1922: Como surgiu a poesia modernista

Das paródias galhofeiras de Juó Bananére aos embates contra os reacionários às vésperas da Semana de 1922. Como Mário e Oswald afinaram sua concepção de poesia e aprofundaram uma generosa visão do Brasil e sua história

Retrato de Mário de Andrade por Lasar Segall e retrato de Oswald de Andrade por Tarsila do Amaral
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Por José De Nicola e Lucas De Nicola

Título original: “Sou do meu tempo”: A poética dos modernistas de 22

A arte de versejar

A poesia brasileira entra no século XX sob o domínio majoritário do soneto. O que quer dizer sob o domínio de uma forma fixa, com seus inabaláveis catorze versos ora decassílabos, ora alexandrinos, e uma esmerada “chave de ouro”. Olavo Bilac, na abertura de suas Poesias, obra publicada em 1888, já professara sua fé na deusa de plantão: “Assim procedo. Minha pena / Segue esta norma, / Por te servir, Deusa serena, / Serena Forma!”.i Gozando de imensa popularidade, Bilac publica, em 1905, o seu Tratado de versificação, em parceria com Guimarães Passos; na obra, além de explicar a contagem de sílabas poéticas e discorrer sobre os vários tipos de poesia, comenta que “os nossos poetas de hoje, possuindo um sentimento igual, e às vezes superior ao dos poetas antigos, eles excelem pelo cuidado que dão à pureza da linguagem, e pela habilidade com que variam e aperfeiçoam a métrica”.ii

Embalado pelo sucesso do Tratado de Bilac e ainda colhendo as glórias de seus versos decassílabos e de sua linguagem parnasiana que venceram, em 1909, o concurso para a letra do Hino Nacional, Osório Duque-Estrada publica a sua A arte de fazer versos; a obra – uma versão nacional de L’art des vers, do francês Auguste Dorchain, com prefácio do parnasianíssimo Alberto de Oliveira – também traz explicações sobre a contagem de sílabas poéticas e um longo dicionário de rimas ricas. Para Duque-Estrada,

a regularidade de cadências e de ritmo promana de três fatores: número limitado de sílabas em cada verso, divisão simétrica dessas sílabas, e repetição dos mesmos sons no final dos versos que se correspondem; quer dizer: número de sílabas, cesura e rima – três elementos cujas leis constituem exatamente o objeto da versificação, isto é, da arte do verso, da qual em breve nos iremos ocupar.iii

O prefaciador Alberto de Oliveira não se faz de rogado e aproveita o espaço que lhe foi concedido na obra para expor suas considerações sobre o fazer poético, criticando os pés quebrados, as licenças poéticas, as palavras inexpressivas, as rimas pobres e vulgares:

Foi-se o tempo das chamadas licenças poéticas; foram-se os versos lânguidos e os de pés quebrados, os hiáticos ou homófonos, os desarticulados ou duros; as rimas viciadas ou vulgares, sem matizes surpreendentes. Ir-se-ão também do verso as palavras inexpressivas, os rípios ou cunhas, que apenas servem para lhe completar a medida. Os novos tratados de versificação devem ser neste particular, como em tudo o mais tocante à precisão e beleza da forma, cada vez mais exigentes.

Quando os primeiros exemplares de A arte de fazer versos chegavam às livrarias, em meados de 1912, o jovem Oswald de Andrade regressava de sua primeira viagem à Europa; em Paris, se encantara com as propostas que Marinetti defendera em seu Manifesto Futurista e assistira à consagração do poeta Paul Fort, cultor dos versos livres, eleito príncipe dos poetas franceses. Oswald afirma que só assim veio a saber “que se tratava, enfim, de desterrar do verso a métrica e a rima, obsoletos recursos do passado”. Justamente ele, réu confesso, que se dizia incapaz de escrever versos porque não sabia metrificar, nem rimar; em seu livro de memórias – e nunca se deve esquecer o quanto as memórias podem ser seletivas – conta que voltou tão empolgado com as novas ideias que chegou a escrever um poema: “Último passeio de um tuberculoso, pela cidade, de bonde”. Contudo, preocupado com a reação que tal ousadia pudesse causar, jogou fora o poema. Para a posteridade ficou somente o sugestivo e longuíssimo título. iv

