Reindustrialização: o que vamos priorizar?

Governo aposta no estímulo ao complexo da saúde, mas mantém a privatização da água, cuja má qualidade é vetor de doenças. Melhorar a vida dos mais pobres exigirá um modelo solidário, e não tropicalizar a técnica do Norte

Foto publicada no Pinterest por Jaqueline Sales
.

Este texto se destina a quem quer avaliar a pertinência das estratégias de reindustrialização solidária, que implica o apoio a arranjos econômicos produtivos autogeridos pela classe trabalhadora, e a da reindustrialização empresarial (que vem sendo denominada neoindustrialização), baseada no subsídio às empresas da classe proprietária.

Ele se socorre de dois eventos presentes na mídia que considerei adequados para caricaturar duas rotas de reindustrialização para enfrentar o mesmo desafio. O primeiro, a que dedico mais atenção, é a proposta governamental de apoio às empresas do “setor de insumos para a saúde”. O segundo, é a tentativa em curso de privatização da água.

Depois de mostrar como os dois enfoques de reindustrialização – empresarial e solidário – conduzem a ações distintas, se delineia, como “solucionática”, uma proposta de política convergente. Dessa forma, se argumenta que, mesmo assuntos sobre os quais existe significativo acordo político (e uma advocacy coalition bem estruturada), seu desdobramento para a política de reindustrialização pode incorporar o enfoque da tecnociência solidária.

A revitalização das empresas do “setor de insumos para a saúde”, que inaugura a reindustrialização empresarial, é considerada “uma das bandeiras mais ambiciosas do atual governo”. Ela “visa fazer do setor industrial um vetor de desenvolvimento econômico e integração social… e… reduzir a vulnerabilidade do SUS e ampliar o acesso à saúde”. [Leia aqui texto sobre o tema, publicado em Outras Palavras].

A política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) tem como espaço central de policy e de politics o Ministério da Saúde (embora envolva 11 ministérios) e tende a privilegiar (em parte por causa disso) a dimensão medicina curativa. Seu objetivo mais importante é a produção interna (substitutiva) dos insumos por ela requeridos.

Entre os motivos que o cercam de boas expectativas está sua aspiração de transversalizar ações de diferentes órgãos do “Estado Herdado” (por construção insulados) adotando a ideia-força, originada no meio militar, dos programas orientados por missão. E também, é claro, por ser esta missão – de melhorar a saúde dos mais pobres – prioritária.

Sua racionalidade contém elementos idiossincrático-formativos-profissionais dos nossos médicos (foco na dimensão curativa e não na preventiva), dos economistas (no crescimento apoiado na empresa e alavancado, no plano econômico-fiscal pela tradição keynesiana, e no econômico-produtivo, pelas de Schumpeter), dos administradores (na redução do déficit comercial), da elite científica (no que considera ser pesquisa “de ponta”).

Impregnados no senso comum, internalizados por políticos, instrumentalizados pelos empresários (que como em todo o mundo buscam subsídio), esses elementos amalgamam uma potente rede de policy advocacy. Ao ponto, inclusive, de influenciar o toma lá dá cá com o Centrão em torno do cargo da ministra Nísia.

O segundo evento de que lanço mão para ilustrar a esperada convergência dos dois enfoques de reindustrialização – empresarial e solidário – é a denúncia que vem sendo feita pelo movimento social acerca dos prejuízos (que, até a evidência internacional aponta ao revertê-la) de mais uma tentativa de privatização da água pela classe proprietária.

Por estar focada no subministro (ou fornecimento) de água potável e saneamento, a causa desse evento se situa num espaço de policy e de politics não relacionado ao Ministério da Saúde. Não obstante, e embora esse espaço abarque múltiplas instâncias de governo, organizações públicas e privadas, é plausível a ideia de que alterar a forma como ocorre esse subministro deva a ser considerado pela política do CEIS.

