Pagu, a indômita

De todos os modernistas, Patrícia Galvão é sem dúvida uma das personagens mais atuais. Conheça a trajetória desta escritora, militante, jornalista, atriz e diretora de teatro, reconhecida pela ousadia feminista e revolucionária

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Por Walnice Nogueira Galvão* no A Terra é Redonda

Quem ouve a bela e animada canção que Rita Lee e Zélia Duncan dedicaram a Pagu fica cogitando quem seria essa pessoa – rainha dos palanques e paladina das mulheres que gastam as mãos lavando roupa – a merecer tamanha homenagem.

É que um bom tempo se passou antes que Pagu (Patrícia Galvão, 1910-1962) começasse a ser retirada do ostracismo em que mergulhou durante décadas. A renovação do interesse por esta grande libertária data de poucos anos, quando começaram a ser publicados vários de seus inéditos. Vieram à luz as suas memórias incompletas; o álbum de 1929; os croquis; os contos policiais estampados em 1944 na revista Detetive, dirigida por Nelson Rodrigues; e a edição fac-similar de O homem do povo, jornal que produziu junto com Oswald de Andrade.

Uma tardia e crescente popularidade acarretou estudos críticos, reedições, fundação de centros culturais e de pesquisa, filmes de ficção, documentários, espetáculos teatrais, programas de televisão, nomes de revistas e de escolas, canções, enredos de desfile de carnaval. E também, uma exposição mais do que completa no Museu Lasar Segall.

Um levantamento de seus muitos pseudônimos inclui, afora Pagu, Mara Lobo, Pat, Pt, Ariel, Patsy, Gim, Solange Sohl, Peste. Entre outras instâncias, a Universidade Estadual de Campinas abriu um centro de pesquisa sobre gênero que leva seu nome; e edita a revista Cadernos Pagu.

Textos seus figuram numa antologia do marxismo na América Latina, ao lado de Mariátegui, Luiz Carlos Prestes, Fidel Castro, Che Guevara, Marighella e o subcomandante Marcos do Exército Zapatista. E é verbete, entre outros ícones das lutas sociais, como Caio Prado Jr. e João Pedro Stédile, num Diccionario de la Izquierda Latinoamericana (Buenos Aires, Planeta, 2010).

Seus dois filhos contribuíram para o resgate, editando textos, publicando inéditos, instalando um site. Um deles, Geraldo Galvão Ferraz, em parceria com Lucia M. Teixeira Furlani, uma entusiasta de Pagu, com tese de doutoramento e livro sobre ela, organizou o site http://www.pagu.com.br. O outro, Rudá de Andrade, dirigiu um filme, o documentário Pagu – livre na imaginação, no espaço e no tempo (2001).

Paulista do interior, Pagu foi criada na capital. Em 1929, formou-se pela Escola Normal da Praça da República, diploma que habilitava ao ensino de crianças, no primário. Fenômeno então recente no panorama brasileiro, a “normalista” abria a perspectiva da emancipação feminina através do trabalho. As moças acorreram em peso, ganhando aura de costumes menos engessados e maneiras não tão espartilhadas. A proibição estatutária de casar antes da obtenção do diploma acirrava as fantasias e inspirava a música popular. Seu uniforme azul-marinho e branco alegrava a paisagem urbana do centro. As obras dos modernistas, sobretudo os de São Paulo, estão cheias de alusões a elas.

Pagu foi apresentada por Raul Bopp a Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, figuras de proa do Modernismo e seu casal mais ilustre. Pagu abala o cenáculo modernista com sua formosura juvenil, charme e comportamento inconvencional. A exuberância da cabeleira, a boca polpuda, os olhos derramados – do célebre poema que lhe dedicou Raul Bopp, de que vai aqui uma amostra – comprováveis em fotos e desenhos, tornaram-se sua marca registrada:

“Pagu tem uns olhos moles
Uns olhos de fazer doer (…)
Passa e me puxa com os olhos
Provocantissimamente
Mexe-mexe bamboleia
pra mexer com toda a gente”

Em 1929, Pagu e Oswald de Andrade passam a viver juntos. Dessa união, com cinco anos de duração, resultaria um filho, Rudá de Andrade. Pagu participaria intensamente da fase antropofágica do Modernismo e forneceria dois desenhos à Revista de Antropofagia.

A crise econômica de 1929 abre passo a uma reconfiguração de forças, com radicalização dos intelectuais, à direita e à esquerda. Encerra-se a década de eclosão e fastígio do Modernismo, com sua feliz fusão de vanguardistas com mecenas cafeicultores. Nesse processo, Oswald e Patrícia filiam-se ao Partido Comunista em 1930 e tornam-se ativistas da revolução.

No mesmo ano, Pagu faz uma rápida viagem a Buenos Aires, no intuito de procurar Luiz Carlos Prestes, que ali vivia em exílio; mas só o encontraria mais tarde em Montevidéu. No navio, travou amizade com Zorrilla de San Martin. Fez contatos na área literária com o cenáculo da revista Sur: Jorge Luis Borges, Victoria Ocampo, Eduardo Mallea.

O casal funda em 1931 o tabloide O homem do povo, que durou apenas oito números. Hostilizado pelos estudantes da vizinha Faculdade de Direito, que invadiram a redação e tentaram empastelá-lo, acabou proibido por ordem policial. Pagu escrevia a coluna “A mulher do povo”, de tom panfletário, em que fustigava a burguesia e as instituições, reservando virulência maior para as grã-finas e outras mulheres ociosas. Criou uma história em quadrinhos cuja protagonista era uma garota revolucionária chamada Kabeluda.

Sua primeira prisão se deu em Santos – maior porto do Brasil e escoadouro de sua riqueza principal de então, o café – em 1931, quando, trabalhando como operária, participou de uma greve de estivadores.

Em 1933 publica Parque industrialromance proletário, sob o pseudônimo de Mara Lobo. Exemplo da estética modernista, o texto é disposto em blocos de escrita, com flashes e flagrantes de extremada síntese, linguagem quase telegráfica e de impacto, utilização entremeada do coloquial. Seu cenário é o Brás, em São Paulo, bairro operário e reduto da imigração italiana. Pagu aproveita a experiência de sua própria proletarização: na literatura brasileira nada há de similar em seu ativismo feminista e comunista. O entrecho cuida de trabalhadoras pobres, que se deixam seduzir pela sereia dos don-juans ricos, circulando por ali em seus enormes carros de luxo, e que acabarão degradadas em prostitutas.

Logo encetaria seu grande périplo (1933-1934), que se tornaria lendário na tradição oral, até que fossem publicadas suas memórias (parciais) em 2005. Visitaria Estados Unidos, Japão, China, de onde teria trazido as primeiras sementes de soja, Manchúria e Rússia. Depois iria para a Europa, de onde seria repatriada. No itinerário, contatos com Freud, o último imperador chinês Pu Yi, os surrealistas franceses.

Novamente presa na repressão que se seguiu à Intentona Comunista de 1935, ao ser libertada cinco anos depois estava exaurida e pesava 44 quilos. Rompe com o Partido. Desse mesmo ano data sua união com Geraldo Ferraz, escritor e jornalista, com quem viveria até o fim de seus dias. Da união nasceria outro filho, Geraldo Galvão Ferraz, em 1941.

Mais um livro, A famosa revista, escrito a quatro mãos com Geraldo Ferraz, seria publicado em 1945. Já mais distante da estética modernista, abandona o fragmento em prol do discurso contínuo, mantendo todavia uma linguagem inovadora e incisiva, demolidora de lugares-comuns. Sátira ao Partido Comunista, denuncia seus vícios, como o autoritarismo, a burocracia, e mais o pretexto da clandestinidade que acoberta personalismo, desonestidade e manipulação alheia.

Retoma em 1942, para não mais abandoná-lo, o jornalismo, seu ganha-pão e canal de expressão. Começa a trabalhar na agência de notícias France-Presse em 1945, ali permanecendo por um decênio, e entra para o corpo de redação da Vanguarda socialista, fundada por Mário Pedrosa, que congregaria a nata da intelectualidade de esquerda anti-stalinista.

Pagu transfere-se com seus ideais utópicos para o pequeno Partido Socialista, pelo qual foi candidata a deputada estadual em 1950. Na campanha, publica o panfleto Verdade e liberdade, expondo os motivos que a levaram a romper com o Partido Comunista, já criticado em craveira ficcional em A famosa revista.

A partir daí escreveria em vários jornais da grande imprensa e acabaria por fixar residência em Santos, onde viveu até a morte. Acompanha a cena cultural, frequentando exposições, teatros, concertos, lendo livros novos e velhos, água para o moinho de seus escritos. Produziria crônicas, poemas, crítica literária, traduções de fragmentos, comentários de artes plásticas e de teatro, artigos de política nacional e internacional. Permaneceria inconformista e fiel às vanguardas, exigente, sarcástica, adepta de fórmulas fulminantes.

Como se não bastasse, sempre insubmissa na defesa dos avanços modernistas e contestatária na denúncia dos retrocessos, fossem estéticos, políticos ou comportamentais. Um exemplário de autores e obras abordados revela preferência por poetas e dramaturgos – mas invariavelmente pouco convencionais: Arrabal, Ionesco, Ubu Rei de Alfred Jarry, Brecht, Lolita de Nabokov, de quem faz a defesa, Becket, Valéry, André Breton, Philippe Soupault, Octavio Paz, St. John Perse, Dylan Thomas, Artaud, Dürrenmatt, Ghelderöde, Ibsen, Fernando Pessoa, a Ópera de Pequim, a estreia brasileira de A sagração da primavera, de Stravinski. Escreve sobre música de vanguarda nacional e estrangeira. Amplia a gama de assuntos ao passar a registrar notas sobre televisão. Funda a Associação de Jornalistas Profissionais de Santos.

Seu apego ao teatro, que daria a tônica nesses anos, eclodiria em 1952, quando frequenta a Escola de Arte Dramática de São Paulo, na qual apresenta tradução e estudo de A cantora careca, de Ionesco. Batalhadora sem esmorecimento, assume a coordenação do Teatro Universitário Santista (1956) e a presidência da União dos Teatros Amadores da cidade (1961). A partir de 1957 mantém a coluna “Palcos e atores”, em A Tribuna, jornal local. Combativa, sua coluna seria uma trincheira na luta sem descanso pela dramaturgia experimental e pela liberdade de criação. Dirige Fando e Lis, de Arrabal, que recebeu vários prêmios. Mais tarde, encenaria também A filha de Rapaccini, de Octavio Paz.

Após seu falecimento em 1962, a cidade onde se fixou e tanto labutou na última fase de vida fez-lhe uma justa homenagem, ao consagrar e batizar a Casa de Cultura Patrícia Galvão, da prefeitura de Santos.

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*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de A donzela-guerreira: um estudo de gênero (Senac).

Publicado originalmente no livro Lendo e relendo (Senac/Ouro sobre azul).

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