Pouco mais de um mês depois do retorno de Oswald, nas páginas do jornal O Pirralho – publicação da qual o modernista em formação era um dos diretores –, o personagem ítalo-paulista Juó Bananére passou a se divertir com o termo “futurismo”, formulando interpretações para os conceitos de Marinetti. Na edição de 26 de outubro de 1912, na seção “As cartas d’abax’o Pigues”, Bananére conta a história do futurismo, dizendo, em seu dialeto macarrônico ítalo-paulista, que “oggi per insempio os poeta faiz uno soneto de quattorzze versos, cada verso di deize sillabas” e que “o Marinetto invez nó: cada soneto che illo faiz tê ventisquattro verso. Os verso tê quantas sillaba a genti vulevo. Per insempio: o primiére tê dicianove, o segundo tê cinquantaquattro, o terzero tê centottantanove, o quarto tê duos sillaba e cosi vá s’imbóra”. Não satisfeito com a hiperbólica teoria, Bananére publica um soneto futurista intitulado “As burbuleta”, com rimas e versos livres, glosando famoso soneto camoniano: “Inslebão, padre da Raffaela, / Serrana bela, / tenia uno xique cinema nu Braiz…”.v No início de 1913, sempre nas páginas de O Pirralho,Bananére lança a seção “O Rigalegio”, publicação que tinha por lema “anarchia i futurisimo”; para não perder a mão, publica outro “Sonetto futuriste”, desta vez glosando o soneto “Mal secreto”, de Raimundo Correia: “Si a gólere che spuma come o vigno…”.vi

Como se percebe, na agitada e crescente Pauliceia das primeiras décadas do novecentos, e sem jamais perder o bom humor, entrava em cena um novo tratado de versificação, uma nova arte de fazer versos.

O futurismo ganha as páginas dos jornais e revistas

Nos anos que se seguiram, Juó Bananére continuou publicando com regularidade sonetos futuristas em suas páginas de O Pirralho,até que anuncia, na edição de 18 de setembro de 1915, o lançamento de um livro, de sua autoria, com “trintas poisias i sunetto tendo tambê argunas gançonetta popolora, tutto in puro stile futuriste, o stile da moda!”. E, bulindo com os imperativos da cronologia, algo típico de seu anarco-anacronismo, dá aos leitores uma amostra, “uma linda poisia chi Arvaro di Zevêdo copió virgognosamente di mim”; e publica “Tristezza”, com o célebre final:

Discançe migna cóva lá nu Piques,
N’um lugáro sulitáro i triste,
Imbaxo d’uma cruiz i scrivan’ella:
– Fui poete, Barbiere, i giurnaliste!vii

De fato, naquele ano aparecia La divina increnca, com poemas no mais puro estilo macarrônico-futurista de Juó Bananére. Mas, por trás do humor do irônico personagem, é possível perceber que suas paródias a textos clássicos promoviam uma revisão da nossa história literária ao mesmo tempo em que colocavam em xeque estilos consagrados, notadamente os parnasianos e seus sonetos. Neste ponto é importante salientar que a reescrita paródica de textos consagrados – desde a narrativa da carta de Caminha até os poemas parnasianos, passando por clássicos do romantismo – seria uma característica da poesia moderna a partir de meados da década de 1920.

No final de 1915, Juó Bananére se afasta – uma das vezes em que fez isso – das páginas de O Pirralho, mas o futurismo, cada vez mais acompanhado de outros -ismos, avança, ocupando as páginas de jornais e revistas. Qualquer manifestação e comportamento que fugisse de um certo padrão logo eram taxados de futuristas; charges ironizavam o estilo apresentando desenhos incompreensíveis ou estapafúrdios. Para ficar apenas em um exemplo, basta lembrar da muito comentada crítica de Monteiro Lobato à exposição de Anita Malfatti de 1917-1918:

Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e “tutti quanti” não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – mas caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma ideia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador.viii

O artigo de Monteiro Lobato acabou se transformando em um dos elementos responsáveis pelo agrupamento de jovens que trilhavam diferentes caminhos em busca de novas propostas artísticas e que se sentiram, de alguma forma, também atingidos pela crítica; a partir da defesa da pintura de Anita Malfatti formou-se o grupo que realizaria, anos depois, a Semana de Arte Moderna.

Ao entrarmos nos anos de 1920, “futurismo” e “futurista”, este último empregado como adjetivo e substantivo, são termos cada vez mais recorrentes. Para os conservadores, são palavras sempre relacionadas a violência, iconoclastia, destruição do passado, desvairismo, práticas de gente maluca e perigosa; para os “avanguardistas”, as propostas futuristas lançadas por Marinetti representavam o caminho da modernidade, embora as notícias que vinham da Itália e davam conta da aproximação de Marinetti com o nacionalismo fascista, em ascensão desde 1919, causassem certo estranhamento.

Uma obra realmente futurista?

Um artigo de Oswald de Andrade, com o título “Meu poeta futurista”, publicado em 27 de maio de 1921 no Jornal do Comércio, colocou muita lenha na fogueira em que ardiam os preceitos – e também os estereótipos – futuristas.

Mário de Andrade começara a escrever os poemas de Pauliceia desvairada em uma noite de dezembro de 1920 e, vencendo sua habitual timidez, lia seus versos somente para os amigos mais próximos. Oswald de Andrade era o mais entusiasta e via naqueles versos a manifestação da reforma estética tão aguardada; na tentativa de tornar pública a obra de seu amigo, escreve o artigo citado, comenta que Pauliceia desvairada tem “cinquenta páginas talvez da mais rica, da mais inédita, da mais bela poesia citadina”, reproduz o poema “Tu” e pergunta aos seus leitores: “Acharam estranho o ritmo, nova a forma, arrojada a frase?”, ao que ele mesmo responde, exclamando: “Graças a Deus!”. E acrescenta, não sem uma ponta de afiada ironia: “Nós também temos os nossos gloriosos fixantes da expressão renovadora de caminhos e de êxtases”.ix

Mário de Andrade, profundamente incomodado, sobretudo com dedos apontados na rua, publica em 6 de junho, no mesmo jornal, o artigo “Futurista?!”, em que se defende questionando o futurismo e afirmando que não se prende a escola alguma (ideia que repetirá no “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada). Mas isso parecia não ter bastado; ainda consternado com a repercussão que teve o artigo de Oswald, Mário publica, no mesmo Jornal do Comércio, uma série de sete artigos, entre 2 de agosto e 1º de setembro, com o título geral de “Mestres do Passado”. Textos que constituem um dos mais importantes documentos para se compreender todo o processo cultural que resultou na Semana de 22.

Malditos para sempre os Mestres do Passado!

O primeiro dos sete artigos, “Glorificação”, é uma introdução; nele, Mário faz uma referência ao escândalo que se seguiu à publicação do artigo “Meu poeta futurista”, menciona as injustiças e as leviandades das críticas oriundas da chamada geração parnasiana e de seus herdeiros. Não deixando margem para dúvidas, evidencia que a celeuma e a tacanha incompreensão foram os fatores que ensejaram a série de textos: “Mas esse escândalo trouxe-me um benefício: despertou-me novamente no espírito a ideia de escrever umas linhas sobre os poetas parnasianos do Brasil”.x Os cinco artigos seguintes tratam das obras de Raimundo Correia, Francisca Júlia, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Vicente de Carvalho. Esses são os Mestres do Passado a quem Mário saúda:

Ó Mestres do Passado, eu vos saúdo! Venho depor a minha coroa de gratidões votivas de entusiasmo varonil sobre a tumba onde dormis o sono merecido! Sim: sobre a vossa tumba, porque vós todos estais mortos! E se, infelizmente para a evolução da poesia, a sombra fantasmal dalguns de vós, trêmula, se levanta ainda sobre a terra, em noites foscas de sabat, é que esses não souberam cumprir com magnificência e bizarria todo o calvário do seu dever! Deveriam morrer! Assim conclama, na marcha fúnebre das minhas lágrimas, a severa Justiça que não vacila e com a qual vos honro e dignifico! Deveriam morrer!