Assim para cumprir com o propósito deste texto de comparar os dois enfoques, de explicar a racionalidade da reindustrialização solidária, e de angariar partidários, passo a relacionar esses dois eventos.

Inicio recordando que: a) o déficit que temos no atendimento daquelas duas necessidades dos mais pobres é um vetor de exclusão social, de sofrimento e de deterioração de sua saúde há muito muito desafia a dimensão medicina preventiva; (b) as causas das doenças de veiculação hídrica são uma carga pesada e despropositada para o bom funcionamento da dimensão medicina curativa; (c) sua abordagem não se enquadra na arquitetura do “Estado Herdado” conformado pelos interesses da classe proprietária; (d) cabe aos dirigentes políticos preocupados com os mais pobres o ataque sistêmico a problemas “pouco estruturados”, como recomendava Carlos Matus, e a implementação das modificações incrementais que possibilitam o trânsito para o “Estado Necessário”.

Tomo para prosseguir o caso de uma doença genérica de veiculação hídrica. Seu tratamento costuma ser realizado em postos de saúde mediante procedimentos considerados pela taxonomia utilizada para elaboração da política de saúde no primeiro dos quatro níveis estabelecidos em função de sua complexidade ou densidade tecnológica. Diferentemente das de complexidade média, que envolvem especialidades médicas e exames realizados nas UPAS, das que precisam internação em hospitais, e das de alta complexidade (câncer, coração, doenças infecciosas, cérebro, traumatismos) que exigem hospitais especializados, essas doenças, como a própria taxonomia indica, não demandam de modo intensivo os bens e serviços produzidos pelas empresas do “setor de insumos para a saúde”.

Não obstante, com o intuito de exemplificar a convergência possível que interessa destacar, é importante levar em conta que doenças de veiculação hídrica são tipicamente prevalentes entre os mais pobres. O que, por si só, deve merecer sua atenção no âmbito de um programa como o CEIS, orientado pela missão de melhorar a saúde dos mais pobres.

Se se adicionar a esse critério de eticidade os outros três usuais – de eficiência, eficácia e efetividade -, e se se levar em conta análises de custo-beneficio e de custo de oportunidade para a elaboração da política pública, tenderá a aumentar a relevância do argumento que aqui se defende. De fato, essas doenças de veiculação hídrica correspondem a uma parcela significativa daquelas que representam 70 a 80% das que acometem as brasileiras e brasileiros.

Tendo em vista esses critérios e analises, e levando em conta esse último indicador, é possível me aproximar mais do objetivo deste texto.

Como se sabe, uma doença de veiculação hídrica, depois de instalada na pessoa, requer um tratamento de baixa densidade tecnológica, pouco intensivo em insumos importados, baixo custo, etc. Em função disso, ele não teria porque, segundo a racionalidade que se indicou acima, coerente com o enfoque da reindustrialização empresarial, ser um foco de preocupação do CEIS.

O que parece importante destacar é ao adotar o enfoque sistêmico da reindustrialização solidária, evitar o acometimento desta doença pela via do subministro de água potável e saneamento para os mais pobres demandaria (e mereceria) um significativo esforço governamental.

Para avaliá-lo, relembro características do arranjo de produção e distribuição inerente ao sistema sociotécnico que atende àquelas duas necessidades. Por ter sido constituído por um pervasivo saber tecnocientífico, e num ambiente tecnocrático igualmente contaminado pelos interesses e valores capitalistas hegemônicos, ele é pesado, caro, perdulário, heterogestionário, hierarquizado, centralizado e pouco flexível ou modularizável.

O que implica que seu rótulo, que propala suas características pretensamente neutras, apolíticas, derivadas de uma racionalidade instrumental “técnica” que conduziu, ao longo do tempo, à melhor e mais eficiente maneira de atender aquelas necessidades, não seja contestado. Por acatar os mitos transideológicos da neutralidade e do determinismo da tecnociência, e por não perceber que esse sistema sociotécnico integra e reforça o “Estado Herdado”, a esquerda não o tem questionado.

