Women in Television & Film da San Diego State University. “A exclusão rotineira das mulheres numa das categorias mais prestigiosas simplesmente não era mais sustentável nem justificável.”

Desequilíbrio crônico da indústria cinematográfica

Passo a passo, mulheres autoconfiantes ocupam no setor cinematográfico os ofícios sob forte dominação masculina. O progresso, contudo, é muito lento – com um revés recente, como mostra o mais recente relatório Celluloid Ceiling Report, que há 24 anos examina a participação feminina nos 250 filmes americanos de maior bilheteria.

Após um recorde histórico em 2020, um ano mais tarde houve novamente menos mulheres na função de diretora: nas 100 produções mais importantes, a presença delas caiu de 16% para 12%. Também em outras profissões do setor, elas estão sub-representadas: em 2021, 94% dos 250 melhores filmes americanos não tinham mulheres atrás das câmeras, 92% passaram sem compositoras, 82% sem diretoras, 73% sem editoras e 72% sem roteiristas do sexo feminino.

“A Academia reflete as atitudes e preconceitos da grande comunidade cinematográfica de mainstream”, afirma Martha Lauzen. “Esses preconceitos discriminam mulheres que dirigem. Um deles é a noção injustificada de que elas não possuem visão nem interesse para encenar grandes produções de estúdio”, avalia.

“Enquanto os estúdios e patrocinadores estavam dispostos a investir muito dinheiro em diretores aspirantes, era menor sua disposição de investir em diretoras promissoras, que via de regra eram consideradas ‘candidatas de risco’.”

Um dos mais conhecidos, entre os que se beneficiaram desse viés foi Colin Trevorrow, prossegue a especialista americana. Antes de dirigir Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros, ele só rodara um filme independente.

“Conta-se que Trevorrow fez Steven Spielberg se lembrar de seu ‘eu’ mais jovem, e por isso ganhou o trabalho. Spielberg esteve disposto a dar uma chance a um cineasta relativamente inexperiente. Para as mulheres diretoras, é muito mais improvável que se beneficiem desse tipo de preconceito positivo.”

Hollywood reage à pressão com reformas

Por longo tempo, o ramo do cinema foi um domínio exclusivamente masculino. Entretanto, a controvérsia sobre a falta de diversidade nos principais prêmios de Hollywood tem vindo à tona repetidamente. Nos últimos anos, viu-se uma onda de críticas, tanto sob o hashtag #OscarsSoMale (Oscars tão masculinos) quanto #OscarsSoWhite (Oscars tão brancos), quando talentos negros e de outras minorias foram ignorados.

Na sequência do debate “Black Lives Matter” (“Vidas negras importam”), após o assassinato de George Floyd, e dos protestos antiabuso sexual “MeToo” (Eu também), a Academia anunciou umas reformas tímidas. Afinal, na cena cinematográfica, há um bom tempo “diversidade” é uma buzzword muito apreciada.

Assim, o número de mulheres entre os 54 integrantes do Board of Governors, que escolhe os vencedores, subiu de 26 para 31. Na categoria Melhor Filme, a partir de 2024 só poderão ser indicadas – e, portanto, premiadas – produções que preencham dois critérios de diversidade nas quatro categorias de atuação (atriz/ator principal e coadjuvante), equipe produtora e criativa, treinamento, marketing e distribuição.

Por exemplo, um/a dos/as protagonistas pode pertencer a uma minoria – afro-americana, asiática, hispânica ou indígena. O segundo critério é relativo ao conteúdo: os concorrentes devem tratar de um tema relacionado a mulheres, minorias, portadores de deficiências ou LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e trans).

Além disso, mais recentemente a Academia manifestou a intenção de se abrir mais para o público, pois os organizadores têm registrado quedas drásticas de audiência na cerimônia de premiação. Em 2021, apenas 10 milhões a assistiram na TV, menos da metade dos espectadores do ano anterior. Assim, instituiu-se um prêmio do público, com os fãs votando pela internet.

Alemanha busca incentivar talentos femininos

Também na Alemanha, há muito são discutidos os desafios que enfrentam as mulheres no setor cinematográfico, assim como as reformas necessárias. Uma discrepância serve de ilustração eloquente: muito mais mulheres se formam nas faculdades de cinema do que o número de profissionais do sexo feminino no setor. Entre os homens, a proporção é exatamente inversa.

“É fato que, com 25%, as mulheres atualmente estão um pouco mais bem representadas na direção do que alguns anos atrás. Mas elas continuam tendo que superar bem mais obstáculos do que seus colegas homens. Resiliência, capacidade de se impor e flexibilidade contam entre os fatores de sucesso para quem dirige, e esse é um instrumentário que ainda se atribui antes aos homens do que às mulheres”, explica Sarah Duve-Schmid, vice-presidente e diretora de patrocínio do Instituto de Incentivo ao Cinema (FFA, na sigla em alemão).

“Carga de trabalho alta, longas ausências de casa – e também, muitas vezes, falta de infraestruturas para cuidados e um salário pior – são fatores que ainda representam obstáculos e que levam as mulheres a buscarem outra orientação profissional após a faculdade ou mais tarde, a se desligarem temporariamente da profissão e perderem a conexão com o setor”, diagnostica Duve-Schmid.

Certamente existe uma nova atenção para os filmes de mulheres, na avaliação da executiva, uma curiosidade especial, uma percepção mais aguçada e, em especial nos últimos tempos, também bastante reconhecimento. “Muito mudou, já que na sociedade em geral se criou uma sensibilidade para a temática da igualdade de direitos, antes inexistente”, afirma.

“No que se refere ao patrocínio de projetos sob direção feminina, ocorre na FFA um monitoramento constante dos projetos apresentados e dos subsídios concedidos. Constata-se que nos últimos anos há significativamente mais requerimentos para projetos de filmes dirigidos por mulheres – e, proporcionalmente, estes são patrocinados com maior frequência. Certo é que, nos nossos grêmios de incentivo há uma atenção especial em examinar projetos de mulheres e em encorajar as produtoras para que os apresentem”, diz Duve-Schmid.

Na Alemanha, cineastas como Karoline Herfurth, Jutta Brückner, Nina Grosse, Katja von Garnier, Anika Decker, Caroline Link, Nicolette Krebitz, Julia von Heinz, e muitas outras, pisam o tapete vermelho com cada vez mais confiança, e reivindicam seu lugar no setor.

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