Mulheres na comédia: Dá pra rir do patriarcado?

Elas usam o deboche-crítico contra hetérotops e redpills. Escancaram violências. O meme vira estratégia de comunicação. É “rir para não adoecer”, diz uma delas. Buscam, assim, um diálogo mais lúdico que, às vezes, escapa de alguns feminismos…

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Por Ester Pinheiro, na Revista AzMina

Nos palcos e nas telas dos celulares, mulheres na comédia criticam masculinidades tóxicas, papéis de gênero e machismos naturalizados. Elas usam do sarcasmo e deboche para criticar “hetérotops”, redpillse violências diversas. Fazem críticas contundentes ao patriarcado e aproximam as pautas de gênero à população com humor e simplicidade. 

O “humor combativo” pode não agradar a todos, e a atriz e comediante Nathalia Cruz alerta que, por isso, as reações acontecem. Ela comenta que há um pequeno movimento, principalmente entre homens, querendo cercear a liberdade delas em transitar pelos temas que querem. “Se a mulher quiser falar de sexo, ela pode, e tem dias que eu quero falar de pum e rir dessa bobeira.” 

Muitas comediantes se aproximaram do humor ainda meninas, quando eram as “engraçadas da família”, na escola e com os amigos. Mas, para algumas, a comédia já ocupava um lugar político, como é o caso de Nathalia. O humor foi uma arma de defesa na integração social por ela ser uma menina negra de classe média no meio de muitos brancos. “Ser engraçada era um jeito de me sentir aceita.” 

E a cena só cresce. Nathalia Cruz aponta para si e ri ironicamente das “desgraças” que a cercam, como o racismo e a incoerência humana. A comediante Babu Carreira conta de sua vivência e de questões coletivas que a atravessam enquanto “mulher cis branca gorda.” Eliziane Berberian debocha do que lhe traz indignação e do sistema de forma geral.  Gessica Ferreira reage a vídeos de redpills, criticando “papéis de gênero” nos relacionamentos. Já Maíra Azevedo, “mulher preta, mãe e baiana”, diz não ter alternativa a não ser rir “para não adoecer”.

O humor também é, afinal, político. Na América Latina, há décadas ele é uma ferramenta do feminismo. No México, por exemplo, Las Reinas Chulas Cabaret e Derechos Humanos desde 1998 usam do humor para trazer pautas ligadas ao ativismo feminista. 

Luz Aranda, diretora, e Ana Laura Ramírez Ramos, coordenadora do projeto, comentam que no país a atuação com o humor se faz por várias vias (teatro cabaré, stand-up, vídeos, etc.), mas que as abordagens aos vários feminismos sempre foram de um modo sério, rígido, pouco lúdico. “Se pensa que os temas que discutimos são impossíveis de provocar risos ou onde não podemos agir porque somos as oprimidas.” Las Reinas faziam mais sátira política e somente se posicionaram como feministas depois da compreensão da luta, ao ver as possibilidades de rir de si mesmas. “Isso nos permitiu encontrar, mais do que uma arma, um belo caminho para fazer do mundo um cabaré: humor.”

Para Lígia Menossi, docente de Letras da Universidade Federal de São Carlos e pesquisadora de discursos humorísticos, a comédia, e os memes em especial, podem desconstruir e ressignificar estereótipos do lugar da mulher na sociedade. “É uma via privilegiada poder falar de temas que não são comuns nos discursos formal e diário.”

A pesquisadora também é embaixadora do Parent in Science (um grupo de cientistas, mães e pais que levantam a questão da parentalidade dentro do universo da academia e da ciência). Ela diz que o uso de memes na comunicação a favor da legalização do aborto, por exemplo, consegue comunicar com clareza a mobilização do movimento feminista. “[Eles] dão conta de mostrar que o aborto deve ser discutido no campo da política pública e da saúde.” 

A campanha que debate sobre o aborto no Brasil Nem Presa Nem Morta usa memes como uma estratégia de comunicação, fazendo uma ponte da pauta do aborto com a população de uma forma mais direta. “Acreditamos ser uma maneira potente de abrir diálogos e de despertar interesse”, comenta Laura Molinari, uma das fundadoras da ação coletiva. Segundo ela, o meme gera provocação e reflexão de maneira lúdica sem ser agressivo ou taxativo. 

Elas abriram caminhos 

No Brasil, o estilo de comédia stand-up se popularizou principalmente depois dos anos 2000, e se estabeleceu com figuras masculinas, que, muitas vezes, representavam personagens femininos. “Hoje, muitas mulheres têm tomado esse protagonismo como profissionais do humor que servem de referência para outras”, comenta Juliana Tavares, produtora cultural de Flutuantes em Fortaleza (CE), onde fomenta e produz trabalhos de realizadoras mulheres.

Uma figura revolucionária que abriu portas para outras mulheres no humor brasileiro foi Dercy Gonçalves. Ela era irreverente e ajudou a desconstruir a visão do feminino estereotipado. Sendo genuína e falando palavrões, Dercy, assim como Suely Franco Mendes e muitas outras, iniciaram um novo cenário das mulheres na comédia, sejam elas atrizes, standupers, produtoras de conteúdo e/ou palhaças. 

Quem também deu um pontapé e “chutou a porta” para mulheres ousarem no humor foi Inês Brasil com seus áudios icônicos. “Ela provocou em mim [o sentimento de] ‘vai ser quem você quer ser’, eu, que sou uma mulher de Ariquemes, no interior de Rondônia, de uma estrutura extremamente religiosa”, diz a médica, professora de geografia e humorista nas redes sociais, Eliziane Berberian. 

“Eu lembro muito de ver a Samantha Schmütz na televisão e isso mexeu muito comigo, pensei ‘olha só, dá para viver disso [do humor]’”, fala a comediante Nathalia Cruz.

Confira aqui a presença feminina da comédia

Hoje, por mais que se fale de “comédia feminina”, não é possível agrupar comediantes mulheres em um grupo homogêneo. Elas são diversas e se expressam a partir de marcadores diferentes. Para a atriz e diretora de teatro Catharina Conte, essa pluralidade – pardas, negras, jovens, velhas, com deficiência -, falando de vários temas, é um manifesto. “As piadas de todas juntas reúnem quase um manual feminista, a gente consegue ver as necessidades das mulheres nesses standups e apresentações”, destaca Catharina.

Apesar de diversas, o objetivo é comum: elas  acreditam que os machismos podem ser desconstruídos na arte e na sociedade. “É tanto fazer graça, quanto aproximar as pessoas às causas e à força social. Afinal, quem não gosta de rir?”, questiona Juliana, produtora cultural.

“Toda a vez que recebo um depoimento de uma mulher que saiu de um momento muito difícil, um relacionamento tóxico, e, por causa do meu trabalho, começou a se conhecer melhor e levar as coisas com mais leveza, eu vejo isso como uma conquista e vitória feminista. ”

Driblando estereótipos, no deboche

Por muito tempo, o humor reforçou estigmas sobre como as mulheres se comportam na sociedade. “Vejo uns caras fazendo imitações de mulheres, mas por que o estereótipo da feminilidade é tão engraçado?”, questiona Juliana. Homens criam figuras como a Raimundinha do Ceará, com seios e maquiagem exagerada, e fazem piadas supondo como mulheres agiriam em alguma situação, usando camisetas na cabeça para emular cabelos compridos. 

Mulheres no humor também imitam homens, mas tendem a ridicularizar as violências e os machismos que sofrem. “Elas vão para o estereótipo para criticar, enquanto homens tendem a imitar para reproduzir a estigmatização das mulheres”, avalia Juliana. 

O lugar das mulheres nos roteiros de humor também era sempre os mesmos: a “loira burra’”, a “pobre barraqueira”, a “gorda/feia”, a “jovem burra do interior”, a mulher “frágil”, a mãe “controladora” e a “bonita padrão”, sexualizada em programas televisivos como Pânico na TV e Casseta e Planeta. Personagens geralmente criadas por homens para elas representarem. 

Para a comediante, atriz e diretora Maria Paula, a representação simbólica nas telas e nos palcos, nos anos 90, era fora de contexto, porque sempre existiram figuras femininas “muito incríveis no Brasil”. Quando ela fazia parte do elenco do Casseta e Planeta, era a única mulher em uma equipe de 7 homens. 

No começo da sua participação, Maria Paula não fazia nenhum dos personagens, inclusive os femininos eram interpretados por homens. “Fui mostrando que eu estava pronta para assumir o protagonismo, até que chegou um momento que eu fazia os personagens e um quadro ao vivo.” 

A comediante conquistou espaço, que foi significativo. Mas, muitas das cenas que fazia no programa ainda espalhavam preconceitos, como, por exemplo, da mulher“sex symbol”. “Fazia o papel da ‘gostosa’, mas consegui ampliar para a mulher intelectual, a política e a mãe, essa que também é uma profissional reconhecida no mercado.”

Observando a nova geração de mulheres na comédia, Maria Paula percebe o humor como uma ferramenta sofisticada e sutil para criar uma civilização mais crítica através do constrangimento. “Faz com que o outro, que está perpetuando agressões e violência, fique em um papel ridículo e lamentável. Isso é muito poderoso!” 

Incels e redpills,como lidar?

