“Nações indígenas”: conceitos em desencontro

Termo foi proposto na Constituinte contrapondo-se à noção de etnia. Criado por agentes externos, visava construir força política. Mas antropóloga alerta: semântica ocidental é capciosa, afinal, comunidades indígenas são vivências coletivas, não união indivisa

Foto: Guilherme Rangels
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Por Alcida Rita Ramos, na coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)

Por que a ideia de “nações indígenas” é um problema no Brasil? Por que ela ofende suscetibilidades estatistas? E se assim é, por que não utilizar apenas o conceito de “etnias” quando se quer referir aos povos indígenas que fazem parte do território nacional? Por que muitos defensores da causa indígena, incluindo a própria União das nações indígenas, insistem em aderir ao termo “nações indígenas”, mesmo enfrentando a fúria dos que defendem a soberania nacional contra o que seria o efeito dominó de separatismos indígenas? Porque, arrisco dizer, no cenário nacional, o conceito de etnia não tem nem força política, nem legitimidade ideológica, já que a sociedade brasileira se quer homogênea e integrada dentro de um Estado único que a represente. Etnias são tidas como excrescências sociais que a História impingiu à pátria e que devem ser aplainadas e diluídas na correnteza nacional. Contra essa pasteurização étnica, o movimento indigenista, que agrega tanto índios como brancos, necessita de uma bandeira à altura da luta para que o país admita o direito dos índios serem etnicamente diferentes dos demais brasileiros. Por ser um termo politicamente fraco, etnia foi relegado ao âmbito cultural e, como instrumento de luta política na arena do contato interétnico, foi adotada a expressão “nações indígenas”. Tomado de empréstimo ao mundo ocidental moderno, o termo “nação”, tanto a nível nacional quanto internacional, é o único instrumento semântico que transmite o reconhecimento de que é legítimo ser diferente e, embora o Ocidente propague a ideia de nação como algo unitário e até universal, espera-se que cada nação seja diferente das outras em seu conteúdo cultural; “fala-se de ‘caracteres nacionais’ e cada país alimenta estereótipos acerca dos países vizinhos”, diz Dumont (1985: 124). Por outro lado, as diferenças internas são, quando muito, toleradas, mas nunca exaltadas.

Desde que foi adotado no Brasil, o termo “nações indígenas” tem incomodado muita gente, principalmente, nas duas últimas décadas. Governantes tomam-no como expressão de perigo para a soberania nacional e protestam contra os defensores dos índios, que a usam como símbolo de luta pelos direitos humanos dos povos indígenas, enquanto coletividades, por paradoxal que isso pareça1. Os índios, pelo menos alguns, parecem apropriar-se dele mais ou menos como os indianistas do século passado (José de Alencar, por exemplo) se apossaram de símbolos indígenas para marcar a brasilidade face à Europa, ou seja, como emblema de alteridade legítima. Obviamente, no trânsito desse termo entre os seus diversos usuários, cria-se uma imensa área cinzenta de incomunicabilidade, seja ela proposital ou não.

Como o termo “nação” está ligado a uma vastíssima produção intelectual de onde surge um campo minado de concepções e contra-con­cepções, pretendo apenas congelar três momentos da via crucis desse conceito. Selecionei três autores como poderia ter selecionado quaisquer outros três ou mais. Para o meu objetivo, entretanto, bastam estes:

