Nosferatu, 100: Os espectros que nos rodeiam

Ensaio sobre o emblemático filme do expressionismo alemão. Ao deformar o real, ele sugeriu: as sombras são aspectos essenciais no xadrez do inconsciente — e pestes como a covid não terminam com a morte do vampiro

.

Por Anelise de Carli, no Suplemento de Pernambuco | Imagens: Guilherme de Lima

Na noite do dia 4 de março de 1922 foi vista pela primeira vez a sombra — e o rosto — do vampiro que se tornou uma referência para todos depois dele. Nosferatu: Uma sinfonia do horror, o filme mais famoso de F. W. Murnau, estreou em uma sessão especial no salão de mármore do Jardim Zoológico de Berlim. O local da première era apropriado: as fachadas inspiradas na arquitetura tradicional indiana davam o tom de “gabinete de curiosidades” que o filme sobre um monstro estrangeiro poderia provocar. Os convites pediam que se comparecesse fantasiado. “Traje: Biedermeier” — a primeira metade do século XIX, época em que se passava o filme. Após a exibição, haveria na Fest des Nosferatu um baile de máscaras.

Aos olhos de hoje talvez essa característica passe despercebida, visto que o passado se deposita em sólidos blocos de terra, misturando uma a uma as camadas de diferentes períodos em uma só grande superfície não discernida, mas o Nosferatu de Murnau é um filme de época. Para os alemães recém-chegados naqueles que prometiam ser os anos dourados do século, era grande o otimismo com a recuperada da estabilidade econômica. A capital alemã se tornava um próspero centro cultural, a terceira maior cidade do mundo, onde florescia a Bauhaus, Einstein ganhava o Nobel, Jung publicava sua teoria. Tudo se passava depois da forte crise do final da Primeira Guerra. Eles somente não sabiam ainda que os “loucos anos 1920” seriam um pequeno intervalo entre um período obscuro e outro com sombras ainda maiores.

Olhar naquela época, para um período anterior, possivelmente trazia certa nostalgia apaziguadora, pois assim como eles, aqueles “de época” retratados no filme também tinham testemunhado e superado a pobreza generalizada, a decadência econômica e a guerra. Antes da unificação alemã, os anos 1800 foram cenário de uma série de conflitos sobre um território fatiado que estava começando a utilizar estradas de ferro para conectar os vilarejos para lugares mais distantes.

A história de Nosferatu se passa nesse momento, em 1838, quando uma peste se alastrou por uma cidade portuária, como informa os primeiros letreiros do filme. Um jovem e apaixonado agente imobiliário é enviado para uma longa viagem a fim de vender propriedades para um certo conde morador dos Cárpatos, região montanhosa da Romênia. O enredo do filme certamente lembra o romance lançado décadas antes por Bram Stoker. Morto dez anos antes da estreia do filme de Murnau, o escritor irlandês não veria a adaptação do seu livro para o cinema — e nem autorizaria. Foi a sua viúva, Florence Balcombe, quem descobriu a “livre inspiração” através do convite para certo baile de máscaras enviado para ela em uma carta anônima. Algumas mudanças feitas pelo roteirista Henrik Galeen — nome de prestígio, pois foi responsável também pelo roteiro de outro marcante filme de horror alemão da época, O golem (1915) — não foram suficientes para mascarar o plágio, motivo pelo qual ela empreendeu uma guerra jurídica para obter reparação financeira e destruição da película. O processo demorou três anos para ser concluído, tempo em que a produtora do filme pôde decretar falência — assim não pagando direitos patrimoniais — e espalhar reproduções ilegais pela Europa e Estados Unidos do filme punido ao esquecimento, fazendo do Nosferatu de Murnau, além de uma obra-prima do cinema mudo, um legítimo morto-vivo do cinema.

Por mais que seja evidente o tráfico do enredo, é preciso saber que o vampirismo estava em alta na Europa durante todo o século XIX, que também começou com outro roubo literário. Em 1819, saiu em um jornal londrino o conto O vampiro, seguido da frase um conto de Lord Byron. Mas onde lia-se Byron, deveria ler-se John Polidori, o ex-médico pessoal do poeta romântico que tanto não sabia da publicação de seu próprio texto quanto tinha se inspirado nas figuras de seu antigo paciente (e em um poema dele) para inventar o vampiro moderno, aristocrático, cosmopolita e inescrupulosamente conquistador. O conto virou livro, peça de teatro e ópera. O século XIX viu aparecer diversas variações desse personagem como o Frankenstein (1818) de Mary Shelley, O médico e o monstro (1886) de Robert Stevenson, Os demônios de Alexandre Dumas e Nikolai Gogol e as esposas retornadas da morte de Edgar Allan Poe [nota 1] — pálidas, magras, e portanto sedutoras, porque traduziam ideais de beleza da segunda onda do romantismo. 

Várias dessas tramas não tratam exatamente de vampiros, mas se relacionam por tratar de uma imagem simbólica específica: o duplo. A presença contraditória de opostos descreve bem a composição geral de um monstro: é humano, mas também não o é; tem aparência de humano, mas alma de fera; tem corpo de fera, mas alma de humano; se apresenta como algo bom, mas é ruim; parece não estar presente, mas está. E para nos engajar com essa imagem mascarada, precisamos jogar o jogo que ela propõe: procurar a via contrária e imprevista, ver o contrário do que ela mostra.

Todo um século de romances góticos viria a dar no epistolar Drácula (1897), onde Stoker aliou o vampiro romântico às lendas antigas. Para criar o seu conde, se vale de lendas da terra natal do personagem, a Transilvânia, palavra que se refere à “terra além da floresta”. E é exatamente esse o nome do livro de Emily Gerard sobre o folclore da região, The land beyond the forest (1888). Localizada na fronteira entre Europa Central e Oriental, no extremo leste da atual Romênia, a área foi, desde a queda do Império Romano, ocupada por húngaros, mongóis e sultões otomanos. É uma paisagem repleta de castelos, colinas e florestas densas povoadas por lobos. 

Segundo os relatos dos camponeses colhidos por Gerard, após a morte de alguém, caso não se respeite o ritual fúnebre, a alma do defunto passa a vagar pela terra, transformando-se em um strigoi. Uma variação deles, o pior tipo de alma atormentada, são os vampiros, pessoas que foram “descendência ilegítima” de alguém ou que foram mortas por outro vampiro. Esse monstro é primo de outro, o lobisomem, diferente dele por ter como característica, em vez da fome por sangue, a avidez pelos prazeres carnais.

São inúmeras as referências ao livro no Drácula, principalmente nos rituais de exorcismo necessários para livrar-se do vampiro. Mas o quanto Stoker bebeu de Gerard fica explícito quando ele repete até mesmo um erro cometido por ela, colocando na obra o termo nosferatu. A palavra simplesmente não existe em romeno e, de acordo com os pesquisadores Robert Eighteen-Bisang e Elizabeth Miller, deve ter sido resultado de uma anotação da escritora para algo que escutou na língua local — provavelmente nosophoros (significando, em grego, “o portador da peste”) ou necuratul (em romeno, “o diabo”).

As lendas e relatos antigos ajudam a desfazer a imagem elegante que o vampiro foi ganhando ao longo do tempo, como no do padre Augustin Calmet sobre “cadáveres sanguessugas”. Eles tratam de mortos em estado de palidez e esfriamento (os dois primeiros estágios de decomposição de um corpo animal), sem chegar ao estado putrefato, mas com longas unhas e cabelos, como é próprio dos corpos quando já estão na sua última fase, da redução esquelética. Além disso, os vampiros dos camponeses não viajavam, mas procuravam suas vítimas/seu alimento perto dos locais em que foram enterrados.

