Mão na cabeça: a marca dos 225 milhões de enquadros

Em SP, secretaria de Segurança Pública registrou, em 17 anos, número de abordagens igual a toda a população do Brasil. Falta de critérios, meta de “produtividade” e viés racista tornam prática uma tentativa de controle social, avaliam pesquisadoras

Jovem é enquadrado em protesto contra Bolsonaro no centro de São Paulo em 30/10/2018 | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo
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Por Jeniffer Mendonça, na Ponte Jornalismo

Desde 2005, a Polícia Militar do Estado de São Paulo registrou mais de 225,3 milhões de abordagens. Se cada enquadro fosse correspondente a uma pessoa seria o equivalente a um pouco mais de toda a população brasileira revistada pelo menos uma vez, segundo a prévia do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que estimou 207,8 milhões de habitantes no país em 2022.

Os dados das revistas pessoais, como são chamados tecnicamente o que é conhecido popularmente por enquadro, dura ou baculejo, são divulgados nas estatísticas trimestrais da Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo. Apesar de a pasta não apresentar dados detalhados de cada revista pessoal que é anotada, pesquisas voltadas à temática das abordagens policiais identificam que existe uma cor e tipos de localidade que são alvos na maioria dos casos.

Não à toa que uma das declarações mais famosas sobre o enquadro partiu de um representante do Estado. Em 2017, o então comandante da Rota, uma das tropas mais letais da PM paulista, coronel Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araújo, declarou ao UOL que a abordagem da polícia na periferia tinha que ser diferente da adotada nos Jardins, bairro rico da cidade de São Paulo.

O advogado Alexandre José Marcondes, 45, sentiu na pele esse tratamento diferenciado ao ser enquadrado por um PM com arma em punho quando saiu de casa para ir à padaria no bairro do Alto da Lapa, na capital paulista, em outubro de 2022. “Você pode ser rico, você pode ser milionário, mas você nunca deixa de ser negro”, afirma. “Foi justamente por ser negro, andando num bairro de classe média alta num domingo, às 9h da manhã, que fez o policial pensar: ‘o que esse cara está fazendo aqui, numa rua pequena, estritamente residencial?’”, critica.

Marcondes disse que o policial justificou que achou suspeito ele usar uma máscara no rosto, dessas usadas para evitar o contágio de Covid-19, numa época em que não havia mais a obrigatoriedade e porque ele estaria andando próximo de um casal branco de idosos. O comportamento só mudou quando ele mostrou sua carteira da OAB. “Foi uma abordagem tão violenta que até meu irmão, que é policial militar, se assustou”, conta. “Essa é uma prática reiterada, que não deve ser normalizada, de que as pessoas negras, sobretudo os homens negros, são tratadas como marginais em potencial.”

Por que a polícia aborda

A abordagem, também chamada de busca pessoal, é respaldada pelo artigo 244 do Código de Processo Penal. O texto prevê não é necessário mandado judicial para o baculejo, desde que o enquadro aconteça “quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.

A fundada suspeita, contudo, por ausência de regulamentação na lei, é algo muito subjetivo. Um estudo publicado pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) apontou as seguintes justificativas dadas por policiais militares para realizar abordagens: local conhecido (28%), empreender fuga (22%), denúncia anônima (21%), conduta sugestiva (18%), nervosismo (17%), jogar algo no chão (8%) e conhecido da polícia (4%). Em 16%, não havia fundamentação fática. Foram 137 acórdãos (decisão de um grupo de magistrados) de apelação criminal de 2016 a 2019 analisados que apresentavam as motivações descritas.

A advogada Jéssica da Mata, autora do livro A Política do Enquadro, fruto do seu trabalho de pesquisa em quatro batalhões da PM paulista, explica que, durante a ditadura civil-militar (1964-1985), a abordagem estava intrinsecamente vinculada à prisão, servindo como mecanismo de “limpeza social” a fim de retirar as pessoas das ruas. Naquele tempo, também era institucionalizada a prisão por averiguação, que hoje é ilegal, que consiste em levar uma pessoa para a delegacia de forma arbitrária sem nenhuma motivação plausível.

