Marco temporal: o que Lula decidirá amanhã

Presidente deve vetar ou sancionar projeto que limita demarcação de terras indígenas e contém perigosos “jabutis”. Ruralistas ameaçam reagir em caso de veto. Indígenas não podem aceitar um possível “meio termo” – pois já sairiam perdendo

Foto: Lohana Chaves/Funai
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Por Marina Rossi e Daniel Haidar, na Repórter Brasil

Lideranças indígenas e ruralistas articulam os próximos passos da disputa envolvendo o chamado marco temporal. Temendo retrocessos em direitos básicos, lideranças dos povos originários devem recorrer novamente ao Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar a tese, enquanto líderes rurais falam até em “revolução”, caso a nova lei não entre em vigor.

O marco temporal determina que uma terra indígena só pode ser demarcada se ficar comprovado que a área era ocupada pela comunidade em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Por esse entendimento, os povos expulsos de suas comunidades antes dessa data perdem o direito à terra.

A tese foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão tomada no mês passado, dois anos após o início do julgamento. Em resposta, o Senado acelerou a avaliação de um antigo projeto de lei (PL) e aprovou o tema uma semana depois – a proposta tinha recebido aval da Câmara dos Deputados em maio, também após rápida tramitação. O texto agora aguarda a sanção ou veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — a decisão sai até sexta-feira (20).

Além de definir o marco temporal, o PL aprovado pelo Congresso determina uma série de outras medidas consideradas prejudiciais pelos povos tradicionais. Dentre elas, destacam-se a possibilidade de reverter terras indígenas já demarcadas e de fazer contato com povos isolados, o que gera preocupação entre defensores da causa indígena.

“Para nós só é concebível o veto total do projeto”, afirma Kleber Karipuna, coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Movimentos indígenas intensificaram nos últimos dias uma campanha nas redes sociais para derrubada integral do projeto pelo Executivo. “Vetar somente alguns pontos seria uma resposta muito negativa para nós em relação a tudo o que representa esse PL”, complementa Kleber.

Se Lula vetar o projeto de lei, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), também conhecida como bancada ruralista, diz estar articulada para reverter a decisão presidencial. “Em caso de veto, vai ter uma pressão muito grande em cima do presidente do Congresso [Rodrigo Pacheco] para ele pautar rápido a sessão de análise [do veto]”, diz a senadora Tereza Cristina (PP-MS), coordenadora da FPA. 

“Aprovamos o projeto com 43 votos no Senado e poderíamos ter mais de 50 se alguns senadores estivessem presentes. O texto passou com folga na Câmara e no Senado”, afirma Cristina, que foi ministra da Agricultura durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). A família da parlamentar tem interesse direto no assunto, pois disputa uma área com indígenas da etnia Terena, em Mato Grosso do Sul.

As lideranças indígenas também estão articulando apoio no Congresso para que os eventuais vetos de Lula não sejam derrubados. Caso o projeto seja realmente sancionado, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) será apresentada ao STF para enterrar de novo o marco temporal, explica Kleber Karipuna, da Apib.

A expectativa de analistas é de que Lula construa um caminho do meio, ou seja, sem veto nem sanção integral ao projeto. Para o cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria, não há “condições políticas” para o Planalto derrubar totalmente o texto, já que o Congresso pode reverter a decisão presidencial. 

Por outro lado, sancionar integralmente a medida bateria de frente com o Supremo, que já decidiu pela inconstitucionalidade do marco temporal. “Uma saída no meio do caminho talvez ajude a evitar novos embates no Judiciário”, diz Cortez. 

O analista aposta em um veto parcial até por razões econômicas, “já que uma parte da política externa do Brasil passa pela agenda ambiental”, diz. “Algum veto deve ocorrer. O governo deve fazer algum movimento em defesa da causa indígena, até porque se trata de uma política pública defendida por ele mesmo”, avalia Cortez. 