Antes de abordar os aspectos da política econômico-produtiva (conceito que prefiro ao de política industrial) e da política cognitiva (conceito com que tenho enfeixado a política de educação e de CTI) que me interessam, ressalto, como condição agravante, que a privatização da água pela classe proprietária se assenta ou só é possível devido às características desse sistema. E que, como consequência da expansão do ideário neoliberal no âmbito do Estado, é compreensível que para eficientização desse sistema, a posse e a gestão empresarial sejam vistas, pelos que aceitam aquela racionalidade e a inevitabilidade da Tecnociência Capitalista, como a solução.

Como se tem insistentemente salientado, o “foguete” da reindustrialização solidária supõe a expansão e adensamento das redes de economia solidária, as quais demandam uma “plataforma cognitiva de lançamento” – a Tecnociência Solidária – gerada mediante processos de adequação sociotécnica visando ao reprojetamento da Tecnociência Capitalista. E que, à semelhança do que ocorre em outas áreas, a possibilidade de sua alteração não é visualizada no ambiente Tecnociência Capitalista, ainda professorada entre nós, que alimenta aquela racionalidade (e seus elementos idiossincrático-formativos-profissionais) que orienta, entre muitas outras, nossa política de saúde.

A reindustrialização solidária associada ao subministro de água potável e saneamento para melhorar esse serviço à população, deve ser uma prioridade da política de saúde. Claro que não aquela estritamente enquadrada no Ministério de Saúde de acordo com uma construção de Estado politicamente favorável à classe proprietária, que limita seu significado.

O desafio é, então, conceber um sistema de subministro que, transversalizando o “Estado Herdado”, o tensione na direção do cumprimento da missão de melhorar a saúde dos mais pobres e do “Estado Necessário”. Ao adequá-lo sociotecnicamente para incorporar as redes de economia solidária que eles deverão cada vez mais integrar, se estará contribuindo para a satisfação de um quinto critério que um governo de esquerda deve contemplar para a elaboração da política pública, o de governabilidade que ele precisa para implementar seu projeto político.

Como em outras áreas, isso implicará assumir, uma reorientação radical, no sentido de ir até as raízes, do enfoque a ser utilizado para a elaboração da política pública em geral e, em particular, das estratégias combinadas de reindustrialização.

Compreensivelmente, para além dos obstáculos politico-ideológicos e cognitivos atinentes à economia solidária, os partidários da Tecnociência Solidária ressaltam que os processos contra-hegemônicos de reprojetamento e adequação sociotécnica a que se dedicam envolvem uma originalidade, complexidade e dificuldade muito maior do que aqueles, em geral já engenheirados no Norte e de simples “tropicalização”, demandados pela reindustrialização empresarial.

Para concluir, destaco que até mesmo a modelização da realidade a tratar requer a adoção de um outro marco analítico-conceitual (novas variáveis, relações de causa e efeito, fatos estilizados, condições de contorno, etc.). E, complementarmente, da aplicação de instrumentos metodológico-operacionais capazes de construir um futuro em que outros valores e interesses devem ser respeitados.

Para dar uma ideia da amplitude do giro conceitual necessário, aponto um exemplo: até mesmo aquela taxonomia das doenças teria que ser revisada. O que sugere que para que o CEIS possa contemplar, ao lado do componente de reindustrialização empresarial até agora privilegiado, um componente de reindustrialização solidária, é necessário seguir refletindo.

Novas propostas de reindustrialização cujo fim é a melhora da vida dos mais pobres, informadas pela urgente transversalização do “Estado Herdado” e pela ideia-força dos programas orientados por missão, estão sendo concebidas. Fazer com que, mesmo numa correlação de forças adversa, elas possam perseguir este fim desde o princípio e durante sua implementação, é o que busca a reindustrialização solidária.

Leia Também:

Um comentario para "Reindustrialização: o que vamos priorizar?"

  1. SANDRO BENEDITO SGUAREZI disse:

    Parabéns

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *