Por uma psicanálise excêntrica 

Seria possível uma filosofia “vulvocêntrica”? Pensadora provoca: entender falo e vulva como lócus de disputa pelo poder é repetir um falocentrismo. Mas e se incluirmos na experiência aquilo que nos escapa e extrapola a ideia de domínio?

Ilustração de Charles Eisen para o conto “O diabo de Papefiguière”, de Jean de La Fontaine. Na história, a mulher afugenta o diabo mostrando sua vulva
 

Esta é uma entrevista Vera Iaconelli, que integra o Dossiê Onde está a vulva?, da edição 303 da revista Cult, parceira editorial de Outras Palavras. Iaconelli é psicanalista, com doutorado em Psicologia pela USP. Também é autora de livros como Mal-estar na maternidade e Criar filhos no século XXI, além de organizadora da Coleção Parentalidade & Psicanálise.

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Pensando no tema do dossiê desta edição, o que significa a vulva para a psicanálise?
A primeira associação que faço com essa palavra, raramente utilizada pela psicanálise, é de um campo de batalha. Diferentemente do pênis, cujas intumescência e detumescência são facilmente perceptíveis e no qual o orgasmo é explícito, a vulva se furta ao olhar. É ali que se trava a batalha sobre a função e o sentido do clitóris e da vagina, zona de disputa histórica. Em torno dela se dá a discussão sobre o que se passa no prazer feminino, se ele existe mesmo ou não, como ocorre, se no clitóris, na vagina. Freud precisava explicar como a sexualidade da mulher se associaria ao imperativo reprodutivo, uma vez que o prazer feminino não passava necessariamente pelo canal vaginal, por onde entra o espermatozoide. Já no homem, ejaculação e orgasmo são indissociáveis. A solução de Freud é a hipótese amplamente criticada do “orgasmo vaginal”, suposta evolução do orgasmo clitoriano do qual a mulher deveria abdicar. Tema debatido por Thomas Laqueur, que mostra como Freud usa a teoria do sexo único e a teoria dos dois sexos concomitantemente quando fala da sexualidade feminina.

Além disso, a vagina é o que eu chamo, em meu livro Manifesto antimaternalista (Zahar, 2023), de “pista falsa” sobre nossa origem. É dela que nossos corpos emergem e se supõe que, a partir dela, poderíamos responder sobre nossa origem. Mas a reprodução de corpos não coincide com a reprodução de sujeitos, e não há nada que a biologia possa responder sobre isso. Os corpos emergem da vulva, mas o sujeito, não, pois ele requer uma operação psíquica que se dá contingencialmente.

Se para Freud “a mulher é o continente negro da psicanálise” – alusão ao continente africano, que para ele e seus contemporâneos era o lugar do exotismo e do estranho –, diria que, dentro desse “continente”, há uma cidadela simbolicamente ainda mais inapreensível, no caso, a vulva.

O lugar do falo na sociedade é amplamente debatido. Como podemos localizar o lugar da vulva na sociedade?
Uma das questões desse debate é não confundir o falo com o pênis, o que faria da vulva seu oponente ou sua complementaridade. Não se trata de vulva, de clitóris, de vagina, mas de sujeitos se havendo com seus corpos e sua existência.

Uma sociedade falocêntrica se baseia na razão, na possibilidade de abarcar a experiência humana pela linguagem, na comparação entre seus elementos, na dominação dos mundos interno e externo. Essas características são comumente associadas ao universo masculino, confundido com o homem, porque são valores hegemonicamente ligados à virilidade. Lacan, ao usar o termo falo, busca desimaginarizar o pênis, mas não é inteiramente bem-sucedido, uma vez que essa questão sempre retorna. Então, não temos essa simetria, pois falo não é pênis. Inclusive, Christian Dunker, ao citar o livro Falo no jardim: Priapeia grega, priapeia latina, de João Angelo Oliva Neto, aponta a relação inextricável entre o falo e seu entorno numa clara referência à vulva. Acho que temos que fazer esses deslocamentos para nos esquivar de um uso equivocado da ideia de falo. Se tentarmos contrapor falo e vulva como dois lócus de poder a disputar primazia, estaremos totalmente dentro da lógica fálica.