Indígenas acompanham sessão no STF que rejeitou a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas (Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)

O tema, no entanto, não encontra consenso nem mesmo dentro do PT. O ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, e o líder do Planalto no Senado, o senador Jaques Wagner (BA), defendem uma análise minuciosa do projeto. Para eles, só devem ser vetados os chamados “jabutis”. 

Já Alexandre Padilha, que comanda a Secretaria das Relações Institucionais, afirmou no início da semana que Lula “tem compromisso com o direito dos povos indígenas e compromisso com a Constituição”. A oposição ao marco temporal também é defendida pela presidenta da sigla, a deputada Gleisi Hoffmann (PR).

‘Prejuízos imensuráveis’

O texto aprovado pelo Senado não só condiciona a demarcação de terras indígenas à ocupação da área na data da promulgação da Constituição, como também traz uma série de “jabutis”, como são conhecidas as emendas incluídas no texto principal sem relação com a proposta inicial. 

Dentre elas, estão a permissão para cultivar alimentos transgênicos em terras indígenas, a flexibilização do contato com povos isolados e a construção de estradas, bases militares e redes de comunicação nos territórios sem consulta prévia às comunidades. Isso, inclusive,  viola convenções internacionais assinadas pelo Estado brasileiro que determinam a necessidade de ouvir as comunidades afetadas por esses projetos. 

O PL também proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas, permite a atuação da Polícia Federal e das Forças Armadas nos territórios e prevê que  ocupantes não indígenas possam ficar na terra até a conclusão do processo de demarcação, sem limite de uso. O PL diz ainda que, finalizada a demarcação, os não indígenas terão direito a  indenização por qualquer benfeitoria realizada no local. 

O projeto prevê também a participação dos municípios, estados e entidades da sociedade civil no processo de demarcação, que hoje é da alçada da Fundação Nacional do Índio (Funai). Por fim, permite a retomada das terras pela União, ou sua destinação à reforma agrária, no caso de alteração dos traços culturais da comunidade indígena ou de outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo, sem especificar quais são. 

O texto aprovado acendeu um alerta na comunidade internacional. No início do mês, a Organização das Nações Unidas (ONU) procurou o STF para manifestar preocupação. O representante regional para a América do Sul do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), Jan Jarab, afirmou, por meio de uma carta enviada ao presidente da suprema corte, ministro Luís Roberto Barroso, que a aprovação do marco temporal traria prejuízos “imensuráveis aos povos indígenas, mas não somente a eles”.

‘Revolução’

Presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja) em Minas Gerais, o produtor Fábio de Salles Meirelles Filho afirma que, caso o marco temporal seja derrubado, poderia ocorrer uma “revolução no país” e um “encarecimento no preço dos alimentos”. Ele não explicou, porém, como isso ocorreria.

“Se houver veto e não for derrubado, seria o pior cenário, porque vão causar uma revolução no país”, afirma.

O lobby da soja é uma das principais forças operando em Brasília a favor do marco temporal. A Repórter Brasil mostrou que entidades do setor atuam localmente para impedir que novas áreas sejam reconhecidas como indígenas, principalmente no Pará e em Mato Grosso.

Na linha de frente está a Aprosoja, entidade também associada à defesa da tentativa de golpe executada em Brasília em 8 de janeiro. Relatora da CPI que investiga a tentativa de golpe, a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) pediu o indiciamento de dois líderes regionais da associação e do presidente nacional da Aprosoja, Antônio Galvan, por supostamente ajudar no financiamento e na logística de atos golpistas desde 2019 e por contestar a lisura do processo eleitoral em uma entrevista no fim de 2022.

O relatório da CPMI, aprovado pelo Senado, pede que Galvan e os outros dois líderes da entidade sejam indiciados pela suposta prática dos crimes de associação criminosa, abolição violenta do Estado democrático de direito e golpe de Estado. Procurada, a advogada Paula Boaventura, que defende Galvan, afirmou que não ia se pronunciar. “Vamos aguardar”, afirmou.

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