Violência, ameaças de morte, assédio, falta de oportunidade, descredibilização, boicote, deboche e perseguição fazem parte da realidade de muitas mulheres na comédia, desde as conhecidas e “hypadas” até as mais novas no setor. Em 8 de março deste ano (2024), os humoristas de stand-up Cassius Ogro e Abner invadiram um programa especial que contava com a participação de seis mulheres humoristas. Eles foram expulsos do show organizado pelo comediante Tiago Santinelli, no clube Barbixas, em São Paulo, capital. 

“Mesmo com a tentativa dos dois patetas crias do [Danilo] Gentili de invadirem nosso show, em comemoração ao dia da mulher, para filmar e fazer meme para página de incel e redpill, todas fizeram o show”, escreveu Santinelli no Instagram. 

Nas redes sociais, Cassius e Abner criaram categorias de “troféu” para as comediantes mais “assediáveis na comédia”, e, para comediantes homens, o de “melhor agressor”. Os discursos machistas para naturalizar a violência e o assédio são comuns.

“Tinha que ser mulher”

Catharina Conte indica que a violência sofrida pelas mulheres comediantes é perigosa e misógina. “Isso bate num lugar de ‘como ousa ela desfrutar, gozar, tirar sarro de si e do outro? Quem ela pensa que é?’”. Ela ainda destaca que o repúdio ao Tiago Santinelli, que critica pautas conservadoras, é diferente do que é sofrido pelas mulheres. 

“Recebo muitos comentários do tipo ‘mulher não sabe fazer standup’, ‘tinha que ser mulher’ e para os homens humoristas a crítica é só que a piada foi ruim”, compartilha a comediante Gessica Ferreira. Existe até uma página do Instagram que se declara misógina e pede pix para financiar e incentivar discursos de ódio contra as comediantes. 

Os menterrupting (homens que interrompem falas femininas) foram barrados naquele dia e evento do Santinelli, mas essa “estratégia” é constante. “Eles também constroem um discurso de poder, mas a gente constrói a nossa resistência”, afirma a pesquisadora Lígia Menossi. 

Para ela, o humor é uma via de mão dupla, comediantes compartilham pensamentos de incels e redpills (movimentos de homens que propagam uma “masculinidade dominante” e misógina), trazendo à tona a necessária discussão sobre os limites da comédia ao reforçar racismo, transfobia, capacitismo, gordofobia e machismo. Mas, o que é importante é como combater esse tipo de discurso conservador, “é elucidar as pessoas sobre o feminismo e o quanto isso é significativo para caminhar enquanto sociedade,” complementa. 

Nas redes sociais, algumas comediantes são cobradas por fazerem piadas com os discursos redpills e incels. Segundo as críticas, elas estariam “dando palco ao ódio”. Mas elas veem isso como o humor combativo que faz oposição às ideias misóginas. “Até quando a gente vai ‘apanhar’ calada?”, questiona Babu. Inclusive, o movimento masculinista, segundo a comediante, não é novo – os discursos ganham novos termos e formatos, mas expõem velhas questões. 

Nathalia Cruz defende que a comédia seja usada para mudar paradigmas. Se toda piada “bate em alguém”, aponta ela,“é mais inteligente que o saco de pancada da piada não seja a pessoa que apanha realmente todo dia.” Nesse sentido, o verdadeiro humor seria “aquele que dá um soco no fígado de quem oprime”.

Nem tudo são risos… 

Raramente é simples ou fácil ser mulher na comédia. Dani Calabresa e Monica Iozzi foram vítimas de assédio sexual, assim como a comediante e roteirista Giovana Fagundes no início da carreira. Na sua conta pessoal do Instagram, ela desabafa sobre as dificuldades de ser mulher na comédia. 

“Quando você é um homem, você tem o privilégio de ser mediano e ser chamado de genial, e quando você é mulher na comédia você pode entregar o trabalho com o maior nível de excelência técnica possível, mas vai ser alvo de ataque misógino dizendo que mulher não tem graça. A vida é muito boa, né, gente?”. 

Giovana Fagundes, comediante 

A descredibilização é uma constante para elas. “A gente ganha muito menos, faz muito mais”, pontua Nathalia Cruz, sugerindo que existe uma tendência das pessoas de não as levarem a sério.  Maíra Azevedo concorda:  “As pessoas duvidam da nossa capacidade de fazer rir, somos mais julgadas e temos espaço reduzido”.

Ser boa comediante é um trabalho que demanda tempo e dedicação para todes, homens e mulheres. “Tem estudos, técnicas e testes para fazer humor, mas tem horas que você se diverte tanto que se pergunta, eu tô ganhando com isso?” comenta Nathalia, que logo já emenda a resposta: “sim, precisamos falar de dinheiro”. 

Seja com memes, vídeos, stand up, nas telas ou nos palcos, mulheres têm denunciado desigualdades, preconceitos e agendas antidireitos por todo o Brasil através do humor. Um monte de mulheres espalhando risos e liberdade pode incomodar muita gente.

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