Há pouco espaço no inconsciente para a representação da nossa mortalidade, segundo Sigmund Freud. O medo da morte provavelmente se daria pela crença de que os mortos se tornam inimigos daqueles que sobrevivem. A interpretação certamente tem fundamento para determinado ponto de vista cultural, mas de todo não tem univocidade, pois é de conhecimento que muitas tradições consideram os mortos, pelo contrário, ancestrais que protegem e guiam os vivos para uma boa vida. Alguns retornados da morte inclusive são mais que bem-vindos, como o Cristo messiânico.

Na tradicional confusão entre ancestrais mortos e deuses, os sanguessugas por vezes ganham nomes divinos e, principalmente, femininos. Kali, a milenar deusa hindu, se alimenta de sangue e é uma habituée dos campos de batalha tanto quanto Sekhmet, a deusa egípcia da guerra com rosto de leoa. Ainda temos as gregas Lâmias e as albanesas Strix [nota 2], ambas sugadoras do sangue de crianças. Se a ligação entre mulheres e sangue é de se esperar, não tardaria muito para aparecer nesse sistema o impulso erótico. Lilith, a deusa da Mesopotâmia, tem nos filhos íncubos e súcubos demônios sexuais que sugam a “energia vital” dos sonhadores. 

O que é assustador e rejeitado pelos valores da sociedade pode um dia, como propôs o filósofo Gilbert Durand, “vir à luz” e se tornar tendência. Mas esse trajeto das margens para o centro custa um pedágio: não acontece sem que os símbolos sejam desbastados daquilo que têm de mais paradoxal — e eficaz. O vampiro da moda, que sai à luz do dia e é atormentado por uma paixão, se reduz então à maquiagem empalidecida, aos caninos grandes, a certa reminiscência de gosto duvidoso com a estética vitoriana. O vampiro esquecido, enterrado na própria terra de sua tumba, contudo, preserva contido dentro de si o estranho mistério da coisa morta que segue viva — algo que tanto assusta quanto é objeto de desejo e fantasia da ficção científica — e que, para viver, vaga pela terra se alimentando da vida alheia ao passo que vai exterminando-a, sem se preocupar em garantir as condições de sua própria sobrevivência. O vampiro que anda de dia já não carrega mais o seu duplo.

***

Junto de Nosferatu, A última gargalhada, Fausto e Aurora fazem de Murnau o diretor de alguns dos mais memoráveis filmes do cinema mudo. Murnau — que nasceu em 1899, quase junto de Drácula —, depois de voltar da Primeira Guerra Mundial, começou a fazer filmes até chegar ao seu 11º, o mais famoso e menos expressionista dos filmes expressionistas alemães. 

Antes de chegar ao cinema, o expressionismo já havia mostrado suas preferências nas artes plásticas e na literatura alemãs. Visto hoje como um movimento artístico de jovens burgueses, estava ligado a uma crítica social aos valores conservadores de um território após uma sociedade profundamente classista sob o regime de Otto von Bismarck. A crítica não seria literal, mas um libelo antirrealista. Para expressar as emoções, era preciso deformar, exagerar gestos, luzes e cores (caso da famosa pintura O grito, de Edvard Munch). Alguns teóricos chamam o expressionismo alemão de uma “arte de crise” pelo fato de que a tendência estética, com força total nos anos 1920, evidenciava uma desconexão (ou desinteresse) por parte dos artistas com o mundo real. 

Em Nosferatu há todos os elementos dispersos nos filmes da época: traição e insanidade, pesadelos e sonambulismo, curiosidade e medo do estrangeiro. Mas a ele falta a estética do chamado “caligarismo” — em referência a O gabinete de dr. Caligari (1920), clássico do gênero, de Robert Wiene —, uma tendência que enfatizaria a atmosfera emocional perturbada das histórias, um mundo de extremos, desequilibrado, quase sempre se utilizando de uma fotografia com um radical contraste entre claros e escuros. A criação de cenários e objetos deformados muitas vezes na verdade se devia à falta de orçamento, como a pintura de sombras nas paredes. Foram poucos os anos em que o expressionismo esteve em voga na Alemanha, mas suas icônicas escolhas visuais alimentaram amplamente o cinema noir e de terror norte-americano de várias décadas seguintes, principalmente com a imigração de vários artistas fugindo do regime nazista.

Murnau, pelo contrário, tendia para a kammerspiel, nome das peças de teatro de câmara focadas no diálogo, sem grandes aparatos técnicos, e que descreveu também os filmes de aspecto mais realistas do cinema mudo alemão. Antes de dar luz ao vampiro, o diretor tinha realizado outro filme de horror gótico, cujo roteiro também era uma versão apócrifa de um romance – dessa vez, O médico e o monstro – contando com o ator transilvano Béla Lugosi, que anos mais tarde seria outro conhecido rosto de Drácula na versão hollywoodiana de 1931.

Mat. Capa 2 Guilherme de Lima março.22

A crítica da época disse que havia luz demais no Nosferatu e que isso tiraria o poder de assustar do personagem. Apesar da restrição orçamentária — o filme foi rodado com uma só câmera no set —, Murnau elaborou outras opções visuais para manter o contrato de comunicação feito com o público, que foi convidado a não ver o que estava visível, mas também a ver o que não estava visível. Inseriu cenas em negativo na montagem final para dar um aspecto estranho às luzes e sombras, alterou a velocidade de rodagem do rolo para dar uma velocidade surreal aos cavalos, projetou com forte contraste, destoando do restante da fotografia de todo o filme, uma inesquecível sombra subindo as escadas. Compensou o dano técnico dos cenários iluminados demais com barcos que navegam sozinhos e portas que abriam e fechavam sem ajuda de ninguém. Quem diria que um dia esses objetos assustadores que se movem sem nenhum indício de presença humana seriam tão desejados.

A forma de aparecer não aparecendo é uma receita habilmente seguida pelos monstros. Sentimos sua presença pelos efeitos que ela causa, ou seja: tarde demais, quando a epidemia já está em curso. Essa aparente ausência que se revela como agente é um personagem também de outro filme da época, M., o vampiro de Dusseldorf (1931), de Fritz Lang. Crianças são assassinadas, mas nada a respeito de suas mortes são filmadas. Somente vazios, sombras e sua falta nas cenas seguintes indicam o que aconteceu: seu desaparecimento. Essa é uma importante lição das imagens, que algumas coisas podem ser tanto ou até melhor ditas quando não estão visíveis. O vampiro viaja escondido no seu caixão, misturado a vários outros cheios de terra, se mimetizando para desaparecer. Reassistir Nosferatu cem anos depois é rever na cena da pilha de caixões descendo rio abaixo a caravana de caminhões transportando caixões para fora de Bérgamo, os caminhões refrigerados nos hospitais brasileiros e estadunidenses, os corpos cobertos de lençóis nas ruas de Guayaquil. Como uma travessia de Caronte a céu aberto, como o inferno em plena Terra, enquanto nos diziam insistentemente que não havia nada a ser visto, que nada estava acontecendo.

***

O século do vampiro foi povoado por guerras, epidemias, governos autoritários, crises econômicas, todas devastadoras. Durante esse período, Nosferatu quase nunca reinou sozinho. Teve de dividir seu palco mambembe, baseado em muita gambiarra, com outros vampiros, uns mais e outros menos charmosos. 

Na metade desse século, em 1972, começou a longa carreira de uma das maiores advogadas do legado vampiresco. O cinema e a literatura desse período foram recheados pela imaginação de Anne Rice. A escritora passou décadas criando narrativas que humanizavam os vampiros, fazendo cada vez mais a balança desse monstro pender para um dos lados. Ela quase chegou ao centenário de Nosferatu, falecendo em dezembro de 2021. O seu Entrevista com o vampiro (1976) foi um marco ao encontrar o gótico renovado dos anos 1990, não havendo tendência melhor para reviver o vampiro moderno, metáfora do amor fatal com requintes sadomasoquistas.

Outra versão apareceu no mesmo período e no Brasil. A maneira mais tupiniquim de fazer um vampiro aparecer em plena terra arrasada da ditadura só poderia ser no estilo udigrudi. O underground brasileiro era surrealista demais para ser alternativo, baixo-orçamento demais para ser assustador. Carregado de um bom complexo de Macunaíma, o Nosferato no Brasil (1971) de Ivan Cardoso encarnou precisamente no corpo do poeta piauiense Torquato Neto.

O vampiro brasileiro era o oposto literal do de 1922: cabeludo, barbudo e sorridente. Cardoso foi o “cineasta do terror”, termo de Haroldo de Campos para descrever o gênero cinematográfico made in Brazil na década de 1970 que mistura horror e chanchada. Filmando em Super-8 e sem equipamentos de iluminação, o vampiro brasileiro passeia de dia pela cidade e um letreiro no meio do filme justifica: “onde se vê dia, veja-se noite”, explicação, disse o diretor, inspirada no poeta mineiro Affonso Ávila: 

[…] 
onde se lê
OSADMINISTRADORES
leia-se; USAIDMINISTRADORES
[…] 
onde se lê
ESPECULADORES
leia-se
ESSOPECULADORES. 

Se valendo das erratas de documentos públicos e escrito no ano do golpe militar, o poema As siglas foi retirado pela censura do livro Código de Minas (1969), só voltando em uma nova edição do livro publicada quase trinta anos depois. 

De outro lado, estreando a lista de vampiros medonhos, está Max Schreck, ator que Murnau escolheu para caracterizar de vampiro. Sua atuação combinada com a direção de arte se tornou tão icônica que mais tarde outro filme, A sombra do vampiro (2000), homenagearia o clássico com uma curiosa anedota de que o ator era um vampiro de verdade e por isso se saiu tão bem no personagem.

O Nosferatu de Murnau é um vampiro esquálido, corcunda de tão magro, um tanto ridículo, como Foucault disse que são os ditadores ao projetarem uma aparência subestimável para chegar ao poder. A sombra centenária subindo as escadas para ir ao encontro de seu mais desejado alvo (e inesperadamente do seu ato final) se tornou um ícone gráfico, referências para as mais diversas criações nas artes visuais desde então. Flora Süssekind, em artigo neste Pernambuco sobre a montagem de Macunaíma por Bia Lessa, chamou essa sombra de “figura-presságio”. A silhueta das mãos finas com unhas pontiagudas aguça a impressão de que algo ruim está à espreita e chega com passos leves, antecipando um futuro sombrio. A sombra é assustadora porque se comporta como um indício de uma presença indesejada e como prenúncio de um tempo-espaço a ser obrigatoriamente compartilhado com ela.

Outra homenagem merece ser lembrada, mas essa não é nada espirituosa: foi feita por Werner Herzog. Nela, Klaus Kinski encarna não somente o vampiro, mas a própria atuação original, replicando os trejeitos que Schreck deu ao personagem. Foi considerado (pelo próprio Herzog) como o melhor vampiro de todos os tempos. Nosferatu: Fantasma da noite (1979) apareceu em meio a outra onda artística, o novo cinema alemão. Hoje a história desse vampiro pode parecer inocente, mas Herzog fez dela algo novamente tétrico, com a ajuda de longas cenas de paisagens naturais e sua sublime imensidão contrastando com o close-up de corpos mumificados e de voo de morcegos em câmera lenta, com a trilha sonora da banda Popol Vuh, com os longos silêncios de Herzog e os figurantes especiais: milhares de ratos. 

O cortejo de ratos na chegada do navio do vampiro ao porto, somado ao aspecto cadavérico do Nosferatu levantaram suspeitas no debate público de que houvesse alguma intenção antissemita na produção do filme. Hoje essa possibilidade é considerada altamente improvável, dado que é de conhecimento público que Murnau era homossexual e que atuou diretamente na proteção de pessoas judias perseguidas pelo nazismo. Mas a sombra dessa dúvida persevera, pois, quando estamos no campo das imagens, as ressonâncias de formas falam mais alto que os argumentos. Uma polêmica recente envolvendo o Museu de Arte e História de Genebra relacionou diretamente uma caricatura de um arquiteto — branco, careca, narigudo e vestido como Nosferatu — à propaganda do regime nazista.

