Machado de Assis e a falha de Frankfurt

Adorno e Horkheimer analisaram a falsidade do liberalismo, mas ignoraram o mundo colonizado, onde o escravismo escancara esta hipocrisia. Ao ler um grande romancista da periferia, Roberto Schwarz preenche uma lacuna da teoria crítica

Imagem: Danilo Zamboni
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Por Bruna Della Torre no Blog da Boitempo

Este texto é uma comunicação apresentada na conferência “Die Frankfurter Schule und die Romania” [A Escola de Frankfurt nos países de línguas românicas], organizada pelo Departamento de Estudos Românicos e pelo Centro de Estudos Apocalípticos e Pós-Apocalípticos da Universidade de Heidelberg em cooperação com o Instituto de Pesquisa Social (IfS) em Frankfurt.


A figura caricata do ocidentalizante, francófilo ou germanófilo, de nome frequentemente alegórico e ridículo, os ideólogos do progresso, do liberalismo, da razão, eram tudo forma de trazer à cena a modernização que acompanha o Capital. Estes homens esclarecidos mostram-se alternadamente lunáticos, ladrões, oportunistas, crudelíssimos, vaidosos, parasitas etc.”
Roberto Schwarz, “As ideias fora do lugar”

Nos 100 anos desde a criação do Instituto de Pesquisa Social, muito se discutiu sobre seu legado. As ideias revolucionárias de Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin e seus colegas viajaram para muitos continentes e aclimataram-se a vários contextos, produzindo uma teoria crítica que foi, em muitos aspectos, muito além de Frankfurt – esta cidade espectral, carregada de utopia, como a Amorbach de Adorno ou a Balbec de Proust, cujo espectro crítico  ainda assombra a teoria social. No entanto, nem tudo escrito fora do circuito oficial do Instituto foi reconhecido como parte de seu legado. Até mesmo algumas produções internas à própria instituição, como teorias feministas, estão para ser incluídas em sua história.

De fato, diferenças nacionais, geopolíticas e linguísticas contribuíram para a lacuna entre as teorias críticas de Frankfurt e as da América Latina. A tarefa atribuída a nós hoje, isto é, debater a recepção da teoria crítica nos países de línguas românicas, implica uma discussão sobre as possibilidades de traduzir não apenas textos, mas também um quadro teórico e político inteiro para outras formações sociais. Isso é uma tarefa particularmente complicada, tanto em termos de idiomas – entender o alemão, especialmente o escrito por Theodor W. Adorno, exige esforços comparáveis a escalar grandes montanhas para nós versados nas línguas românicas – quanto em termos do confronto das teorias da Escola de Frankfurt com outros contextos e realidades, o que exige a flexibilidade de uma contorcionista e treinamento profissional em dialética. No entanto, a recepção da Escola de Frankfurt em outras paisagens, especialmente na periferia do capitalismo, não deixa de retaliar. Confrontada com formações sociais latino-americanas, a teoria crítica é submetida a um teste de universalidade ao qual deveria ser – no passado e, hoje, ainda mais – obrigada a responder.

Portanto, nesta apresentação, pretendo inverter o caminho sugerido pelo seminário – que recomenda discutir a recepção da chamada Escola de Frankfurt nos países de línguas românicas – e defender, com base em algumas reflexões de Roberto Schwarz, a importância de um influxo teórico da periferia para o centro, não apenas em nome da diversidade ou inclusão, mas em nome da possibilidade mesma de se construir uma teoria crítica do presente que possa compreender a natureza sistêmica do capitalismo.