Mas o que nos interessa, neste ponto, é entender o que Mário criticava na poética parnasiana e o que ele propunha como uma nova estética.

Num apanhado das críticas feitas por Mário, é possível alinhar alguns pontos (fazendo a ressalva de que algumas dessas críticas se encaixam melhor na obra de um ou de outro dos poetas abordados): os parnasianos produzem poemas formalmente perfeitos, mas descrevem uma beleza falsa, sem dar vazão a sentimentos sinceros; por falta de inspiração, prejudicados pelo desejo de ser parnasianos, caem num intelectualismo exagerado, pretensioso, sem veemência; não têm princípios filosóficos e religiosos como não se esforçam por tê-los; tinham pouco a dizer (de Alberto de Oliveira, em particular, diz que quando não sentia coisa nenhuma, escrevia poemas parnasianos); quando abordavam o lirismo amoroso tinham quedas lamentáveis para um romantismo funerário da pior espécie; tratavam de temas convencionais do passado; empregavam uma língua pura, de toada sonora e cantadeira, ou de estilo rebuscado até o ridículo; manifestavam uma excessiva busca pela perfeição, impedindo a comoção de quem lê; realizavam inversões esdrúxulas, pesadas, nas quais a frase se arrasta lenta, longa, entrecortada; ostentavam a mania pelas chaves de ouro e a preocupação com os poetas e heróis do mundo antigo.

De Bilac, em particular, Mário diz que “é o malabarista mais genial do verso português. Soube reunir todos os artifícios e perfeições da Beleza em seus versos. Mas com o passar dos tempos perdeu-se no fetichismo pela Perfeição”. E sobre os rigores da metrificação, tão explorados pelo Tratado, de Bilac e Guimarães Passos, e pela A arte de fazer versos, de Osório Duque-Estrada, ironiza: “Medir pés de versos uma vida inteira!! Meu Deus, que sapateiros formidáveis! Com os produtos enganosos de sua fábrica obstruíram nosso futuro e nosso passado literário”.

Já no penúltimo artigo, em que comenta a obra de Vicente de Carvalho, o mais poupado dos cinco, Mário começa a apresentar os seus conceitos estéticos, que se estenderiam pelo último artigo. Assim o leitor se deparava com o que deveria ser entendido como Arte, a verdadeira Arte, com “a” em caixa-alta. Para uma melhor compreensão da proposta estética do autor de Pauliceia desvairada, transcrevemos literalmente suas palavras:

Antes de mais nada: tenho uma concepção da Arte absolutamente diversa da imaginada pelo senso comum; sem todavia afastar-me do bom senso. E não estou sozinho. Arte não é só construção de Beleza: nem este é o seu maior fim. […]
A arte deriva da necessidade de expressão do homem. Os sentimentos e pensamentos deste bicho eminentemente social requerem uma saída, uma exteriorização que os torne compreensíveis à companheira ou companheiros. […]
Foi o desejo de expressar sentimentos e pensamentos de significação lírica que levou o homem a criar as artes. […]
Enfim: a Arte, a meu ver, é a expressão dos sentimentos e dos pensamentos por meio da beleza; e não foi, senão em tempos de confusão e desvio desse destino, uma reprodução maninha do Belo. E tanto mais é vergonhosa esta última compreensão, que o homem astutamente se serve dos sentimentos e da comoção, que estiliza, para tornar bela a sua obra e bancar o artista! […]
Nego que a Arte seja reprodução do Belo somente, e acredito ser ela uma objetivação do humanismo psíquico. Arte é, antes de mais nada, um meio de o homem expressar livremente para consolar, para elevar, para se comunicar, tudo que é moto lírico, que lhe vai n’alma. O conceito do Belo pode e mesmo deve entrar no pensamento do artista. É certo que entra, pois mesmo quando conscientemente o artista não pense em construir belo, a preocupação de “agradar” trabalha no subconsciente. Mas essa preocupação não deve ser total, a única, porque o artista deixaria de ser artista para ser artífice; para ser um simples escravo, beneditino ou idólatra da implacável Afrodite. […]

