O contundente apelo do Acampamento Terra Livre

Carta dos 200 povos originários reunidos em Brasília afiança: paralisação de demarcações de terras indígenas em favor dos ruralistas, realizada pelo Supremo, é “uma declaração de guerra”. Constituição precisa prevalecer, diz. Lula promete interlocução

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Por Fábio Bispo, no InfoAmazonia

A 20ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL) chegou ao fim nesta sexta-feira (26). No encerramento, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organizadora do evento, divulgou uma carta crítica aos três poderes e chamou as decisões que suspendem as demarcações de terras de “declaração de guerra”.

“A decisão deliberada dos poderes do Estado de suspender a demarcação das terras indígenas e de aplicar a lei 14.701 (Lei do Genocídio Indígena) equivale a uma declaração de guerra contra nossos povos e territórios. Isso representa uma quebra no pacto estabelecido entre o Estado brasileiro e nossos povos desde a promulgação da Constituição de 1988, que reconheceu exclusivamente nossos direitos originários, anteriores à própria formação do Estado brasileiro”, diz o documento.

Trecho da carta final divulgada pela Apib nesta sexta-feira (26), no encerramento do ATL. Imagem: Reprodução/Apib

O advogado da Apib, Maurício Terena, disse, durante entrevista coletiva a jornalistas, que a organização estuda meios jurídicos para contestar a recente decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu todas as ações que questionam a legalidade da lei 14.701/2023, aprovada pelo Congresso no final do ano passado, e abriu uma conciliação para discutir a tese do marco temporal. 

“O ministro [Gilmar Mendes] quer assim dar sinal verde para os que querem invadir nossas terras passarem a boiada sobre nossas vidas”, diz um outro trecho do documento. A carta afirma, ainda, que Mendes teria sido “parcial” em sua decisão. Chamada de “Lei do Genocídio Indígena” pelo movimento indígena, a lei 14.701 estabelece um marco temporal para terras indígenas e abre os territórios para exploração de recursos naturais. 

Acampamento Terra Livre (ATL) ocorreu nesta semana, entre segunda (22) e sexta (26), com marcha e discussões em Brasília. Fotos: Fábio Bispo/InfoAmazonia

Desde a aprovação pelo Congresso, segundo Terena, os direitos indígenas se encontram em “um limbo jurídico”, que tem implicado em paralisações e suspensão de processos para demarcação de terras.  

“Já é claro, por decisão do próprio STF, que o marco temporal é inconstitucional. Toda essa confusão política está sendo feita para, em alguma medida, alguns interesses que estariam obscuros virem à tona nessas ações. A pauta da mineração em terras indígenas pode ser utilizada dentro dessas ações para ser regularizada”, afirma o advogado da Apib.

Essa conexão apontada por Terena entre a decisão de Gilmar Mendes e a mineração de terras indígenas está relacionada às ações selecionadas pelo próprio ministro para a suspensão no início da semana. Além de paralisar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7582, 7583 e 7586, que de fato questionam a lei do marco temporal, Mendes também incluiu no pedido de conciliação uma posição sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86, proposta pelo Progressistas (PP), que exige uma posição do STF a respeito da regulamentação da exploração de recursos naturais em terras indígenas (artigo 231), que inclui mineração.

A advogada Juliana Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), explica a diferença entre os dois tipos de ações diretas: as ADIs questionam uma lei aprovada pelo Congresso, enquanto a ADO pede que o Congresso regulamente artigos da Constituição. “São coisas diferentes e deveriam ser julgadas de forma independente”, diz.

Atualmente, a mineração e exploração de recursos naturais em terras indígenas é proibida pela Constituição, exceto quando há relevante interesse público da União e mediante aprovação de lei complementar. 

Xadrez político

Durante a entrevista coletiva com jornalistas, Terena também destacou a proximidade de Gilmar Mendes com a bancada ruralista e afirmou que o ministro tem realizado encontros constantes com membros do agronegócio, tanto no Brasil, como no exterior: 

“Os indígenas não almoçam com ministros do Supremo e, por sua vez, parece que essas decisões são tomadas em um almoço desses. A gente já começa em desvantagem”, declarou o advogado, apontando que as articulações para retirada de direitos dos povos indígenas são um “jogo de xadrez”.