No caso de São Paulo, com a transição para o período democrático, a eleição de Mário Covas (1995-2001) para o governo do estado carrega uma iniciativa de sistematização da segurança pública, que ia desde a publicação de estatísticas à criação dos procedimentos operacionais padrão (POP) da PM, em meio uma tentativa de reformular a imagem negativa que a polícia tinha nos anos 1990 devido a escândalos de violência como o caso Favela Naval, quando a TV Globo exibiu uma gravação em que aparecem policiais humilhando, extorquindo e agredindo moradores de uma comunidade de Diadema (Grande SP), em 1997. A Ouvidoria das Polícias também nasce nesse período e a de São Paulo é a primeira do país.

“Essa busca por mais enquadros vem por meio de várias medidas para padronizar a ação da polícia, não só de ações especiais, mas abordagens cotidianas que vão estar nos procedimentos operacionais padrão, num esforço de sistematização da atuação policial, que vão servir como um respaldo jurídico para o policial que aborda, fazendo isso como algo desejável e também estabelecendo metas”, explica a pesquisadora.

“Foi uma aposta governamental que começou em São Paulo e no Rio de Janeiro, depois em outras cidades, de aumento do policiamento ostensivo e como principal atividade da polícia para verificação de ocorrência”, complementa Amanda Pimentel, pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP).

A ideia, elas apontam, era para que a polícia demonstrasse uma atuação mais “técnica” atrelada à proatividade e produção resultados, já que, em tese, quanto mais abordagens, mais prisões poderiam ser geradas, além de criar na população uma sensação de segurança ao mostrar que a polícia está trabalhando.

Contudo, da Mata aponta que nem sempre essas metas sobre os enquadros eram/são documentadas, mas se tornam diretrizes do comando de cada batalhão. Além disso, poucas abordagens leva a uma prisão. “Em muitos lugares essas metas vão ser abstratas, no sentido de que ‘olha, a gente quer abordar mais. Isso é um indicativo de forma proativa e a gente tem que registrar isso’. Só a existência do registro, do número de abordagens ali no turno de serviço que o policial precisa preencher, já é um estímulo, o policial vai fazer a tarefa, mas só em alguns locais”, prossegue.

No entanto, ao mesmo tempo em que houve essa reformulação de atuação da PM, Jéssica da Mata sinaliza que várias brechas acabaram permanecendo, como, por exemplo, a falta de regulação do poder de polícia não só nesses procedimentos administrativos, mas na legislação como um todo. E nesse rol entra a “fundada suspeita”, já que não existe restrição para o policial abordar nenhuma pessoa.

Na sua pesquisa, a advogada identificou, por exemplo, que, em 2016, no 1º Batalhão da Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), na região de Santo Amaro, zona sul da capital paulista, rapazes negros de 15 a 19 anos foram oito vezes mais enquadrados em relação à população que circula na área e duas vezes mais enquadrados do que os homens brancos da mesma idade. Já no 13º BPM/M, localizado nos Campos Elíseos, no centro da cidade, os jovens negros da mesma idade foram abordados quatro vezes mais em relação a população que circula na área e seis vezes mais do que os jovens brancos.

Marina Dias, diretora-executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), enfatiza que a mentalidade do período ditatorial também resiste dentro da corporação e conduz as práticas atuais. “As abordagens policiais estão sendo realizadas como uma ferramenta de controle social de determinados corpos e de determinados territórios”, critica.

No ano passado, a entidade publicou um levantamento em que ouviu 1.018 pessoas entre maio e junho de 2021, no Rio de Janeiro (510) e em São Paulo (508), sobre abordagens policiais que já sofreram. Os registros indicaram que negros tinham quase cinco vezes mais chances de ser enquadrados do que brancos. Além disso, nas respostas, 46% das pessoas negras relataram que ouviram referências explícitas sobre sua cor durante as revistas enquanto, dentre as brancas, apenas 7% disseram que a cor foi mencionada. As negras também descreveram mais situações de violência durante as abordagens do que as brancas.

Amanda Pimentel, da FGV, relaciona o crescimento do número de abordagens no decorrer dos anos com a política de drogas. “O foco na abordagem policial, no maior número de policiamentos com viaturas, acelera um número de prisões em flagrante, sobretudo por porte e por tráfico de drogas, em especial por causa da lei de drogas que passou vigorar em 2006”, analisa.

Na época, a tentativa da legislação era separar o usuário do traficante, com a redução de penas para usuários. Porém, a população carcerária explodiu e, como mostrou reportagem da Agência Pública com base na análise de 7 mil sentenças de condenação por tráfico de drogas em 2017, negros são mais condenados e com menos quantidade de drogas do que brancos em São Paulo.

É importante repetir que nem toda a abordagem gera uma prisão em flagrante. Esse tipo de prisão pode acontecer independentemente de o policial militar mandar uma pessoa parar para ser revistada, já que, como o próprio nome indica, é o flagrante de um possível cometimento de crime. Por isso, os números de prisões em flagrante derivadas de enquadros podem ser ainda menores.

Com isso, se fôssemos fazer um exercício de considerar que todas as prisões em flagrante aconteceram a partir de enquadros, a proporção entre abordagens e flagrantes em 17 anos foi de, no máximo, 1% por ano — a cada 100 enquadros, uma prisão. Ou seja, aborda-se muito mais do que se prende. E, ainda assim, São Paulo detém a maior população carcerária no país. De acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária, em dezembro de 2022, 195.194 pessoas estavam privadas de liberdade.

Pimentel destaca que, se o número de abordagens é exponencialmente maior em relação às prisões em flagrante, a polícia não está agindo por critérios objetivos e claros de que a pessoa está cometendo um crime. “Isso revela que a abordagem fundamentada na ‘fundada suspeita’ é tão vazia, é tão subjetiva e muitas vezes ligada a certos preconceitos dos policiais que, quando ela acontece, em geral, não leva uma prisão em flagrante”, critica.

Marina Dias, do IDDD, enfatiza que prisões em flagrante geradas de abordagens subjetivas também podem ser contestadas, mas não é o que acontece na cadeia do sistema do justiça que começa com o policial na rua até o juiz. “Se as abordagens estão sendo usadas para controle de corpos e de territórios, então a busca pessoal não está sendo usada como instrumento de prova porque na legislação ela serve para isso”, explica.

“A busca pessoal não pode ser usada como argumento para combate ao crime ou prevenção ao crime, que são as justificativas que vêm sendo trazidas pelas políticas de segurança pública”, critica. “Então, quando você tem um judiciário flexibilizando o que seria a fundada suspeita, de alguma forma o judiciário está dando uma carta branca para que qualquer pessoa possa ser abordada por critérios subjetivos”.

Além disso, existe o direito de ir e vir. “O que a gente tem é uma uma policia extremamente violenta, que muitas vezes acaba realizando abordagens violentas e isso alimenta um ciclo de violência sem fim, traz uma série de marcas para as pessoas que são abordadas”, enfatiza Marina Dias. “A maioria das pessoas que não são abordadas não sabem como é viver com o medo de ser abordado a qualquer momento. O jovem negro tem medo de ser abordado, tem medo de sofrer uma prisão injusta, tem medo de sofrer uma violência e ser morto”.

Outro ponto que ela sinaliza é justamente o que foi descrito no início da reportagem: os dados de enquadros não detalham o perfil, o local nem as circunstâncias que fizeram o policial parar uma pessoa e revistá-la. “A gente não sabe as justificativas, então não tem um acesso transparente a essas informações e isso é fundamental, inclusive para propositura de políticas de segurança pública”.

Por outro lado, a pesquisadora Jéssica da Mata, autora de A Política do Enquadro, alerta que os dados de enquadros podem também estar inflacionados por essa questão de que a abordagem é uma tarefa protocolar do policial militar e é vista como meta de produtividade.

Ela caracteriza dois grupos políticos dentro da polícia como explicação para o grande número de abordagens: os civilistas e os militaristas. O primeiro, ela define, são de policiais que entendem que o enquadro é uma meta que vem dos anseios da população e que a corporação tem que mostrar serviço.

Já o segundo se preocupa com a função disciplinar do enquadro. “O enquadro para esse grupo serve para tirar bandido de circulação, para chamar a atenção, dar esporro no marginal, essa é a mentalidade de um militarista”, explica. “Para um civilista é só uma meta de produtividade com um possível êxito de um flagrante, em que a ‘bronca’ não é tão interessante”.

No entanto, a advogada frisa que ambos são corporativistas no sentido de serem contrários a uma regulamentação do enquadro. “Existe uma aliança entre o bloco militarista e o civilista de ‘a gente não vai regulamentar demais o poder de polícia, não vai controlar a discricionariedade policial, mas vai produzir resultados’”, pontua.