  • Marcel Mauss, para quem nação propriamente dita é o protótipo euro­peu ocidental do Estado-nação, ou seja, “uma sociedade material e moralmente integrada, com poder central estável, permanente, com fronteiras determinadas, com relativa unidade moral, mental e cultural de seus habitantes que, por conseguinte, acatam o Estado e suas leis” (Mauss, 1972: 286).
  • Anthony Smith que, ao estudar o fenômeno do nacionalismo, distingue três termos: tribo, etnia e nação; esta, por sua vez, não se confunde nem com o “Estado-nação”, nem com a “nação-Estado”. “Nações”, diz Smith (1983: 187), “são ‘etnias’ economicamente integradas em torno de um sistema de trabalho com complementaridade de papéis, cujos membros possuem igualdade de direitos enquanto cidadãos de uma comunidade política não mediada”.
  • Benedict Anderson, para quem a nação é uma comunidade política imaginada — e imaginada como sendo inerentemente limitada e soberana. É imaginada porque os mem­bros até das menores nações nunca chegam a se conhecer mutua­mente (…), mas em suas mentes está a imagem de sua comunhão. (…) [E] limitada porque até a maior delas (…) tem limites bem definidos, ainda que elásticos, para além dos quais estão outras nações. (…) É imaginada como soberana porque o conceito nasceu numa era em que o Iluminismo e a Revolução destruíam a legitimidade do reino dinástico hierárquico, ordenado pelo poder divino. (…) [É] imaginada como comunidade porque (…) a nação é sempre concebida como um profundo companheirismo horizontal (Anderson, 1991: 6-7).

O conceito de “nação” no campo minado do indigenismo

Na situação específica da formação histórica brasileira no que tange às populações indígenas, vemos uma certa coincidência entre as posturas dos agentes políticos do indigenismo e essas três posições acadêmicas: temos os estatistas maussianos acoplando nação e Estado na mágica frase “soberania nacional”; temos a Igreja propondo que nação não rima com Estado e, por conseguinte, nada existe contra defender a figura das “nações indígenas”; e temos as Organizações Não-Governamentais —ONGs — e as organizações indígenas, advogando a autodeterminação das etnias indígenas, mas uma autodeterminação realizada em termos culturais e não político-estatais. Se, a nível acadêmico, é magra a concordância de posições sobre o tema “nação”, no campo da política do indigenismo, o que predomina é uma verdadeira guerra de interpre­tações. Um exemplo retumbante dessa guerra ocorreu em 1987, durante a assembleia constituinte, quando o Conselho Indigenista Missionário, braço indigenista da Igreja Católica, insistiu na defesa da ex­pressão “nações indígenas” em sua proposta aos parlamentares. A reação do establishment econômico e militar foi rápida e fulminante. Assumindo o papel de veículo desse establishment, o jornal O Estado de S. Paulo manteve durante semanas uma violenta campanha de des­moralização da Igreja, que estaria advogando a criação de nações indí­genas como uma manobra para permitir a tomada da Amazônia por interesses estrangeiros. Por sua vez, num exercício de musculação ideo­lógica, a Igreja utilizou-se da fatídica expressão “nações indígenas” como se fosse um peio arremessado contra o Estado, rememorando as rixas agonísticas entre Estado e Igreja nos velhos tempos pré-modernos. Por pouco, esses franco-atiradores não atingiram os próprios índios que, joguetes de uma disputa da qual não participavam, tiveram ameaçada sua bem articulada campanha junto aos parlamentares constituintes. A celeuma provocada por essa peleja Igreja-Estado deixou como sequela o ódio de todos contra todos: Estado, Igreja e ONGs.

A vertente estatista do nacionalismo brasileiro, em seu repúdio à utilização do termo “nações indígenas”, torna-se mais explícita no discurso militar da segurança nacional, mas floresce nas falas de alguns profissionais liberais, como esta, por exemplo, do advogado Breno B. de Almeida Alves:

Se examinarmos os pressupostos do Estado moderno, temos, como sabido, de início, território; os índios já têm língua, têm costumes, e também têm uma forma de governo. Há então a questão da nação. Se juntarmos tudo isto, vamos dar a eles condição de praticamente ter um Estado dentro de outro Estado. Essa questão, a terminologia nação, se nos ativermos à termino­logia “nation”, é a mesma coisa que Estado. Teremos então aí um problema muito sério, inclusive essa expressão “nação indí­gena” começou a ser usada pelos parlamentares, que falavam nas reuniões das Comissões sobre “nação indígena;” alguns diplo­matas legais (…) falam de nação indígena. E isso é um perigo muito grande para nós, de praticamente os índios assumirem, tomarem conhecimento desse conceito, e pedirem a inde­pendência da “nação” deles com base nos pressupostos do Estado moderno (Cançado Trindade, org. 1992: 237).