Na decisão para que as ações sejam encaminhadas para conciliação, Gilmar Mendes defendeu a “pacificação dos conflitos, na tentativa de superar as dificuldades de comunicação”. Em entrevista à InfoAmazonia nesta semana, a líder indígena Txai Suruí disse que “existem direitos que não se negociam” e criticou diretamente a decisão do ministro. 

Além das partes envolvidas, indígenas e ocupantes dos territórios, a comissão de conciliação proposta por Mendes também contará com a participação de representantes do Executivo e do Congresso.

Para o advogado da Apib, por se tratar de direito fundamental, previsto na Constituição, os direitos indígenas não podem sofrer retrocessos como prevêem os artigos da lei 14.701 e diz que as pressões sobre as áreas destinadas aos indígenas se “tornaram uma disputa política”.

Maurício Terena (E), Dinamam Tuxá (centro) e Kleber Karipuna (D), da coordenação da Apib, durante coletiva de imprensa no ATL. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

A tese do marco temporal estabelece que só podem ser reconhecidas as terras indígenas que estavam ocupadas até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Em setembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou o marco temporal, com repercussão geral sobre qualquer novo questionamento sobre a demarcação de terras indígenas com base nessa tese.

No entanto, mesmo após a decisão do Supremo, o Congresso aprovou uma série de alterações legislativas sobre as terras indígenas, incluindo a tese do marco temporal. A aprovação da lei 14.701 foi articulada por uma campanha da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que chegou a ser vetada pelo presidente Lula (PT). Os vetos foram derrubados e a lei sancionada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em 28 de dezembro de 2023.

Na mesma data, o PP e o Republicanos entraram com pedido para que o STF reconhecesse a constitucionalidade da lei aprovada no Congresso (ADC 87), que por sorteio acabou indo parar sob a relatoria de Gilmar Mendes. Na sequência, a Apib e os partidos Psol, Rede Sustentabilidade, PT, PCdoB e PV também ingressaram com ações, mas pedindo a inconstitucionalidade da lei. Por atribuição, todos os pedidos acabaram indo direto para a relatoria de Mendes, assim como a ADO apresentada pelo PP. 

Indígenas protestaram em Brasília contra lei do marco temporal em marcha que reuniu milhares de representantes de mais de 200 etnias. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia.

Indígenas querem julgamento no plenário do STF

A decisão de Gilmar Mendes, agora, aguarda referendo do plenário do STF. A pauta foi colocada para apreciação dos ministros no plenário virtual, mas o movimento indígena quer que a discussão ocorra no plenário presencial.

Juliana Batista, do ISA, avalia que o debate presencial poderá resolver alguns pontos divergentes sobre o assunto. “Para isso ocorrer, é preciso que algum dos ministros peça destaque. Ainda é possível que sejam apresentados votos divergentes sobre a decisão de Gilmar Mendes”, explica a advogada.

Nas próximas semanas, enquanto buscam os meios jurídicos para reverter a decisão de Mendes, os coordenadores da Apib devem buscar também interlocução com os demais ministros do STF para sustentar a necessidade de um debate mais amplo.

Lula fará interlocução com Gilmar Mendes

Na quinta-feira (25), após uma marcha dos povos indígenas até a Praça dos Três Poderes, o presidente Lula recebeu lideranças do movimento e se comprometeu a buscar pessoalmente uma interlocução junto a Gilmar Mendes. A informação foi confirmada à imprensa pelo o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Márcio Macêdo.

A promessa do governo federal é criar uma força-tarefa em até duas semanas, que vai incluir também a interlocução com governadores e outros atores envolvidos nas disputas pela demarcação de terras indígenas. O grupo será liderado pela ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, que deve visitar governadores em Pernambuco, Alagoas e Santa Catarina para resolver “problemas políticos” que travam demarcações que dependem da homologação do presidente.

Na semana passada, Lula justificou a não demarcação de pelo menos quatro terras indígenas alegando que alguns governadores haviam solicitado mais tempo para resolver questões locais. A manifestação gerou indignação entre os indígenas, que apontaram que as terras declaradas não estariam passíveis de questionamentos.

“Deixamos bem claro para o presidente que ele não pode inaugurar uma nova modalidade no processo de demarcação, que é a consulta a governadores”, afirmou Dinamam Tuxá, coordenador da Apib.

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