Só uma verdade ali é verdadeiramente verdade: Arte se faz com vida e liberdade. Outra ainda: É preciso estudar e ter princípios.

Como se percebe, o conceito de arte de Mário de Andrade choca-se radicalmente com o conceito defendido pelos parnasianos, que escreviam com o objetivo único de atingir o Belo e faziam da perfeição formal o meio para isso. Daí passarem da categoria de artistas para a de artífices, escravos da deusa Forma, com a inabalável paciência de beneditino, isolado do mundo, buscando a Beleza (Olavo Bilac, no soneto “A um poeta”, escreve: “Longe do estéril turbilhão da rua. / Beneditino, escreve! No aconchego / Do claustro, na paciência e no sossego, / Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!”). Contra esse isolamento e essa extremada devoção à Beleza, que só se atinge pela Forma, Mário defende que o Belo é consequência e não fim e que a Arte, a verdadeira Arte se faz com vida e liberdade. Daí a constatação: “Os nossos parnasianos foram bem fraquinhos artistas”.

Afinal, ser ou não ser futurista?

Como se viu, os artigos contra os “Mestres do Passado” nasceram de uma tentativa de Mário de Andrade de se livrar da pecha de futurista. Mas, curiosamente, nunca o escritor foi tão futurista como nos artigos comentados. No sétimo texto, fechando a série, assimilando o golpe, ele diz ser “o futurista ridículo, o burlão, o almofadinha frequentador do chá-das-cinco, pernóstico e desavergonhado. E por mais energicamente que dissesse não ser futurista, não me escravizar a escola alguma, e ser um atormentado pesquisador da verdadeira significação da Arte, das relações existentes entre Arte e Beleza… Nada. Não me ouviram”.

E assume uma linguagem marinettiana para desancar os críticos e amaldiçoar os parnasianos:

Ó morteiros de irritação dentro dos novos! Ó oceanos das nossas cóleras elétricas, ó arranha-céus dos nossos punhos fechados! Mas não vos amaldiçoamos, ó críticos, porque nossa maldição vai mais alto. Atinge a mão que vos segura, alcança a lua que vos cegou.
Malditos para sempre os Mestres do Passado!
Tolos e malditos! Cuspimos sobre vós a nossa maldição e as risadas alumbrantes da nossa cólera, o despeito divino das nossas impaciências!

Pelo vigor da linguagem e da atitude combativa, percebe-se como aquilo que os modernistas assimilaram do manifesto futurista foi a exaltada negação das concepções artísticas do passado, a luta contra o academicismo, contra a literatura que refletiu a imobilidade meditativa e melancólica. Por outro lado, a ruptura com formas artísticas do passado, o fim das amarras da perfeição formal, a ousadia, as palavras em liberdade, o verso livre, sair do claustro e ir para as ruas onde pulsava o mundo moderno foram caminhos buscados pelos modernistas ao longo dos dez anos que separam as irônicas brincadeiras de Juó Bananére da realização da Semana de Arte Moderna.

A busca da identidade nacional: curemos Peri!

E como as discussões estéticas e artísticas não ocorrem em um mundo imaterial, em um vácuo sem relação com o entorno – mesmo o paciente e sossegado beneditino de Bilac nada tinha de isolado e imparcial –, não seria demais dizer que a luta por uma arte viva e livre já trazia em seu âmago uma série de discussões e reflexões concernentes à maneira como a arte pode representar a identidade nacional. Esse é um ponto fundamental: toda proposição artística é também uma indagação sociocultural.

Vale lembrar, nesse sentido, que no período anterior à Semana de 22 membros do grupo modernista já discutiam formas de repensar e reinterpretar a cultura nacional. Por exemplo, em 2 de janeiro de 1915, nas páginas de O Pirralho, Oswald publicou o artigo “Em prol de uma pintura nacional”, no qual comentava a importância de os artistas que estudavam no estrangeiro (sobretudo os que ganhavam a bolsa do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo), ao retornarem para casa, imbuídos de técnicas e conhecimentos estéticos, passassem a tratar de temas nacionais, não tremendo diante de um “maço de coqueiros quebrando a linha do conjunto”, nem se horrorizando em face “da nossa natureza tropical e virgem, que exprime luta, força desordenada”.xi Propostas essas que podem ser identificadas nas telas O homem de sete cores e Tropical, de Anita Malfatti, feitas em 1915 e 1917, respectivamente – a primeira delas pintada quando a artista ainda estava nos Estados Unidos.

Outros exemplos poderiam ser citados, como a polêmica que Menotti del Picchia e Mário de Andrade travaram na imprensa sobre “matar” ou “curar” Peri. O primeiro, em artigo de 23 de janeiro de 1921, defendia que, através do assassínio simbólico do personagem de José de Alencar, o Brasil conseguiria se livrar do pesadelo do passado e assumir a face de um “povo moderno, avanguardista, criador, pensador, liberto e original, crisálida saída do casulo para o grande voo no espaço e na luz. Para isso, o surge et ambula do milagre novo, resume-se nesta fórmula profética e simbólica: Matemos Peri!”.xii Mário de Andrade responderia com um texto datado de 31 de janeiro e intitulado “Curemos Peri (Carta aberta a Menotti del Picchia)”. Dizendo-se espantado e assustado diante do ímpeto mortal e sanguinário, afirma que “os homicídios, amigo, acarretam quase sempre a morte do algoz. Morte moral que mais acabrunha e nulifica”. Para Mário, ao invés da morte, era preciso buscar a cura:

Devemos, é certo, conhecer o movimento atual de todo o mundo, para com ele nos fecundarmos, nos alargarmos, nos universalizarmos; sem porém jogarmos à bancarrota a riqueza hereditária que nos legaram nossos avós. A doença do Peri é curável, desde que vejamos com mais realidade os passos da vida e com amor mais produtivo a imagem da pátria. Depois da operação de catarata que o cega, depois dum bom e farto jantar, dum banho perfumado de manacás, numa vida de conforto e mais higiene, Peri será outro e poderá ostentar a sua cara original e expressiva por quanta via, calle, strazze, street ou impasse haja nas babilônias do velho mundo. Que se riam os loiros […]. Tenho a certeza de que o amigo ainda fará a sua viagem à Europa de mãos dadas com Peri. Entendamos Peri! Amigo Menotti, curemos Peri!xiii

No fundo, esse debate, assim como o artigo de Oswald sobre a pintura nacional, versava sobre uma questão fundamental: ao romper as amarras estéticas da arte e da literatura, como era possível encontrar a medida entre o antigo e o novo, a tradição e a inovação? O mundo da modernidade, ao rasgar tratados e modelos, ao modificar paisagens e comportamentos, ao encurtar distâncias e acelerar o tempo, ao fazer emergir grandes e impetuosos conglomerados populacionais, cria um contexto de instabilidade, fluidez e incerteza. Não espanta, portanto, que no meio do “movimento atual” se queira buscar referências no conhecido e no hereditário, que se queira lançar os olhos sobre a natureza tropical, a literatura indianista, os textos clássicos. Um olhar, é certo, renovado, que atravessa as lentes do futuro.

Nesse sentido, nunca é demais lembrar que o eu lírico da Pauliceia desvairada, esse sujeito que se comove com a diversa e desigual cidade de São Paulo, então uma arlequinal protometrópole de quase 600 mil habitantes, é nada menos do que um “trovador”, mais especificamente “um tupi tangendo um alaúde”. É um ser que, ao cantar em linguagem moderna, viva e livre, faz isso através da fusão de referências típicas de um país surgido de uma colônia, do amálgama da tradição literária ibérica com a cultura dos povos nativos. Haverá algo que consiga ser, a um só tempo, mais hereditário e mais inovador do que isso? E o mesmo não vale para Pau Brasil, livro de 1925 que, dentre outras, possui seções chamadas “História do Brasil” e “Poemas da colonização”?

A poética dos modernistas de 22, portanto, ao propor uma revolução estética, trazia em seu âmago uma série de reflexões que conduziriam às fundamentais discussões sobre a identidade nacional, marca indelével de nosso múltiplo e rico modernismo. Ao romper as amarras da poesia parnasiana, os olhos estavam postos no futuro, mas não podiam (nem queriam) se livrar completamente do passado. Será por isso, então, que a última frase do “Prefácio interessantíssimo”, uma citação do escritor alemão Gorch Fock, diz que “Toda canção de liberdade vem do cárcere”? Uma frase que, segundo o próprio Mário, poderia ter evitado o prefácio.

Ou talvez fosse o caso de dizer, sem medo de incorrer em um tolo truísmo, que os poetas e artistas que fizeram a poética de 22 não eram nada mais nada menos do que pessoas profundamente arraigadas em seu tempo. Sujeitos que sabiam, acima de tudo, problematizar e pensar o seu tempo. Afinal, como escreveu Mário de Andrade em uma carta enviada a Prudente de Moraes Neto, em outubro de 1925:

De mim já se falou que sou futurista, que sou desvairista, que sou impressionista, que sou clássico e que sou romântico. É verdade que tenho sintomas e qualidades de tudo isso. Porém é questão de fim de receita: dissolva-se tudo isso no século vinte e agita-se. Que dá? Dá moderno. Estou convencido que sou do meu tempo.xiv

Notas

i “Profissão de fé”. In: Olavo Bilac. Olavo Bilac: obra reunida. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 89-92.

ii Olavo Bilac & Guimaraens Passos. Tratado de Versificação. Rio de Janeiro: Typografia da Livraria Francisco Alves, 1905. p. 31-32.

iii Osório Duque-Estrada. A arte de fazer versos. Prefácio de Alberto de Oliveira. Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia, 1912.

iv Oswald de Andrade. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1954. p. 134.

v O Pirralho. ed. 63, 26 de outubro de 1912.

vi O Pirralho. ed. 80, 1º de março de 1913.

vii O Pirralho. ed. 202, 18 de setembro de 1915.

viii Monteiro Lobato. “A propósito da Exposição Malfatti”. O Estado de S. Paulo, edição vespertina, de 20 de dezembro de 1917. p. 4.

ix Oswald de Andrade. “O meu poeta futurista”. In: Estética e política. Org. Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Globo, 1992. p. 22-25.

x Mário de Andrade. “Mestres do Passado”. Os trechos citados reproduzem passagens dos sete artigos que estão integralmente transcritos em: Mário da Silva Brito. História do modernismo brasileiro. 1. Antecedentes da Semana de Arte Moderna. 4ª ed., Rio e Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. p. 254-309.

xi Oswald de Andrade. “Em prol de uma pintura nacional”. O Pirralho, ed. 168, 2 de janeiro de 1915.

xii Menotti del Picchia. “Matemos Peri!” In: Menotti del Picchia: o Gedeão do modernismo (1920-22). Menotti del Picchia: o Gedeão do modernismo (1920-22). Organização de Yoshie Sakiyama Barreirinhas.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1983. p. 194-197.

xiii Mário de Andrade. “Curemos Peri (Carta aberta a Menotti del Picchia)”. In: Novos Estudos, edição 57, volume 2, Cebrap, julho de 2000. p. 33-36.

xiv Mário de Andrade. Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Moraes Neto (1924-1936). Organização de Georgina Koifman. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

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