Para ela, a queda do índice de baculejos em São Paulo, que vem acontecendo desde 2019, pode estar relacionada a alguns fatores: a pandemia de Covid-19, que diminuiu a circulação de pessoas nas ruas e restringiu o contato físico; as câmeras nas fardas, que se tornou uma nova camada de controle e monitoramento da atividade policial; e o número do efetivo, já que há cerca de 80 mil policiais, o menor número desde 1996, e que não corresponderia ao crescimento da população.

Quando o Judiciário não flexibiliza a abordagem

“A fundada suspeita não está definida na legislação, mas é possível se definir através da jurisprudência”, aponta Jéssica da Mata.

Uma das principais decisões nessa seara foi de âmbito internacional. Em 2020, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou a Argentina a indenizar duas pessoas que passaram por abordagens policiais consideradas discriminatórias e que foram acusadas por tráfico de drogas nos anos 1990. Segundo a sentença, ambas as detenções foram realizadas sem ordem judicial e sem flagrante, o que indicou que nenhum dos casos se estabeleceu a maneira detalhada da abordagem, além de “quais os elementos objetivos que deram origem a um razoável grau de suspeição na prática do crime”. Em um dos casos, a justificativa dos policiais para enquadrar foi “estado de nervosismo” e “inconsistência” entre a roupa e o bairro em que o homem se encontrava. O do outro homem não foi detalhada a circunstância.

Já no Brasil, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem proferido decisões que têm impactado a jurisprudência do assunto. Em 2022, ao analisar uma prisão de um homem por tráfico de drogas que aconteceu na Bahia, o ministro e relator Rogerio Schietti Cruz afirmou que a busca pessoal não pode ser baseada nas impressões do policial sobre a aparência ou “atitude suspeita” de alguém. Ele argumentou que a suspeita do policial precisa ser justificada “pelos indícios e circunstâncias do caso concreto” de que a pessoa tenha drogas ou armas e não pode servir como desculpa para autorizar “buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo”.

Citando trechos de canções de O Rappa e Emicida e de declarações da atriz Taís Araújo e do advogado Silvio Almeida, hoje ministro dos Direitos Humanos, Schietti destacou a questão do racismo no seu voto, que foi acolhido pelos outros ministros da Sexta Turma do STJ ao conceder a liberdade para o homem.

“Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc.”, escreveu.

“Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos –– diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas — pode fragilizar e tornar írritos [irritados] os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade”, prosseguiu.

A Sexta Turma do STJ também proferiu outras decisões sobre os enquadros em 2022: de que a pessoa ter antecedente criminal, a chamada passagem, como única motivação não justifica a abordagem nem denúncia anônima, sem outros elementos de suspeita, serve como fundamento para revista pessoal e veicular.

Alexandre Marcondes, que foi abordado ao sair de casa para ir à padaria, indica que mesmo o conhecimento jurídico não blinda o racismo. “Eu recebi muitas mensagens de solidariedade, mas também tenho amigos advogados, e evidentemente 99% deles são brancos, que viraram para mim e disseram ‘mas Alexandre, se a polícia não agir assim você quer que eles ajam como?’ Não falei com pessoas leigas, eu falei com advogados”, afirma.

“Eu falei que eu não quero que a polícia me aborde sem nenhum tipo de justificativa, só por conta da cor da minha pele. E, se por um acaso abordar, o que insisto, não poderia, que tenha um mínimo de civilidade, e não caminhando na minha direção com uma arma apontada para o meu rosto.”

Marina Dias, do IDDD, pontua que a legislação também precisa ser regulamentada. A entidade, o Instituto Sou da Paz, Conectas Direitos Humanos, Instituto Igarapé e Fórum Brasileiro de Segurança Pública criaram uma minuta de projeto de lei (PL) que institui o auto de busca pessoal.

A proposta, de número 3060/2022, foi abraçada e apresentada na Câmara dos Deputados em dezembro de 2022 pelos parlamentares Talíria Petrone (PSOL-RJ), Benedita da Silva (PT-RJ), Luiza Erundina (PSOL-SP), Maria do Rosário (PT-RS) e Paulo Teixeira (PT-SP) e ainda precisa passar por comissões para ser avaliada.