Há, na tradição filosófica e psicanalítica, uma primazia fálica, com a ideia da inveja do pênis etc. Como a vulva pode contestar essa primazia?
A própria ideia de contestar uma primazia é fálica, porque o que está em jogo é a ideia de se medir com o outro, se comparar com o outro, dizer quem é maior, melhor, quem pode mais. Se há alguma graça no uso do termo vulva, é justamente sustentar a ausência, a falta, o negativo, tudo aquilo que não tem resposta, que não pode ser completado, tudo aquilo que escapa, e aproveitar para sair da lógica fálica. Mas, para isso, já temos a ideia de feminilização do final de uma análise. Eu questiono a continuidade de associar essas ideias com anatomia ou com algum gênero. Falo e vulva não se superam, pois aludem a coisas diferentes e irredutíveis uma à outra.

É possível pensar em uma psicanálise e uma filosofia “vulvocêntricas”?
Acho que precisamos começar a pensar em uma psicanálise excêntrica. O centro da psicanálise é a linguagem, que não dá conta de tudo, mas é o que temos. A partir daí, precisamos tomar muito cuidado para não trocar seis por meia dúzia. Preciado já nos ensinava, em Manifesto contrassexual, que o ânus é o que há de mais em comum na anatomia sexual humana e que o dildo é tão natural quanto o pênis. Daí que, com o perdão da palavra, por que não o “anuscentrismo”? Buraco que todos temos, sexual, totalmente dissociado da reprodução e tão alusivo à nossa origem, qual seja, o vazio. É uma pergunta legítima e uma piada também.

Poderíamos pensar contemporaneamente, na contramão da tradição psicanalítica, em um conceito como “inveja da vulva”?
Não sei se isso vai muito na contramão da tradição, pois psicanalistas contemporâneas a Freud, como Melanie Klein e Karen Horney, já denunciavam a inveja que o homem sentiria da capacidade de gestação da mulher, uma inveja do corpo feminino que produz outros seres vivos. Não acho que isso seja grande novidade, mas talvez não sejamos tão desacreditadas ao falar disso graças a essas pioneiras.

Como esses aspectos, como o questionamento do falocentrismo, têm aparecido e se expressado na cultura e nas diferentes manifestações artísticas da sociedade contemporânea?
O falocentrismo extrapola questões de gênero, porque fala do questionamento de uma certa lógica que faz supor que conseguiríamos abarcar toda a experiência humana pela linguagem, que ela daria conta, que é uma lógica da psicologia positiva, da fantasia do controle de si, do “nada é impossível”, uma lógica que nega o próprio sujeito do inconsciente, que nega o real. Isso está dado para homens e para mulheres, e não podemos confundir isso com diferenças anatômicas. Embora exista uma crítica a ser feita com a escolha do termo falo, que ainda remete ao pênis e a este corpo de pessoas nascidas com pênis, que nem podemos dizer se são homens, pois não se trata disso. O que está sendo posto aqui é a possibilidade de incluir na nossa experiência aquilo que escapa, que é o real, aquilo que extrapola o nosso domínio do simbólico e do imaginário, em uma leitura lacaniana. Acho que sim, estamos caminhando para uma crítica contundente disso, uma vez que o nosso mundo dá claras mostras de ruir sob esse imperativo. Quanto à arte, lembremos o quadro de Gustave Courbet A origem do mundo, que foi propriedade de Lacan e agora se encontra no Museu d’Orsay. Nele vemos uma vulva em primeiro plano que escandalizou gerações. Adoro as questões que ele levanta: origem dos corpos, do sujeito, do desejo, da cobiça masculina? De qual mundo se trata e o que o origina?

Se pensarmos na vulva para além da questão da mulher, como a psicanálise entende a relação entre a vulva e a transmasculinidade?
A mulher está para além da vulva, assim como o homem está para além do pênis, foi isso que as identidades trans ajudaram a romper, essa confusão entre os semblantes de mulher e de homem e a anatomia. Essa disjunção interessa, para que não tomemos a anatomia como algo que diz quem o sujeito é. Então, se alguém advoga pelo “vulvocentrismo”, a primeira questão que se impõe é como se livrar da alusão anatômica à vulva? Percebe como se incorre no mesmo erro que a psicanálise vem tentando desfazer há décadas no que tange ao pênis? Como movimento político, poderia soar interessante pelo suposto contraponto ao machismo, mas, além de reproduzir o que tenta eliminar, a psicanálise não comporta militância. Sua política é sua ética. Um pretenso “vulvocentrismo”, ao excluir as transmasculinidades, é, de saída, inaceitável.

Muito se debate sobre feminismo, sobre a invisibilidade do papel feminino, sobre a sobrecarga das mulheres em relação ao cuidado de tudo: casa, filhos, trabalho. Mas, ao olharmos com atenção, vemos repetições de padrão inclusive em gerações mais novas. As mulheres continuam com muito mais responsabilidade do que os homens. Há perspectiva de mudanças na nossa sociedade nesse sentido? É possível que as relações fiquem mais equilibradas?
A divisão sexual do trabalho, na qual a economia reprodutiva fica a encargo das mulheres e a economia produtiva dos homens, nunca funcionou. Com exceção de herdeiras e casadas ricas, as mulheres sempre trabalharam dentro e fora dos lares. Mas o trabalho considerado como tal é o masculino, inviabilizando a produção da mulher mesmo quando é remunerada. Até os anos 1960, o trabalho feminino fora do lar era um mal necessário, um constrangimento. Nesse período, as mulheres passaram a pleitear o direito a todos os postos de trabalho e o direito à carreira, ou seja, o fim da invisibilidade de sua contribuição produtiva. Agora, com 50% dos lares brasileiros chefiados por mulheres, resta saber quem se encarregará do trabalho reprodutivo. A exploração do proletário se ancora na exploração do trabalho invisível das mulheres. Então, mudar esse jogo de forças implica abalar a estrutura capitalista tal como a conhecemos. O equilíbrio nas relações de gênero não vai acontecer sem uma mudança radical no próprio capitalismo.

Parece que um abismo tem sido criado entre homens e mulheres cis-heterossexuais. As mulheres estão insatisfeitas e exaustas, enquanto os homens parecem perdidos em seus papéis e funções. Você concorda com isso? Como se daria uma aproximação possível entre os gêneros na contemporaneidade?
Concordo que vivemos um abismo nessas relações, nos papéis de homens e mulheres em uma sociedade em que as mulheres têm as mesmas exigências e incumbências que o homem, e ainda têm que assumir a economia de cuidados. Os homens, por sua vez, já não sabem mais como estar nas relações, porque supõem que, para estarem nelas, precisam perder tudo o que ganharam, tudo que é tido como deles por natureza. Vivemos essas disputas e não sabemos como conseguiremos conciliar isso. Mas não fecharia o espectro apenas em cis-heterossexuais, acho que as relações homoafetivas também envolvem lugares de poder, de disputa e, muitas vezes, uma busca por mimetizar comportamentos cis-heteronormativos. Não é porque a pessoa tem uma relação homoafetiva que ela está liberta desses modelos que são muito pregnantes, nos quais um é provedor de uma coisa, o outro de outra, ou se subentende que um cuida mais do que o outro. Essas questões também estão postas para os demais casais, e a clínica é cheia de queixas nesse sentido.

Você acredita na ideia de que o casamento continua uma instituição falida?
Não acredito no casamento na forma como ele foi pensado originalmente, como um contrato da família burguesa para o acúmulo de bens, incluindo a mulher que serve o homem, enquanto ele provê financeiramente e cujos filhos estão ali a prestar contas para as expectativas, as esperanças e os sonhos dos pais. Esse modelo se mostrou totalmente falido, mas acredito nas relações nas quais as pessoas se apoiam, se suportam, nos laços afetivos, duradouros ou não. Acho que podemos encontrar modelos melhores de relacionamento, pois é do humano a necessidade do laço social. Algumas pessoas vão chamar de casamento, outras não, mas, nos laços afetivos duradouros entre as pessoas, que inclusive podem vir a ter filhos e assumir essa responsabilidade de diferentes jeitos, eu continuo acreditando.

A não monogamia, por exemplo, chegou como uma possível salvação para os casamentos tradicionais e cis-heteronormativos. Muitos casais que abriram a relação depois se separaram, demonstrando que não há uma única solução que sirva a todos. O que você pensa disso? Relacionamento aberto pode ajudar casais a permanecerem juntos?
Quanto mais as pessoas tiverem a liberdade de assumir suas escolhas, de fazerem escolhas, mais chances de elas terem que lidar apenas com o “sofrimento ordinário”, como dizia Freud. Afinal, nossa liberdade é sempre muito restrita, pois o desejo que nos move não está acessível à consciência. Que possamos, perante a lei, os direitos, ter nossas escolhas respeitadas é fundamental, mas isso nunca vai resolver a dificuldade inerente às relações humanas: o fato de os amores, as paixões, esconderem conteúdos aos quais não temos acesso, os quais só descobrimos nos relacionando, de nos apaixonarmos por quem não devíamos, sendo rejeitados por quem achamos que não podemos viver sem, enfim. Os trisais, por exemplo, são uma opção, mas questões e problemas humanos continuarão existindo. Diria que podemos facilitar todo o entorno, mas não temos como resolver a questão do amor, o campo das relações, só porque mudamos as regras do jogo.

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