No fluxo da “Craco”, na margem da cidade

Negro e corpo marcado pela violência policial. Este é Dentinho, artista e agente de redução de danos. Guarda seu último cachimbo, que virará arte. Aponta: redes e laços solidárias são uma forma de resistência numa região de medos e violações

Imagem: Carol Ito
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Esse é Cleiton Ferreira, “mais conhecido como Dentinho, não sei ainda porquê”. É assim que ele se apresenta em quase todos os lugares. No dia em que conversamos, estava com o cabelo trançado em vermelho, óculos que escondem uma agressão antiga, porém latente, de quando uma bomba da polícia o atingiu no rosto. Ele também trazia um terço enrolado na mão, como uma pulseira.

Sua fé e sua vivência enquanto morador da Cracolândia não são segredo para ninguém. Pelo contrário, talvez sua coragem de expor essas duas características o trouxe até aqui. Dentinho é agente de redução de danos no Centro de Convivência É de Lei, pesquisador e artista. Ele foi uma das pessoas atendidas pela política “De Braços Abertos” (DBA), do governo de Fernando Haddad (PT), que começou em 2014. O DBA propunha intervenções de saúde e assistência social para pessoas usuárias de drogas em vulnerabilidade, com foco na “moradia primeiro”, um modelo surgido nos EUA de atendimento a pessoas em situação de rua.

Foi no último hotel social do DBA que, durante a pandemia, Dentinho decidiu parar de usar crack. Há dois anos, tem guardado seu último cachimbo, o último isqueiro e o último cigarro, do qual usaria as cinzas para “forrar” o cachimbo que receberia a pedra. Ele contou que isso ainda vai virar arte.

Segundo ele, se, por um lado, fazer quarentena era impossível para quem estava no território da Cracolândia, por outro já se vivia em isolamento ali muito antes da covid-19 surgir. Morar no fluxo, onde morou por muitos anos antes de entrar no hotel social, é estar às margens, principalmente de direitos básicos. Ele sabe que seu corpo negro e pobre é marcado, e que isso é determinante para entender as violências que já sofreu no território: “o que faz a segurança é o contexto”, diz, “se estou mais arrumado ou com pessoas diferentes de mim, sou melhor tratado”.

Dentinho foi morar na Cracolândia entre 2014 e 2015. Nessa época, já tinha morado pelos arredores do Masp, na Avenida Paulista, e tinha também passado pela prisão, quando foi preso por roubar livros que vendia numa banquinha estendida no chão. O livro era seu objeto de manutenção de sobrevivência na rua.

Já na Cracolândia, Dentinho se deu conta de que para fazer parte do território era importante entender o sentido que “pertencer” e “ocupar” têm ali. A Cracolândia vai muito além de um espaço de uso aberto de drogas. Dentinho nos falou que “às vezes, o crack era a única forma de lidar com as dores físicas”. Um dia, machucado, não conseguiu atendimento médico, e algumas pessoas do território o ajudaram a fumar para aguentar a dor. Sem julgamento de valor, como enfrentou ao tentar acessar o serviço de saúde. O crack aparecia como o remédio possível naquele contexto.

Quando tentou recorrer à internação para lidar com o uso, entendeu que “essas internações são só maquiagem para limpar a cidade das pessoas. Não é me tirar do lugar que vai me impedir de usar”. Nessa passagem, para ele, só foi trocada a substância utilizada, contou. Os remédios fizeram tão mal a ponto de, após sair do período de internação, ter passado a fumar três vezes mais do que estava acostumado.

Sua estratégia passou a ser procurar lugares e pessoas que o entendiam. Essa rede estava presente entre as pessoas que usavam drogas no território e também em movimentos presentes ali, como o Teatro de Contêiner Mungunzá, Teatro Faroeste, os coletivos A Craco Resiste, Birico, Pagode na Lata, a organização Centro de Convivência É de Lei, além de alguns profissionais de serviços de saúde que atendiam a região, principalmente na época do DBA.

Foi com essa rede que entendeu o que era redução de danos (RD). Na RD, encontrou a arte, que o ajudou a elaborar sua relação com o crack, encontrou escuta e respeito de agentes de redução de danos, “tive direito à fala, mas também à escuta”. Para ele, quando teve a oportunidade de atuar como pesquisador da Unifesp em uma pesquisa sobre a pandemia de covid-19 e vulnerabilidades nos territórios, foi sua “porta de entrada na época do caos”, pois acreditaram nele e isso o organizou.

Dentinho passava pelo seu pior momento desde que chegou no território seis anos antes. Com a pandemia, as atividades coletivas do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) que frequentava ficaram suspensas. As doações de comida estavam mais difíceis de conseguir e o restaurante popular Bom Prato ficava longe. Os equipamentos do “fluxo” haviam sido fechados pelo poder público.

Tinha medo e não sabia muito bem o que era covid-19. Por ali, explica, a informação sobre o vírus era “sucateada”, não chegava. Por isso era comum ouvir e reproduzir frases como “tem tanta coisa no meu corpo que a covid não vai me pegar” ou “tô tão sujo que a covid não tem como entrar no meu corpo”.

Restou o crack. Assim, intensificou o uso, isolado no quarto do hotel social. Um dia, teve uma crise nervosa. Sabendo que já tinha problemas respiratórios desde criança, pensou que estava com covid. Os profissionais que trabalham no hotel chamaram a ambulância e ele foi encaminhado para o hospital. Lá, levou oito horas até ser atendido. Seus sintomas não eram de overdose, porque não era mesmo o caso, mas por conta das suas vestes, ele via as pessoas passando por ele e o ignorando.

Esse tratamento já era conhecido por Dentinho, o que só piorou seu estado. Horas depois, uma médica “enviada por Deus” resolveu atendê-lo. A médica contou a Dentinho que se ele não tivesse sido atendido logo poderia ter uma crise cardíaca.

Depois desse episódio, Dentinho optou pela abstinência como estratégia de redução de danos que fazia sentido para ele, que segue até hoje. “Hoje estou abstinente porque faz sentido pra mim, não porque eu não posso usar”, diz.

Para Dentinho, a redução de danos o ajudou a entender quem ele é nos seus usos e suas relações com diferentes substâncias, como o crack, que não fuma mais, e a cerveja, com a qual tem uma boa relação. Para isso, a RD veio em forma de arte, cuidado e em direitos.

Quando falamos na nossa conversa sobre as marcas deixadas pelas violações de direitos que já sofreu, como a que se esconde atrás dos seus óculos, Dentinho afirma categoricamente: “fiquei deficiente na Craco, mas não por causa do crack, por causa da violência policial”.

Depois da bomba que estourou em seu rosto e descolou sua retina, ficou um ano sem conseguir sair da Cracolândia, por medo. Na época, não quis denunciar a agressão, porque o policial que atirou a bomba trabalhava na mesma delegacia em que deveria fazer o boletim de ocorrência. “Eu só sobrevivi por causa das pessoas dali”.

Hoje, com o conhecimento que tem sobre seus direitos e com a rede de apoio cultivada nos últimos anos, faria diferente. Apesar disso, a coletividade é mais importante para Cleiton. Essa foi uma violência no meio de muitas outras sofridas por ele e por outras pessoas que vivem ao seu lado, e por isso para ele “enquanto houver guerra às drogas, eu não me sinto seguro. Cada violência contra os outros, é também contra mim”.

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