Por que rejeitar as patentes de software

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Professor da UnB explica: elas contrariam posição do Brasil nos fóruns internacionais e lógica de construção do conhecimento — mas são defendidas por transnacionais e pelo INPI, um órgão que jamais se abriu ao debate com sociedade

Por Patricia Cornils, na ARede

No dia 16 de março, o Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI) – órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) responsável por emitir patentes no Brasil – lançou sua primeira consulta pública sobre patentes de software. O instituto vai receber, até 16 de maio, opiniões sobre “patentes envolvendo invenções implementadas por programas de computador”. A novidade causou estranheza, pois, pela legislação brasileira, softwares não podem ser objeto de patente. Os programas de computador, de acordo com a Lei de Propriedade Industrial (Lei 9279/96) e com a Lei do Software (Lei 9609/98), devem ser protegidos por direito autoral – não por patentes. Mobilizados, os ciberativistas reagiram prontamente lançando a campanha “Patentes de Software, Não!”.

Por que não? O professor Pedro Rezende, do departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), explica, nesta entrevista. Ele entende que as patentes de software são uma ameaça à inovação, à liberdade do conhecimento. Recorrer a patentes para proteger software, acredita, é “um objetivo da indústria dominante, para garantir seus lucros e dificultar a entrada de novos competidores no mercado”.

Para fundamentar seu ponto de vista, Rezende faz uma reflexão sobre o conceito de propriedade intelectual, que é “uma proteção concedida pelo Estado para exploração econômica de uma obra”. As patentes e os direitos autorais, diz, são as principais maneiras de proteção da propriedade intelectual. As invenções  são protegidas por patentes. Já as obras artísticas, literárias, científicas – e o software – são criações no mundo simbólico, intelectual. Não se incluem no mundo das patentes.

Por que o software é objeto de propriedade intelectual e não de patente?

Pedro Rezende – Para começar, propriedade intelectual é um termo que não faz o menor sentido porque é formado por duas palavras antagônicas. A propriedade é um conceito jurídico que tem três elementos: a posse, o usufruto e o gozo exclusivo do titular da propriedade. Então, para o Direito, a vida, o corpo, a casa, tudo isso é propriedade que um indivíduo pode ter. A expansão da ideia de propriedade começou com a questão da terra. Na Idade Média, na Inglaterra, os camponeses usavam a terra em comum como pastagem para rebanhos. Até que alguém resolveu fazer uma conta e concluiu que não era econômico manter a terra como um bem comum.

Quando os portugueses chegaram no Brasil, a terra era um bem comum para os diversos povos nativos. Eles não conheciam as cercas. Aí ficou fácil, para os portugueses, explicar aos indígenas o que era propriedade: bastou colocar uma cerca. “Aqui dentro é a minha posse, lá fora é a sua. Aqui eu faço o que quiser e deixo entrar quem eu quiser. Deixo usufruir quem eu quiser e passo em herança para quem eu quiser.

E por que o senhor diz que, no âmbito intelectual, o termo propriedade não faz sentido?

Rezende – Porque uma propriedade só existe quando o Direito cria mecanismos de controle social para garantir ao proprietário a exclusividade de posse e usufruto. E, ao contrário, o intelecto, por natureza, é compartilhado, não é de posse exclusiva, implica o usufruto do outro. Assim, a expressão “propriedade intelectual” é um contrassenso. Não dá para exercer o controle exclusivo de algo que só tem valor e só existe quando é compartilhado. Por isso prefiro falar, no caso do software e de outras criações do espírito, obras cuja utilidade esteja ligada ao intelecto, em “propriedade imaterial”. É mais claro que se trata de uma coisa vaga e fica difícil botar a cerca. Se a propriedade intelectual for absoluta – como querem os homens de patente de software e os estúdios de Hollywood, no que se refere ao direito autoral – o conhecimento comum, o bem comum no mundo dos símbolos, aquilo que faz parte da base cultural de todos e não é propriedade de ninguém – deixa de circular. Acaba o exercício da criatividade.

De que modo são feitas as concessões de patentes de software?

Rezende – De uma maneira maluca, totalmente irracional. A patente deveria proteger um invento para o inventor, com o direito de exploração exclusiva. Em troca, ele explica claramente como o invento funciona, para que a sociedade possa usufruir do invento, sem custo adicional, quando a patente expirar. Mas na área de software a descrição do invento propriamente dito é completamente hermética ou inexistente. O que você vê não é a descrição de uma ideia, mas de como detectar se uma ideia está sendo usada, como pegar quem estaria infringindo a patente. Os únicos que entendem as patentes de software são os advogados especializados em patentes de software. O custo de litigar uma patente de software nos Estados Unidos é, em média, de US$ 1 milhão. E as grandes empresas de software do planeta têm carteiras com milhares de patentes, com as quais podem extorquir qualquer empresa iniciante. Uma pequena empresa não pode colocar qualquer produto em circulação se tiver apenas uma patente da invenção. Porque o software só funciona em um ecossistema de outros softwares.

A possibilidade de alguém escrever um software que não esteja usando uma patente de outro software é zero. A Microsoft diz que 235 patentes foram violadas no desenvolvimento do kernel Linux, mas não diz quais são nem como são violadas. Aí é chantagem. As patentes de software funcionam como instrumento de chantagem das empresas grandes, que têm uma enorme carteira de patentes. Chantageiam as empresas emergentes, com a ameaça de processo por usarem ideias alheias em suas novas invenções. Por que? Porque novas criações podem romper o modelo de negócio de quem está ganhando muito dinheiro.

Como a lei brasileira trata esse assunto?

Rezende – A Lei de Propriedade Industrial (Lei 9279/96) explicita a patenteabilidade de ideias implementadas por computador. No artigo 10, inciso V, afirma que não se consideram invenção nem modelo de utilidade os programas de computador em si. Na lei anterior não havia sequer esse “em si”. O software era excluído da proteção patentária, e ponto. Mas mesmo quando a lei dizia “software, ponto”, o Inpi já tinha concedido patentes de software a grandes entidades internacionais com interesse em registrar patentes de software no Brasil. Na consulta pública, o Inpi afirma que um “conjunto de instruções em uma linguagem, código-fonte ou estrutura de código-fonte, mesmo que criativas, não são consideradas invenções, ainda que proporcionem efeitos técnicos”. E que “uma solução técnica, seja através de processo ou produto associado ao processo, é passível de proteção por patente de invenção, desde que estes não se refiram ao programa de computador em si.”

Dá para explicar melhor o que é um programa de computador “em si”?

Rezende – Pois é. Não sei. No meu entendimento, um software só existe, no sentido de que só tem utilidade, com um hardware embaixo, outros softwares ao lado e dados em cima. Nenhum software opera sozinho, hoje, a não ser os que são parte do hardware, que não são nem chamados de software, mas de firmware.

O software geralmente é produzido em uma linguagem diferente do ambiente onde vai ser executado. Justamente para ser versátil e implementado em outros equipamentos e artefatos. Assim, qualquer software é, ao mesmo tempo, “em si” e “fora de si”. “Em si” na sua expressão como um invento lógico e “fora de si” na sua aplicabilidade. A questão é complexa, pois o software fica entre um invento e uma criação intelectual. É uma obra autoral que cumpre o papel de um artefato, de um dispositivo eletrônico. Vai transformar um dispositivo eletrônico em uma máquina de processar símbolos. O software tem um pé em cada um dos conceitos. Mas não transforma nada material, transforma símbolos. O que esses símbolos representam e como são usados para controlar processos materiais são as “aplicações” do software e não o software propriamente dito.

Por que o senhor acredita que a patente representa uma ameaça ao software livre?

Rezende – A pior coisa que pode acontecer ao software livre é um regime de patenteabilidade servir como regime de proteção ao software. Hoje, a patente de software não funciona como instrumento para proteger a invenção. Funciona como instrumento para permitir a uma grande indústria chantagear uma pequena, que não tem fôlego para pagar o custo de tirar a limpo se uma patente incide ou não sobre certo software. E o software livre vive do micro e do pequeno desenvolvimento, do desenvolvimento colaborativo. As patentes de software ainda não destruíram esse ecossistema de software livre por uma razão muito simples. Porque o custo de litigar é alto. Então, as grandes empresas detentoras de patentes não vão para cima dos pequenos desenvolvedores que contribuem para o kernel do Linux, da Fundação Mozilla e do Open Office, pois não têm o que extorquir de fundações que não visam lucro. Se o custo de litigar cair para  próximo de zero – isso é o que o Sopa e o ACTA tentam fazer, ao dar à polícia alfandegária o poder de interferir na transmissão de bens, bloquear backbones para impedir que um servidor que está distribuindo software continue distribuindo, por uma suposta violação de propriedade intelectual – aí o termo propriedade intelectual ficará perigosíssimo.

Se você põe em uma mesma sacola o direito autoral e a patente, para efeito de uma legislação que vai coibir as violações, uma norma que define quem vai punir, de que maneira, com base em quê… isso poderia estrangular o fluxo de dados e informação tanto no desenvolvimento quanto na distribuição de software já desenvolvido no regime livre. Se bastar a suspeita – porque o que é caro é a certeza da violação – para o Estado intervir no fluxo, o efeito da chantagem com a patente se multiplica enormemente.

Na sua opinião, o que o INPI pretende com essa consulta pública?

Rezende – Acredito que a ideia é legitimar uma situação de fato, existente na norma que define os critérios de patenteabilidade usados pelo instituto. O INPI sofre pressão dos grandes escritórios de advocacia e das grandes indústrias. As patentes são uma fábrica de dinheiro para advogados. Uma vez concedida, a patente se torna mercadoria precificada. Uma patente que sai do Inpi pode ser vendida no outro dia. Quem concede uma patente sabe quanto vale pelo que está descrito, pela amplidão do que está descrito. Ao mesmo tempo, o INPI está vulnerável porque o Brasil, do ponto de vista diplomático, tem abraçado, em todos os fronts, a causa libertária, a antiradicalização na área de TI.

Isso está explicitamente verbalizado nos e-mails secretos da negociação do ACTA que vazaram do Wikileaks. O Brasil precisava ser neutralizado no ACTA e os que estavam negociando o ACTA precisavam de um emergente com o peso do Brasil. E o Brasil sempre soube disso. Sempre teve uma posição cumulativa e intelectualmente competente nos fóruns dos quais participou. Colocou na mesa da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) a agenda do desenvolvimento para descarrilar esse processo de radicalização normativa dentro do órgão da ONU encarregado de harmonizar a legislação de propriedade intelectual. Por isso tiveram que recorrer ao ACTA, pegar a bola e jogar em outro campinho, fora das instituições multilaterais. É possível que o INPI esteja preocupado com seu isolamento, contrário à forma como o Brasil se expressa internacionalmente nessa área.

Mas, ainda que a norma seja aprovada, a lei diz que software não pode ser patenteado.

Rezende – Se a consulta pública legitimar essa norma, talvez essa legitimação seja considerada violação à Lei da Propriedade Industrial, que está acima da norma. Entre os examinadores de patentes, tem gente que vive esse absurdo lá dentro e quer mobilizar a sociedade contra o atual regime de patenteabilidade. Agora, como é uma consulta para fins internos, o Inpi pode ou não ouvir a sociedade. É preciso criar uma pressão externa sobre o instituto, para que abandone essa política de radicalização normativa.

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