Neste sentido, vale a pena começar com uma observação materialista no sentido mais imediato do termo. A história do Instituto de Pesquisa Social esteve conectada à América Latina desde seu início, não apenas por que seu mecenas, Félix Weil, nasceu na Argentina, mas também por que o dinheiro que financiou sua fundação e garantiu sua continuidade por décadas foi principalmente ganho e/ou extraído desse país pela empresa comercializadora de grãos do pai de Félix, Hermann Weil. Desde o início, o IfS carregou a marca dessa dinâmica centro-periferia, que ainda não é completamente reconhecida na Europa. Entretanto, quando alguém da periferia do capitalismo pretende ser um especialista na Escola de Frankfurt ou pelo menos usá-la como referência principal, isso é sempre visto como estranho, um pouco exótico ou curioso, e é sempre preciso explicar de alguma forma a escolha de se debruçar sobre esses autores e justificar como as categorias da teoria crítica servem para explicar uma realidade tão diversa. Isso ocorre em parte porque Adorno e Horkheimer, por exemplo, não incluíram o colonialismo em suas reflexões sobre o capitalismo1 – o que certamente teve um custo enorme para uma teoria crítica da sociedade, como eu gostaria de comentar aqui. Mas também é um sintoma de como a parte de baixo do mundo ainda é percebida como uma formação social não ocidental, pré-capitalista, alienígena à modernidade e dela excluída; não que isso seja uma vantagem ou desvantagem – antes de qualquer coisa, é um equívoco sociológico.

Quero sugerir, nessa linha, que as obras da teoria crítica na América Latina podem revelar como, por exemplo, a Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer e parte do pensamento crítico do Norte Global ainda padecem de um excedente de Esclarecimento e de alguma insuficiência de dialética. Isso ocorre, principalmente, se o Esclarecimento é abordado como um conjunto de ideias cuja origem é o pensamento europeu, como apenas uma história da Razão europeia e de suas formas correspondentes de racionalidade. Nesse caso, a lacuna que separa essas duas partes do mundo é mantida. A periferia do capitalismo permanece um lugar exótico, com uma ontologia diferente (é evidente que há outras ontologias, especialmente se considerarmos os vários pensamentos e vivências indígenas, mas isso não é tudo). Alguns, como parte do pensamento decolonial, especialmente o presente no chamado Norte Global, encontram nesta alteridade uma solução para todos os problemas da chamada civilização ocidental. O arranjo pode agradar tanto a parte superior (que encontra um “fora” a partir do qual pode pensar criticamente ou se afirmar como uma civilização) quanto a parte inferior (que finalmente parece ter algo autêntico a oferecer ao centro, um artigo de curiosidade para aqueles que procuram aventuras antropológicas). Continuamos, como escreveu Oswald de Andrade, com humor e ironia, fornecendo uma “mentalidade pré-lógica para Sr. Lévy-Bruhl estudar” (Andrade, 2008, p.175). É compreensível, sem dúvida, que as vertentes críticas contemporâneas procurem um “exterior” ao capitalismo no qual possam se inspirar para negar o sistema predominante; porém, ao excluir uma parcela grande da periferia do capitalismo como parte desse processo, algo importante se perde. Outros, como as várias gerações da Escola de Frankfurt (exceto talvez Marcuse), ignoram a periferia e abandonam uma abordagem sistêmica do capitalismo – o que leva autores como Jürgen Habermas, até hoje, a negar as similaridades entre fascismo e colonialismo, apontadas por teóricos críticos periféricos, como Aimé Césaire em Discurso sobre o colonialismo.

No entanto, quando você é marxista na periferia do capitalismo, não há muita alternativa além de ir à luta, tentar superar esse dualismo e encontrar o nexo que conecta essas duas realidades aparentemente estranhas. Então, é preciso abordar a dualidade entre centro e periferia simultaneamente como um fato real e uma aparência, uma aparência socialmente necessária que obnubila a compreensão de que, mais do que apenas um conjunto de ideias, o Esclarecimento é principalmente um processo social real, um processo desigual e combinado, para usar um jargão démodé, mas nem por isso incorreto. A contribuição de Roberto Schwarz para a crítica dialética das formas sociais e literárias está ligada a esse último movimento. O trabalho de Schwarz, em diálogo próximo com a Escola de Frankfurt, demonstra como a Dialética do Esclarecimento – o livro e o processo social a que se refere – tem outra camada, pouco explorada por Adorno e Horkheimer, a do processo de colonização, que também pode revelar a falsidade do liberalismo e do capitalismo que Adorno e Horkheimer estavam igualmente interessados em discutir.

Como se sabe, na década de 1960, uma geração de críticos brasileiros e latino-americanos procurou entender a formação social colonial do Brasil como uma manifestação do próprio capitalismo, o que exigia afastar-se dos marxismos dogmáticos vinculados aos Partidos Comunistas e à União Soviética (que, em geral, associavam o colonialismo e a economia latifundiária a formações pré-capitalistas), mobilizando o chamado “marxismo ocidental” de Lukács, Sartre e da Escola de Frankfurt para seguir o caminho do marxismo como um método, e não como um conjunto doutrinário.2 Para permanecer fiel a Marx, era necessário revisar e expandir algumas de suas categorias. Afinal, como explicar que uma formação social como a brasileira até o século XIX era capitalista, nos termos de Marx, sendo ao mesmo tempo baseada em latifúndio e escravidão?

Schwarz estudava a obra de Machado de Assis, o mais importante escritor brasileiro do século XIX, e transplantou o problema descrito acima para o âmbito da estética. A ideia era discutir as possibilidades do romance em um país colonial (e baseado na escravidão) onde ideias liberais constituíam ideias importadas, aparentemente fora de lugar. Os esquemas de Lukács da Teoria do Romance e do Romance Histórico serviram como contraponto para sua análise. Seguindo Hegel, Lukács havia mostrado que – na Europa – a forma do romance se baseava nos princípios de igualdade e competição no mercado. Esses princípios, conforme ressalta Schwarz, garantiam dinâmica à vida social e produziam seu principal agente, o indivíduo. A promessa liberal de ascensão social por meio do trabalho é fundamental nesse contexto. A busca pela autorrealização e significado no romance está ancorada no individualismo burguês e, como ele, está fadada a terminar em desilusão. Levando em consideração, portanto, que o individualismo é o pressuposto estético do romance europeu, Schwarz examina os romances de Machado de Assis para investigar como uma forma como essa pode se aclimatar a um país em que a promessa de ascensão social pelo trabalho e, portanto, pelo mercado – e, assim, do individualismo burguês – estão ausentes, bem como o esquema marxista clássico das classes sociais: proletariado, de um lado, e burguesia, de outro. No Brasil, havia, diferentemente, escravidão, latifúndio e exportação de produtos primários, por um lado; e, homens livres, que dependem de relações de favor para sobreviver, e o mando, por outro. O que no centro conferia impulso ao romance era truncado na periferia, tornando esta, uma “forma difícil”, para utilizar a expressão de Rodrigo Naves. Ninguém antes de Schwarz havia referido o problema da modernidade periférica à teoria marxista clássica do romance. Em outras palavras, Schwarz demonstrou que era necessário repensar as categorias literárias, assim como as categorias da economia política de Marx foram repensadas para compreender a formação social latino-americana. Isto é, era preciso ampliar a noção de romance e realismo para demonstrar que o romance periférico de Machado de Assis poderia se encaixar dentro dessa forma. Ao fazê-lo, Schwarz acabou criando uma teoria ainda hoje considerada uma das grandes explicações da formação social periférica. Como a obra de Machado de Assis ainda é pouco conhecida e considerada muito específica na Europa (comprovando que o interesse pela América Latina é restrito a certos temas), vou comentar aqui um ensaio que Schwarz escreveu como introdução a seus estudos do romance no Brasil.

O ensaio “As ideias fora do lugar” introduz o problema da aclimatação da forma do romance no Brasil com um estudo sobre a dinâmica das classes sociais no país na segunda metade do século XIX. Schwarz inicia seu ensaio enfatizando como a combinação de escravidão e ideias liberais “transcrita[s] em parte na Constituição Brasileira de 1824” (Schwarz, 2000, p.12) incomodava os intelectuais brasileiros. O autor começa o ensaio com um panfleto contemporâneo a Machado de Assis, que afirma que “toda ciência tem princípios, de que deriva o seu sistema. Um dos princípios da Economia Política é o trabalho livre. Ora, no Brasil domina o fato ‘impolítico e abominável’ da escravidão” (Schwarz, 2000, p.11).