O texto prevê que o policial faça uma descrição detalhada das características da pessoa abordada (cor, identidade de gênero, se gestante, se estrangeiro), o local onde ocorreu, as motivações que o levaram a revistá-la, a identificação dos policiais, e que a pessoa enquadrada tenha uma cópia do auto de busca. O projeto também estabelece que “em nenhuma hipótese, será considerada fundada a suspeita motivada por características pessoais, físicas, de pertença social ou étnico-racial, gênero, vestimenta, localização ou suposto estados de ânimo da pessoa”.

Contudo, ela entende que, se for aprovado, o auto de busca pessoal não vai cessar abordagens discriminatórias sozinho. “Uma coisa é fazer uma legislação cuidadosa, que coloque balizas para a atuação policial. Outra é que as instituições do sistema de justiça cumpram com a sua responsabilidade”, afirma Marina.

Para ela, o Ministério Público precisa exercer de forma efetiva o controle externo da polícia e o judiciário não flexibilizar a questão da ‘fundada suspeita’. “Quando o judiciário começar a exigir mais justificativas objetivas para a fundada suspeita, vai fazer com que a polícia tenha que se capacitar e mudar a sua atuação e o Executivo investir mais em uma política de segurança pública investigativa”, sugere.

“Isso também passa pela necessidade de uma maior diversidade nas instituições do sistema de Justiça, porque hoje a gente tem as instituições compostas majoritariamente por pessoas brancas da elite, e isso também tem um reflexo óbvio na seletividade do sistema de justiça”, destaca.

Jéssica da Mata concorda e também acrescenta outras sugestões. “A transformação efetiva vai vir de mais canais de participação política da sociedade civil na polícia”, aponta.

A advogada também entende que a extinção da Força Tática, uma das tropas da PM paulista, como uma das medidas importantes. “A Força Tática, por ser uma força especial, que tem um treinamento aprioristicamente voltado para o combate, é voltada para hipóteses de ‘alto risco’, como eles vão dizer. Na prática não é assim que funciona. Eles acabam atuando em qualquer flagrante e mesmo atuando proativamente em casos que eles suspeitam da pessoa e sempre patrulhando em locais pré-estipulados como ‘perigosos’: favelas e áreas periféricas”, explicou em entrevista à Ponte sobre seu livro.

“A estimação do que é um local perigoso muitas vezes se baseia por dados policiais enviesados, por dados policiais anteriores, que já se baseava na noção de perigo que historicamente se construiu em torno das áreas empobrecidas, e que também tem a ver com o fato de que a polícia visa o tráfico de drogas e os crimes patrimoniais com maior ênfase”, completa. “É uma força que, por uma série de motivos, atua de maneira mais arbitrária do que a média e isso produz mais violência.”

Ela também entende que uma PM eficiente é reativa e não proativa. “A polícia tem que investir na qualidade do atendimento: uma vez que será acionada, ela tem que chegar, agir e saber responder ao chamado de maneira rápida. Isso não significa acabar com as rondas, mas atuar com qualidade, respeito e civilidade e atender a pessoa que precisa. Não vir com a ideia de sair abordando todo mundo, impondo o medo, achando que a presença da polícia vai dissuadir as pessoas de cometer crimes”, afirma. “Fora o quanto de dinheiro público das pessoas se gasta para policial dar bote em adolescente na favela. Isso aumentou a segurança? Quem foi protegido ali?”, questiona.

Ainda em outubro de 2022, Alexandre Marcondes denunciou a abordagem que sofreu à Ouvidoria das Polícias que, por sua vez, encaminhou o caso à Corregedoria da PM. A OAB em São Paulo também fez ofícios à corporação e à Secretaria da Segurança Pública na época. Desde então, o advogado não recebeu nenhuma atualização do caso. A Ouvidoria confirmou à reportagem que não houve novidades.

“Quando eu expus o caso na imprensa, eu quis aproveitar o fato de eu ser advogado o que tem uma certa visibilidade e por conta de eu morar num bairro de classe média alta para tentar fazer um barulho para as pessoas entenderem que isso não é normal”, explica. “Mas eu não acredito que vai ter punição.”

O que diz a polícia

A reportagem questionou a Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Militar sobre os dados de enquadros, prisões em flagrante, critérios de abordagem e se existe alguma apuração na Corregedoria sobre a abordagem contra o advogado Alexandre Marcondes. Até a publicação, a Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu aos questionamentos.

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