No entanto, como diz Smith (1983: 178), “o objeto de devoção nacionalista é a ‘nação’ e não o Estado — mesmo quando ambos coincidem”. E a preocupação com a homogeneidade interna da “nação” que move os estatistas a combater em “nações indígenas”, antes que elas passem da concretude da palavra à virtualidade da ação.

Talvez o maior problema com o termo “nação” seja o excesso de significado que se acumulou sobre ele. Ricouer nos ajuda a compreender esse fenômeno:

É no nível do mecanismo da língua que o regime de polissemia regulada, que é o da linguagem ordinária, manifesta-se. Esse fenômeno da polissemia regulada ou limitada está na encruzilha­da de dois processos: o primeiro tem sua origem no signo como “intenção cumulativa”; entregue a si mesmo, é um processo de expansão, que vai até a sobrecarga de sentido (overload), como se vê em certas palavras que, à força de significar demais, nada mais significam, ou em certos símbolos tradicionais que assumi­ram tanto valores contraditórios quanto estes tendem a se neu­tralizar (…); um signo não possui, ou não é, uma significação fixa, mas um valor, em oposição aos outros valores; ele resulta da relação de uma identidade e de uma diferença (Ricouer, 1978: 60-61).

O excesso de significado que impregna o termo “nação” presta-se admiravelmente a manipulações ideológicas e serve de baluarte a posi­ções necessariamente conflituosas, como são, por exemplo, os interesses desenvolvimentistas e os “humanistas”, digamos assim. Para os desen­volvimentistas, “nação indígena” sinaliza o perigo de aliciamento dos índios contra o desenvolvimento e a soberania nacional. Para os huma­nistas, “nação” é o conceito canônico moderno da diferença legitimada, a partir do qual tanto se pode reivindicar direitos de cidadania, quanto direitos universais inerentes à humanidade como um todo. Em contra­posição a isso, análises recentes têm enfatizado os efeitos do desenrai­zamento que resulta de migrações a nível global sobre o destino da nação em sua concepção moderna. Homi Bhabha, por exemplo, afirma que a nação “preenche o vazio deixado pelo desenraizamento de comunidades e parentes, transformando essa perda na linguagem da metáfora” (1990: 291). E mais, “a nação deixa de ser o símbolo da modernidade para se tornar o sintoma de uma etnografia de ‘contemporâneo’ dentro da cultura” (1990: 298); ela “torna-se uma forma liminar de representação social, um espaço que é internamente marcado pela diferença cultural e por histórias heterogêneas de povos em disputa, autoridades antagônicas e culturais locais em tensão” (1990: 299; ênfase no original).

“Nação” é uma palavra que entrou de contrabando, clandestina, como diz Bourdieu (1989), na retórica indigenista brasileira. Nos Esta­dos Unidos o uso de “nações indígenas” serviu como uma espécie de senha para a tomada de territórios pelo nascente Estado norte-americano, através de declarações de guerra e assinatura de tratados, ainda que fantoches, como os donos desses territórios. Já no Brasil, o termo “nações indígenas” é recente e surgiu da consciência de que nunca se reconheceu nas culturas — etnias indígenas um mínimo de vulto que merecesse crédito político. Reduzindo os índios à condições de eternas crianças, o Estado brasileiro deu um golpe de mestre: conquistou-os, sem se dar ao trabalho de encenar o teatro de uma diplomacia burlesca ao estilo norte-americano2.

Expressão adventista na arena do contato interétnico, o termo “nação indígena” foi despido de suas complexidades e passou a ser usado como uma má tradução, rendição depauperada como as que costumam acom­panhar a transposição de certos conceitos em contextos de comunicabi­lidade precária. Vêm à mente as simplificações circulantes naquela zona de penumbra semântica que encobre grupos indígenas cujo o comando da língua portuguesa é limitado demais para expressar complexos domínios de sua vida, e onde elaborados rituais são rotulados de meras “brincadeiras” por eles mesmos, replicando de maneira desavisada o paternalismo regional. Afinal, “o etnocentrismo não é sempre traído pela pressa em se satisfazer com certas traduções ou com certos equivalentes domésticos?” (Derrida, 1976: 123).

Retirado seu contexto histórico e polissêmico, o termo “nação” indígena perde a conotação tanto de organização estatal quanto de nacionalismo, pois é um conceito de nação que não se refere nem a Estado-nação, nem a patriotismo, nem a orgulho nacional e nem a comunidades imaginadas e articuladas pela amálgama que Anderson chama de print capitalism — a difusão da imprensa e literatura massifi­cada — ou que Rowe e Schelling (1991) atribuem à cultura popular. Em outras palavras, é “nação” sem nação.

Pressentindo esse deslocamento de sentido que, de fato, desobriga os povos indígenas de um destino nacionalista, os guardiães do naciona­lismo brasileiro, ainda apegados à definição integracionista de “nação”, atribuem o perigo das nações indígenas, não diretamente aos índios, mas a fontes subversivas nacionais ou à cobiça estrangeira, forças essas revistas, aos olhos de certos estatistas, do poder e da capacidade de manipular a inocência moral e ingenuidade política dos indígenas.

Em busca do coletivo universal

Embora as ONGs e as associações indígenas não levantem a bandeira de um nacionalismo indígena, elas se aproximam, provavelmente sem saber, de alguns aspectos do conceito de comunidades imaginadas. Quando Benedict Anderson propõe que o nacionalismo resulta de um processo de autoconsciência de uma coletividade, ele enfatiza a neces­sidade de se reconhecer a dimensão imaginada do sentimento de perten­cer a uma nação. A imaginação de se fazer parte de uma mesma comunidade nacional é alimentada pelo que ele chama de print capita­lism, a disseminação vasta e acessível de informações reconhecidas por todos os leitores como um denominador comum, mesmo que esses leitores não se conheçam, uns aos outros. Apesar das ressalvas que podem ser feitas à capacidade de demonstração que Anderson faz de seu insight e às críticas de que foi alvo por privilegiar uma suposta hegemo­nia da escrita em detrimento da força das expressões orais da cultura popular (Rowe & Schelling, 1991), fica a convicção de que é por vias indiretas, insidiosas e capilares que se faz a ligadura dos componentes da comunidade, transformando-a em nação. Deduz-se daí que para haver nação e nacionalismo é preciso uma boa dose de anonimato e impessoa­lidade, ainda que ambos estejam informados por uma maneira comum e própria de se ser anônimo e impessoal. Em outras palavras, é preciso haver a figura ideológica do indivíduo: “a nação, no sentido preciso e moderno do termo, e o nacionalismo — distinto do simples patriotismo — estão historicamente vinculados ao individualismo como valor” (Dumont, 1985: 21).

Nesse sentido, as ditas “nações indígenas”, ou melhor dizendo, as sociedades indígenas, não podem ser confundidas com nações, uma vez que suas comunidades não são imaginadas, mas vividas, ou seja, a ligação entre seus membros nem é feita por meios indiretos como a imprensa ou a divulgação literária massificada, nem por uma ideologia individualista, mas através de contatos diretos, face a face e imbuídos do coletivo. Aqui, a impessoalidade e o anonimato não são nem cultivados, nem desejados e, em vez de print capitalism ou de “cultura popular”, teríamos uma espécie de oralidade consensual.

Ora, as entidades pró-índio parecem empenhadas em construir uma ponte improvável entre o individualismo ocidental, responsável pela formulação dos direitos universais do Homem, e o coletivismo étnico. Vislumbra-se uma tendência para a criação de um campo imaginado de destinos comuns. E o campo do movimento pan-indígena, especialmente através da promoção de encontros nacionais de representantes indígenas, da circulação de filmes e vídeos por aldeias e sociedades indígenas distantes entre si, e da crescente tendência para a formação de entidades indígenas no campo dos direitos humanos. Tanto a Igreja quanto as ONGs leigas têm sido agentes fundamentais na criação desse campo imaginado. Mas, nem por ser imaginado, esse campo da política do contato é uma nação em potencial, pois congrega uma tal diversidade de línguas, costumes e tradições, que não passa de uma colcha de retalhos costurada para convenientemente defender os índios do oponente co­mum que é a sociedade envolvente. Seria, parafraseando Lévi-Strauss (1962: 26), um tipo de bricolage político, uma fabricação estratégica de ação limitada a ganhos e perdas no campo das relações interétnicas.

Não deixa de ser oportuno olhar mais de perto o papel de agentes externos no surgimento de uma imaginação indígena coletiva onde antes ela não existia ou tinha outros contornos. Nesse contexto, a ideia de “nação” toma-se o modelo privilegiado para se delinear uma comuni­dade despertada politicamente. Tomo o caso Yanomami como uma lente de aumento para se ver melhor os detalhes, ainda que de maneira extremamente breve.

Alcida durante uma expedição médica para tratamento de malária entre os Sanumá, Walobiu, 1991. Por Karis Rodrigues

A nação que não é

São cerca de 22.000 Yanomami no Brasil e na Venezuela, massa humana suficientemente grande para inibir o conhecimento face a face de todos os seus membros. Embora o território inteiro dos Yanomami esteja ligado por uma vasta rede de trilhas e de cursos d’água que ligam virtualmente todas as comunidades entre si, essa ligação se dá como elos de uma cadeia, em que o último elo quase nada sabe sobre o primeiro. Não havendo formas de comunicação global, esta se dá de maneira setorizada, com círculos concêntricos de densidade variada de informa­ções, ou seja, até sair do conhecido para o imaginado. Mas quem está incluído nesse imaginado? São comunidades suficientemente distantes para que não tenham contato direto entre si e suficientemente próximas para que se saiba que elas existem. Com tais comunidades se mantém um sistema de relações simbólicas onde o imaginário é a força motriz por excelência. É o complexo do duplo animal, do alter ego, totemismo individual, como diria Durkheim (1989)3. Por meio dele, certas comu­nidades longe uma da outra estão inexplicavelmente ligadas, sem, no entanto, terem qualquer tipo de integração face a face. Ao nascer, cada pessoa Yanomami tem um equivalente ontológico na forma de um determinado animal que vive em território distante. Para cada conjunto de aldeias, existe outro conjunto geograficamente longínquo, onde estão os duplos animais de seus membros. Desse modo, cada comunidade tem o seu acervo de outras comunidades com as quais se imaginam relacio­nadas, mas nunca com a totalidade dos 22.000 Yanomami. Somos nós, de fora, que percebemos a matriz geral, onde esse padrão vai-se repetindo em blocos, recobrindo assim todo o território Yanomami. Somos também nós, agentes externos, que, ansiosos por lhes garantir direitos territoriais à altura de suas necessidades, fustigamos a imaginação Ya­nomami, insinuando-lhes uma unidade imaginada através da divulgação de fotos, de vídeo e de outros mecanismos destinados a criar uma consciência comum que os abranja a todos. Yanomami é um termo inventado por brancos para dar conta da totalidade que escapa aos próprios Yanomami que, por sua vez, se veem a si mesmos ou aos outros como Sanumá, Yanam, Waikã, Xamatari, Yanomam etc. Mais recentemente, a Casa do Índio, uma combinação de hospital e albergue em Boa Vista, tem sido um catalisador dessa consciência, ao reunir num mesmo espaço constrito homens e mulheres de vários subgrupos Yanomami, antes desconhecidos entre si. O resultado tem sido pouco alentador para quem almeja chegar a ver a grande “nação” Yanomami harmoniosa­mente consciente de sua união indivisa. A heterogênea clientela Yano­mami da Casa do Índio encontra-se, conhece-se, odeia-se, e continua cultivando a distância que sempre manteve entre si.

Mesmo assim, os Yanomami têm sido citados nominalmente pelos militares como um caso paradigmático do perigo que representa a criação de nações indígenas. Na proposta do Projeto Calha Norte, argumentam contra a criação da área indígena Yanomami porque, estando em ambos os lados da fronteira internacional, poderia levar manipuladores brancos a arrebanhar todos eles, do Brasil e da Venezuela, e criar o Estado Yanomami. Estatistas que são, os idealizadores desse projeto efetuam uma operação clássica no ramo do nacionalismo: onde há língua, usos e costumes comuns ligados a um território próprio, há necessariamente nação e onde há nação há Estado. Sua posição presume que “a população colonizada aspira ao autogoverno de uma nova comunidade política cujos limites foram estabelecidos pelo colonizador” (Smith, 1983: 176). Conscientemente ou não, essa reserva dos militares nada mais faz do que dar foro de concretude a uma ficção que não precisa ser concreta para se desmanchar no ar.

Se dermos o crédito que, ao menos em parte, merece a análise de Pierre Clastres (1978) sobre a recusa dos extintos Tupinambá em adotar a forma estatal de governo, podemos afirmar que os povos indígenas no Brasil, as ditas “nações indígenas” na acepção seja de quem for, por moto próprio, não têm qualquer perspectiva de se transformar em esta­dos, nem de promover um “nacionalismo indígena”. O fato de terem falhado as tentativas de criar uma organização indígena única, piramidal, a exemplo das federações do Equador ou do Peru, diz-nos alguma coisa muito próxima daquilo que Clastres caracterizou como o repúdio do Um em favor do Múltiplo.

Se o conceito de etnia não é politicamente potente e legítimo para alçar a causa indígena ao plano das grandes problemáticas nacionais, a exemplo, entre outros, dos sindicatos ou das organizações empresariais, o conceito de nação, por inapropriado, mais parece ir contra do que a favor dessa causa, ao menos em certas conjunturas cruciais para o país, como foi a assembleia constituinte de 1987-88. Por transbordar de significado, o conceito de nação acaba esvaziando-se, principalmente quando passa a ser uma metáfora política, como é o caso das “nações indígenas”, sempre que tomada ao pé da letra. Se a singeleza de etnia mantém a situação dos povos indígenas na obscuridade política, a complexidade de nação ameaça confundi-la como um ofuscante holo­fote que os expõe a todo tipo de oportunismo. Esse é o dilema que enreda os índios num labirinto semântico criado por um mundo pouco afeito a reconhecer e muito menos a respeitar nuances quando se trata de alteri­dade.


Notas

  1. Embora os direitos universais do Homem se refiram a direitos individuais, eles têm sido invocados na defesa dos povos indígenas contra os abusos dos Estados-nação a que estão sujeitos. Alcida Rita Ramos, “Indigenismo de resultados”, Revista Tempo Brasileiro, 100 (1990): 133-149. ↩︎
  2. Sob a tutela do Estado, os índios brasileiros são considerados pelo Código Civil como relativamente capazes para desempenhar certos atos da vida civil. Essa medida, que nasceu  como salvaguarda protetora das vidas e terras indígenas, ao longo deste século tem sido uma  trajetória eivada por excessos de paternalismo que ferem frontalmente o espírito da preocupação que a originou. ↩︎
  3. Sobre o fenômeno do duplo animal entre os Yanomami ver Albert, 1985 e Ramos, 1990b; Bruce Albert, Temps du sang, temps des cendres, Tese de doutorado (Nanterre: Université Paris, 1985); Alcida Rita Ramos, Memórias sanumá (São Paulo/Brasília: Marco Zero/Editora Universidade de Brasília, 1990b). ↩︎

Referências

ALBERT, Bruce. (1985). Temps du sang, temps des cendres. Tese de doutorado. Nanterre: Université Paris X.

ANDERSON, Benedict. (1991). Imagined Communities. Rev. ed. London: Verso.

BHABHA, Homi K. (1990). “Dissemination: Time, Narrative, and the Margins of the Modern Nation.” Nation and Narration. Ed. H. K. Bhabha. London: Routled­ge. 291-322.

BOURDIEU, Pierre. (1989). “Introdução a uma sociologia reflexiva”. O poder simbó­lico. Lisboa: DIFEL.

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