Este argumento, segundo Schwarz, colocaria “o Brasil fora do sistema da ciência […] das Luzes, Progresso, Humanidade, etc. […]” (Schwarz, 2000, p.11), ou seja, do Esclarecimento, o que incomodaria profundamente os intelectuais progressistas. Ao mesmo tempo, afirma ele, a combinação de escravidão e ideias liberais era uma realidade inevitável que constituiria, “uma comédia ideológica […] diferente da europeia” (Schwarz, 2000, p.11). Schwarz afirma que é evidente “que a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e, de modo geral, o universalismo eram ideologia na Europa também; elas encobriam a exploração do trabalho, mas eram ‘coerentes’ enquanto aparência. Entre nós, as mesmas ideias seriam falsas num sentido diverso, por assim dizer, original” (2000, p.11). Sendo assim, ressalta-se que essa ex-colônia, um país muito recentemente independente, resultou de um empreendimento comercial e capitalista baseado na venda de itens primários como açúcar e café – e, por isso, era familiarizada com as ideias liberais de lucro, que contradiriam apenas teoricamente a realidade da escravidão. O primeiro efeito ideológico dessa combinação, diz Schwarz, é que no Brasil todos sempre souberam que o liberalismo nada tinha a ver com liberdade ou que a liberdade nada tinha a ver com democracia. Sem querer extrapolar, mas já extrapolando, vale dizer que, hoje, de certa forma, essa consciência está muito mais do lado do Bolsonarismo do que de boa parte dos progressistas. “O teste da realidade”, diz Schwarz, “não parecia importante” (Schwarz, 2000, p.15) – outro ponto fundamental para entender a extrema-direita contemporânea, a quem o diálogo “racional” e “científico” não convence.

Quando o trabalho assalariado se tornou uma disposição mais lucrativa, os donos de pessoas escravizadas, diz ele, foram os primeiros a defender Adam Smith. Além disso, outro aspecto central do liberalismo capitalista no Brasil também estava ausente: a racionalização do processo de produção, parcialmente bloqueada pelo modelo de trabalho escravo, baseado na ocupação durante todo o dia e não na tentativa de diminuir o tempo de trabalho. Assim, essa combinação contraditória de empreendimento capitalista e escravidão como relação básica de produção – que deu à formação social brasileira um aspecto de “ornitorrinco”, segundo a formulação do sociólogo brasileiro Francisco de Oliveira – produziu uma dinâmica ideológica que estava em algum lugar entre esses dois polos, resultando na seguinte estrutura de classes:

o latifundiário, o escrav[izado] e o “homem livre”, na verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm. […] O favor é a nossa mediação quase universal – e sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção. (Schwarz, 2000, p.16-17)

Há duas observações importantes nessa passagem. A primeira, relativa à supervalorização explicativa do “favor” e da dependência – uma relação ao mesmo tempo interna e externa à produção propriamente dita – por intelectuais que buscavam evitar a história de violência do país. Um modo de se relacionar que se sobrepõe ideologicamente à realidade bruta do sistema produtivo. A segunda diz respeito a uma torção específica. Em outras palavras, trata-se do fato de que as ideias liberais que, na Europa, eram uma negação determinada das ideias de desigualdade natural entre as pessoas, poder pessoal e de terra no feudalismo, no Brasil, foram combinadas com escravidão e dependência. De certa forma, a periferia reuniu no mesmo tempo e lugar o que na Europa foi separado por duas eras e modos de produção diferentes. Por isso, a dinâmica periférica seria caracterizada, portanto, como uma “ideologia de segundo grau”, diz Schwarz, e operaria predominantemente na interseção entre essas três classes – vale ressaltar que esse movimento já envolve uma ampliação da categoria de classe, pois estamos falando de “classe” em uma sociedade que, ao mesmo tempo, é e não é uma sociedade baseada em classes. Em relação à escravidão, o liberalismo garantirá, para homens livres e proprietários de terras, sua parcela de participação nas relações modernas:

as ideias da burguesia – cuja grandeza sóbria remonta ao espírito público e racionalista da Ilustração – tomam função de … ornato e marca de fidalguia: atestam e festejam a participação numa esfera augusta, no caso a da Europa que se … industrializa. O quiproquó das ideias não podia ser maior. […] no contexto brasileiro, o favor assegurava às duas partes, em especial à mais fraca, de que nenhuma é escrava. Mesmo o mais miserável dos favorecidos via reconhecida nele, no favor, a sua livre pessoa, o que transformava prestação e contraprestação, por modestas que fossem, numa cerimônia de superioridade social, valiosa em si mesma. (Schwarz, 2000, p.20)

Assim, o léxico burguês de igualdade, mérito, trabalho e razão servirá à distinção, não à igualdade – falsificando a realidade de uma maneira diferente da que o liberalismo fez na Europa. O que está em jogo aqui é uma inversão entre forma e função (e não forma e conteúdo, como se costuma imaginar). Se considerarmos que Schwarz escreveu esse livro em plena ditadura militar, ainda que estivesse interessado nos problemas do romance de Machado de Assis, não é difícil enxergar que há também nesse ensaio um esforço genealógico de compreender as origens e particularidades do autoritarismo brasileiro e sua relação tensa com o ideário liberal. O passado colonial reatualizado no apoio das classes médias brancas à ditadura militar e, hoje, ao bolsonarismo, faz dessa dinâmica algo central para o Brasil do século XX e XXI, não só do XIX. Retrospectivamente, é possível enxergar parcialmente nos homens livres, nos agregados do XIX, os predecessores das classes médias brancas posteriores – que ainda precisam se diferenciar da classe trabalhadora negra proletária e precarizada que remete ao passado colonial que o país quer esquecer, embora se beneficie diariamente dele. Os papéis de parede com paisagens europeias ostentados pelas classes altas do XIX são substituídos por bonés com a bandeira estadunidense e por réplicas da estátua da liberdade no século XXI.

Assim, é possível apreender como essas observações de Schwarz já adicionam uma dimensão suplementar à dialética do esclarecimento, não negando, mas complexificando-a ao incluir a colonização na definição do próprio capitalismo como seu contraponto necessário e mostrando como a ideologia liberal funciona na periferia – o que também revela algo sobre o centro. Ou seja:

Imersos que estamos, ainda hoje, no universo do Capital, que não chegou a tomar forma clássica no Brasil, tendemos a ver esta combinação como inteiramente desvantajosa para nós, composta só de defeitos. Vantagens não há de ter tido; mas para apreciar devidamente a sua complexidade considere-se que as ideias da burguesia, a princípio voltadas contra o privilégio, a partir de 1848 se haviam tornado apologética: a vaga das lutas sociais na Europa mostrara que a universalidade disfarça antagonismos de classe. Portanto, para bem lhe reter o timbre ideológico é preciso considerar que o nosso discurso impróprio era oco também quando usado propriamente. (Schwarz, 2000, p.20-21)

Schwarz recorre ao famoso ensaio de Lukács sobre a decadência ideológica da burguesia para sugerir que, entre nós, esta nunca foi uma classe revolucionária e, se não nos concedeu vantagens, ao menos nos permitiu passar por menos ingênuos que os europeus – uma espécie de malandragem, para usar a expressão de Antonio Candido, que até hoje diferencia a periferia e o centro. Portanto, a ideia não é insistir na falsidade das ideias liberais, como muitos interpretaram erroneamente, mas observar como elas funcionam e como essa falsidade, esse deslocamento, faz parte de sua verdade – um movimento que, de certa forma, também guia a Dialética do Esclarecimento. Schwarz antecipa em muitos anos o que Fredric Jameson chamaria de perda do aspecto performativo das ideologias no pós-modernismo e o que Slavoj Žižek chamaria de capitalismo cínico. Isso significa que de alguma forma o que é considerado, até hoje, uma razão para o atraso na periferia do capitalismo – essas formas “Frankensteinianas” – estava revelando uma tendência do capitalismo em todo o mundo:

Inscritas num sistema que não descrevem nem mesmo em aparência, as ideias da burguesia viam infirmada já de início, pela evidência diária, a sua pretensão de abarcar a natureza humana. Se eram aceitas, eram-no por razões que elas próprias não podiam aceitar. Em lugar de horizonte, apareciam sobre um fundo mais vasto, que as relativiza: as idas e vindas de arbítrio e favor. Abalava-se na base a sua intenção universal. Assim, o que na Europa seria verdadeira façanha da crítica, entre nós podia ser a singela descrença de qualquer pachola, para quem utilitarismo, egoísmo, formalismo e o que for, são uma roupa entre outras, muito da época, mas desnecessariamente apertada. (Schwarz, 2000, p.20-21)

Voltando ao romance. Schwarz está preocupado em provar que Machado de Assis é um escritor realista, especialmente em seu livro mais importante, Memórias Póstumas de Brás Cubas, uma história narrada por um homem morto, um proprietário de terras cheio de humores e volubilidade. Assim, ele confronta Balzac, Flaubert e Scott (via Lukács e Adorno), apenas para mostrar que um romance de desilusão nunca poderia funcionar em uma realidade como a brasileira, e até pareceria ingênuo nesse contexto. Em “Braço de ferro com Lukács”, Schwarz afirma sobre o romance realista europeu:

Era perfeitamente natural que os brasileiros na segunda metade do XIX tentassem escrever romances de acordo com o modelo francês, digamos Balzac. Qual era o resultado? Como todos sabemos, no centro do romance balzaquiano há uma figura muito forte que toma os ideais da sociedade burguesa ao pé da letra e quer dar-lhes realidade, o que também é uma forma de autorrealização. No processo, essas figuras precisam enfrentar as realidades do dinheiro e descobrem que a sonhada autorrealização não é possível […] este modelo de narrativa exige personagens de força superior, mas que passam por um processo que também está em andamento nas vidas das figuras secundárias. As contradições centrais reverberam na periferia do enredo, produzindo um todo consistente, de imenso alcance crítico. Por outro lado, quando um escritor brasileiro, ávido por trazer a modernidade a seu país, tenta aplicar esse modelo às realidades locais, o resultado só pode ser diferente. […] Estas personagens fazem parte do mundo da escravidão e do paternalismo, no qual o favor – com seus meandros específicos de submissão, adulação e negociação – é a prática universal. Pois bem: se não há direitos individuais ou universais, se a única relação que existe é a dependência pessoal, quem seria idiota a ponto de se comportar absolutamente como um herói balzaquiano? (Schwarz, 2019, p.127)

Então, evidentemente, o realismo de um romance brasileiro deveria ter outra característica. Machado escolhe um narrador morto, que passará pelas estações de sua vida rica e desempregada sem nenhum projeto. Conforme destaca Schwarz, todas as suas relações são incivilizadas e violentas, mas, ao mesmo tempo, pairam sobre a responsabilidade moral. Machado escolhe o ponto de vista desse proprietário de terras, adere a ele para dissecá-lo e expô-lo. Sua ironia (que mais tarde seria comparada à de Thomas Mann) e volubilidade imitariam um comportamento de classe para o qual o liberalismo, “a ideologia mais prestigiosos do Ocidente”, está destinado a cortar a “figura ridícula de uma mania entre manias”. A potência da interpretação de Schwarz, no âmbito da crítica literária, tem a ver também com uma visada extremamente conectada às abordagens da Escola de Frankfurt. Essa, ao estudar o fascismo, sempre salientou que era preciso estudar o ponto de vista e a estrutura psicológica do fascista, e não de suas vítimas, pois o que explica o preconceito reside naquele, não nestas. De certo modo, é isso também que descobre Schwarz ao ler Machado, que o movimento crítico mais potente da sociedade brasileira naquele momento não consistia na denúncia da escravidão, mas na dissecação do mundo e dos personagens do mando e daqueles a eles submetidos, bem como da função complexa que o liberalismo tinha nesse arranjo. Schwarz investiga, assim, as origens sociais e estruturais da tendência (não generalizável, mas de considerável importância sociológica), afinada ao fascismo, de “identificação com os de cima” criada e legada pela condição colonial. A defesa da liberdade (de expressão, de armamento etc.), hoje em dia, atualiza o mesmo mecanismo colonial figurado em Machado: pressupõe a não liberdade da maior parte da população, a reposição da dominação brutal e violenta dos de baixo, o encarceramento da população negra, a exploração intensa do trabalho reprodutivo feito pelos setores subalternos, como as mulheres. É uma liberdade que se afirma a partir da não-liberdade, da morte, da precarização do trabalho, da destruição da natureza, da submissão ao imperialismo internacional, mas apela aos herdeiros dos homens livres, que conhecem os riscos e as agruras de se descer um degrau na pirâmide social. É uma liberdade como privilégio, que num país sem direitos, torna-se, naturalmente, uma mercadoria cobiçada.

Schwarz não só mostra o favor como um mecanismo social formalizado que organiza o romance, mas transplanta os aspectos mais importantes dos estudos de autoritarismo para problemas estéticos. Brás Cubas é uma alegoria do autoritarismo brasileiro, fruto da aclimatação do liberalismo no Brasil. Ao contrário do que diz o narrador do romance, ele passou a muitos, à grande parte da classe dominante brasileira, o legado de sua miséria. Nesse sentido, Schwarz demonstra, como Adorno e Horkheimer, como o autoritarismo nasce do liberalismo, mas de outra forma por aqui – o que exigiria uma revisão das próprias teorias frankfurtianas do autoritarismo. Essa visada insere e ao mesmo tempo exclui Schwarz do problema ou ao menos da “preocupação” com o problema da formação nacional – para a qual a contradição entre liberalismo e escravidão, entre modernização e atraso é um problema e que Schwarz ironiza em seu ensaio. Também Schwarz por via de Machado, como Adorno e Horkheimer, talvez mais ainda, desconfia do conceito de nação e de civilização.

Para entender uma forma literária, Schwarz tentou percorrer a formação social do Brasil e investigar uma particularidade percebida na vida cotidiana na América Latina que também envolvia refletir sobre o processo colonial, que é uma parte intrínseca e internacional do capitalismo. Assim como diversos antagonismos saem de mãos dadas no Brasil, também as referências que na Europa exigiam partidarismo – Lukács, Adorno, Benjamin, Brecht – se combinam na obra de Schwarz para mostrar que Machado de Assis utiliza procedimentos modernistas para alcançar uma forma realista; isto é, realismo e modernismo, que, no centro, estiveram temporalmente separados, se reúnem também aqui.

Para concluir, vale ressaltar como, embora mediadas pela dialética, as teorias relacionadas ao capitalismo monopolista informam o livro de Adorno e Horkheimer. Eles entendem isso como um resultado e, ao mesmo tempo, uma derivação autoritária do capitalismo liberal. Uma perspectiva que leve em conta a colonização e a relação entre a periferia do capitalismo e o capitalismo liberal (e que levasse em conta Machado de Assis) talvez não incorresse nessas antinomias. Portanto, as formações sociais periféricas, com suas práticas de favor e volubilidade entrelaçadas ao liberalismo, foram e são, como Schwarz destaca, “o efeito local e opaco de um mecanismo planetário” (Schwarz, 2000, p.30): um mergulho mais profundo na dialética do esclarecimento que, como eu gostaria de sugerir, também esclarece a dialética.

No final das contas, esses cem anos do Instituto de Pesquisa Social também suscitam a pergunta: em que hemisfério fica Frankfurt?


Notas
1 Na Dialética do Esclarecimento, constam apenas três referências ao conceito. Na problemática passagem referente às mulheres no excurso “Juliette ou Esclarecimento e a moral”: “Mas a mulher traz o estigma da fraqueza e por causa dessa fraqueza está em minoria, mesmo quando numericamente é superior ao homem. Como no caso dos autóctones subjugados nas primeiras formações estatais, assim como no caso dos indígenas nas colônias, atrasados relativamente aos conquistadores em termos de organização e armas, bem como no caso dos judeus entre os arianos, o desamparo da mulher é a justificação legal de sua opressão” (Adorno e Horkheimer, 2002, p. 73); em “Elementos do antissemitismo: Limites do Esclarecimento” quando intentam uma leitura sociológica mais imediata do antissemitismo: “Eis por que o judeu permaneceu sempre um tutelado, dependente dos imperadores, dos príncipes ou do Estado absolutista. Todos eles foram, em certa época, economicamente adiantados em face da população atrasada. Na medida em que podiam usar o judeu como intermediário, eles o protegiam das massas que tinham de pagar a conta do progresso. Os judeus foram os colonizadores do progresso. Desde a época em que ajudaram, como comerciantes, a difundir a civilização romana entre os gentios europeus, eles sempre foram, em consonância com sua religião patriarcal, os representantes de condições citadinas, burguesas e, por fim, industriais” (Adorno e Horkheimer, 2002, p. 114); e, por fim, em “Notas e esboços” quando afirmam que “o destino dos escravos da Antiguidade foi o destino de todas as vítimas até os modernos povos colonizados: eles tinham que passar como sendo os piores. Havia duas raças na natureza: os superiores e os inferiores. A libertação do indivíduo europeu realizou-se em ligação com uma transformação geral da cultura, que aprofundava cada vez mais a divisão, à medida que diminuía a coerção física exercida de fora” (Adorno e Horkheimer, 2002, p. 150-151).
2 Selecionei um aspecto específico de um contexto mais amplo sobre a recepção da teoria crítica no Brasil conforme solicitado pela proposta do evento, mas vale ressaltar que a pesquisa baseada na Escola de Frankfurt no Brasil teve início por volta da década de 1960 e abrangeu diversos campos do conhecimento. Como destaca o estudioso brasileiro Gabriel Cohn, nos anos 1960, a principal referência no país, especialmente nas ciências sociais, era A personalidade autoritária, presente nas obras de Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso. Cohn é um dos grandes receptores da obra de Adorno no Brasil, sendo tradutor, comentarista e fundador de uma sociologia da comunicação baseada no conceito de indústria cultural. Junto a ele, autores como Jeanne Marie Gagnebin, Barbara Freitag, Sérgio Paulo Rouanet e José Guilherme Alves Merquior introduziram essa tradição no Brasil. Muitos deles, assim como Schwarz, mantinham relações próximas com a Alemanha: eram alemães ou emigrados de países que tinham essa língua como primária, filhos de imigrantes ou diplomatas, ou seja, possuíam as condições necessárias para importar essa tradição – o que não lhes retira o mérito, mas atesta como a barreira linguística é uma das grandes dificuldades do diálogo acadêmico globalizado, marca da desigualdade que comanda as relações geopolíticas. Na mesma década, em 1968, foi traduzido o livro O Homem Unidimensional, de Herbert Marcuse, que teve impacto na resistência contra a ditadura. Nessa e nas décadas seguintes, uma parte significativa do debate em torno da teoria crítica também se desenvolveria nos campos da estética e da literatura, com traduções de Lukács, Adorno e Benjamin. Foi dentro desse contexto que uma das leituras críticas mais essenciais da Escola foi formulada e que viso comentar aqui.

Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W.; Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 2002 (ebook).
ANDRADE, Oswald de. “Manifesto Antropófago”. In Vanguardas Latino-Americanas: Polêmicas, Manifestos e Textos Críticos, org. por Schwartz, Jorge (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008), p. 145-181.
SCHWARZ, Roberto. “As ideias fora do lugar”. In Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34), p. 9-32.
SCHWARZ, Roberto. “Braço de Ferro com Lukács”, Seja como for. Entrevistas, retratos, documentos (São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2019), p. 117-154.

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Bruna Della Torre é Horkheimer Fellow no Institut für Sozialforschung em Frankfurt (Otto Brenner Stiftung), pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp sob supervisão de Marcelo Ridenti (bolsista Fapesp) e membra do comitê editorial da revista Crítica Marxista, da qual foi editora executiva entre 2018 e 2023. Foi pesquisadora visitante no Centro Käte Hamburger de Estudos Apocalípticos e Pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg/Alemanha e realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP sob a supervisão de Jorge de Almeida, com estágio de pesquisa na Universidade Humboldt (anfitriã: Rahel Jaeggi) e no Arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno da Akademie der Künste, em Berlim, com apoio do DAAD. Doutora em Sociologia (bolsista Capes), mestra em Antropologia Social sob a orientação de Lilia Katri Moritz Schwarcz (bolsista Fapesp) e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, realizou estágio de pesquisa na Goethe Universität em Frankfurt am Main (anfitrião: Thomas Lemke) e no Arquivo Arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno da Akademie der Künste, em Berlim (bolsista DAAD). Em 2016, realizou um doutorado sanduíche de duração de um ano no Departamento de Literatura da Duke University (EUA) (anfitrião: Fredric Jameson), com bolsa da Capes. Foi, entre 2017 e 2018 e em 2021, professora substituta no Departamento de Sociologia da UnB. É autora do livro “Vanguarda do atraso ou atraso da vanguarda? Oswald de Andrade e os teimosos destinos do Brasil”, colunista mensal do Blog da Boitempo, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva “marxismo feminista“. Tem experiência em pesquisa e docência no ensino superior nas áreas de teoria literária, teoria social e filosofia. Suas pesquisas concentram-se, principalmente, nos estudos da relação entre estética e política, cultura, literatura e sociedade, na obra de Theodor W. Adorno e da Escola de Frankfurt e nos debates relativos à teoria crítica e ao ao marxismo contemporâneos.

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