A aparência do vampiro de Murnau rapidamente virou um ícone e, assim sendo, foi utilizada para os mais diversos propósitos, chegando a representar, como acontece nas imagens que têm vida longa, o inverso daquilo que queria dizer originalmente. Em 1942, uma exposição na Paris ocupada pelos alemães e inspirada no antropólogo racista George Montandon trazia por meio de cartazes ilustrados “formas de reconhecer um judeu”. Seu aspecto físico era magro, com um nariz longo e adunco, e seus dedos tinham forma de garra — muito propriamente dispostos sobre o mapa da Europa, seu suposto ideal de conquista no delírio nazista. A semelhança entre as figuras jamais abandonou a memória visual da região, fazendo com que muitas vezes a sombra chegue antes do vampiro.

Saindo da literalidade, a sombra é um aspecto essencial no jogo de xadrez do inconsciente, segundo Carl Gustav Jung. Ela diz respeito ao lado impulsivo, emocionalmente descontrolado e, portanto — afinado ao delírio da excepcionalidade humana —, animalesco da nossa personalidade. A sombra se apresenta em sonhos através das imagens de animais e de outros elementos do mundo feroz da noite. Ela não é, contudo, um defeito ou exclusividade de alguns, mas parte intrínseca da nossa psique. Aprender a relacionar-se com as sombras pessoais e coletivas, e evitar que ela nos consuma, é um esforço constituinte do caminho da individuação.

O termo sombra é importante porque enfatiza um jogo de projeção. Algo, um facho de luz, uma relação, que tenta atravessar alguém e que é por esse corpo barrado. Apesar dessa importante presença do sujeito, Jung insiste em enfatizar que a projeção não é obra dele, mas do inconsciente (pessoal ou coletivo). Afora aquilo que essa premissa poderia ajudar a desenvolver no ambiente analítico íntimo, o que nos interessa aqui é perceber que às vezes nos engajamos com sombras projetadas antes e de forma alheia a nós mesmos. E é aí que a sombra do vampiro nos interessa.

Desde que ganhou popularidade na literatura de Stoker e no cinema de Murnau, o vampiro ajudou a dar forma ao sentimento de invasão da intimidade das quais precisamos nos defender psiquicamente. Foi dessa forma que Ernest Jones, o biógrafo de Freud, descreveu em O pesadelo (1931) a simbologia evocada pelo monstro. Ele foi possivelmente o primeiro a dizer que o vampiro evoca as pulsões e os conteúdos inconscientes que recalcados, e justamente por isso sua imagem aparece nos sonhos junto a cenários e outros personagens íntimos e familiares.

Ratos, morcegos, montanhas, loucos, uma histérica (ou, melhor dito, uma mal administrada intuição feminina) são elementos conhecidos do Nosferatu de Murnau e do mundo dos vampiros. Mas outros são tão importantes quanto e ficam um pouco renegados, como a terra dos caixões. É dito que o vampiro deve dormir em caixões porque precisa descansar na terra do seu país para recobrar suas forças, o que nos leva a entender que ele é forte porque promove seu próprio “enraizamento”. A figura vampiresca nutre especial relação com a permanência, o apego e a tradição, apesar de ser na aparência um ser capaz de promover no seu próprio corpo uma metamorfose. Há quem menospreze o efeito de histórias conhecidas e repetidas reduzindo-o a um termo: clichê. Mas como afirmou Gilbert Durand, um mito não fala seu nome, querendo dizer que aquilo que fica aparente quando uma imagem se torna tendência provavelmente é a parte mais desbastada e menos eficaz do simbolismo de um mito. O vampiro, ao contrário de ser uma figura dinâmica, estaria mais ligada à manutenção de um estado de coisas, um estancamento emocional por parte dos sujeitos, que se alimentam da energia vital de quem quer que se relacione com esse ser melancólico. A falta de desprendimento ao passado faz com que cultivemos “vampiros de estimação”. [nota 3]

As sombras que chegam antes do corpo são prato cheio para nossas fantasias mais criativas. Esse tema foi sabiamente explorado por Francis Ford Coppola em Drácula de Bram Stoker (1992). Nele, a recriação das sombras de Murnau é aprimorada: elas agora surgem descoladas do corpo e praticando ações que o corpo gostaria de cometer, mas está impedido. A artista brasileira Regina Silveira dá matéria a esse aspecto duplo das sombras: de autoria alheia, inconsciente, mas também intrinsecamente nosso; realizadora dos desejos escondidos. Seus objetos projetam sombras enormes, por vezes com formas bem diferentes daquelas do corpo original. Em outras já nem sabemos como estabelecer esse link, pois o referente desapareceu. As silhuetas deixam de ser “a marca do amante que partiu”, como na metáfora romântica de Plínio, o Velho, e se tornam presságio da chegada de presenças não tão amorosas. Dessa maneira, Silveira inverte o jogo: não é mais o corpo que determina a sua sombra, mas as sombras que compõe um corpo imaginado. 

O modo como chegam os vampiros — primeiro suas sombras, as histórias que ouvimos sobre eles, donos de um conhecimento que não entendemos — se parece muito com o modo como chegam até nós os estrangeiros. A história de Nosferatu-Drácula serve como prolífica metáfora para pensar o que Edward Said chamou de orientalismo, a fabricação de um ficcional Oriente do ponto de vista do Ocidente. As narrativas ganham força quanto mais forte seja o vínculo entre o leitor e o eu-lírico da vez — mesmo que o detestemos. A vinda do forasteiro se dá por interesse em “terras” desse lugar que é, então, a casa do narrador. A relação entre Europa Continental (lugar da cidade portuária alemã) e o Leste Europeu (representada pela Transilvânia) miniaturiza a relação Ocidente-Oriente que já motivou tantas guerras ficcionais e reais. 

Vimos operar o mesmo discurso bélico contra o “inimigo invisível” na epidemia da covid-19. Diante a invisibilidade do invasor, outros corpos ganham à força o papel de encarnar a ameaça. Navios possivelmente transportando vírus foram impossibilitados de cruzar fronteiras, pessoas com fenótipo asiático foram vítimas de violência, corpos e rostos foram encerrados em redomas seguras. Mas à diferença do que acontece com Nosferatu, no entanto, a peste não termina com o fim do vampiro. E para lidar com a sinfonia do horror à brasileira, onde todos os instrumentos estão articulados para fazer o pior acontecer, é preciso estar atento a quem pertence a sombra que sobre a escada.


[nota 1] Refiro-me às personagens Berenice, Ligeia e Morella de diferentes contos de Poe, à peça Le vampire (1851) de Dumas e às histórias como Viy (1835) e O retrato (1835), de Gogol.

[nota 2] De onde provavelmente venha o termo italiano strega para se referir a bruxas e mulheres velhas pouco quistas.

[nota 3] Devo essas ideias e expressão ao psiquiatra Felipe Nora de Moraes. https://www.facebook.com/plugins/comments.php?app_id=&channel=https%3A%2F%2Fstaticxx.facebook.com%2Fx%2Fconnect%2Fxd_arbiter%2F%3Fversion%3D46%23cb%3Df2329f287c5bbe4%26domain%3Dwww.suplementopernambuco.com.br%26is_canvas%3Dfalse%26origin%3Dhttps%253A%252F%252Fwww.suplementopernambuco.com.br%252Ff827e625b1fbe8%26relation%3Dparent.parent&color_scheme=light&container_width=0&height=100&href=https%3A%2F%2Fwww.suplementopernambuco.com.br%2Fcapa%2F2858-nosferatu%2C-100-anos-onde-se-v%25C3%25AA-dia%2C-veja-se-noite.html&locale=pt_BR&sdk=joey&skin=light&width=760

Leia Também: