Morin: A busca por um novo humanismo planetário

Filósofo resgata a obra de seu parceiro Mauro Ceruti, em especial sua reflexão apaixonada sobre as complexidades do mundo. Ele desenha horizontes para uma “comunidade de destino” – a partir do processo criativo de coevolução com o planeta Terra

Arte: Favianna Rodriguez
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Por Edgar Morin, no La Repubblica, com tradução no IHU

Como muitas vezes tive oportunidade de dizer e escrever, Mauro Ceruti é um dos raros pensadores do nosso tempo a ter compreendido e assumido o desafio que nos é posto pela complexidade dos nossos seres e do nosso mundo. Pelas suas ideias e também por uma atividade organizacional generosa, foi o incansável tecelão de uma extraordinária e criativa comunidade de pensamento internacional e transdisciplinar. Além disso, foi o promotor e inspirador, com Gianluca Bocchi, do esplêndido simpósio “O desafio da complexidade”, realizado em Milão em 1984, bem como do histórico simpósio “Physis: habitar a Terra” realizado em Florença em 1986, momentos seminais e decisivos para o desenvolvimento de pensamento complexo. O seu pensamento contém e entrelaça sempre, nutrindo-se delas, três paixões: a paixão filosófica pela teoria do conhecimento, a paixão política e civil pela Europa e a paixão ética e pedagógica pelo destino da humanidade. Comentando, em 1986, seu livro O vínculo e a possibilidade, que já se tornou uma pedra angular da epistemologia sistêmica, eu observava que a ciência clássica só poderia reconhecer a racionalidade em caso de necessidade e poderia considerar o caso apenas como irracional, e que Mauro nos convidava a explorar uma série de transformações conceituais concernentes às nossas concepções teóricas, e indicava o caminho para enriquecer e complexificar a nossa visão da racionalidade.

A sua convicção, que eu compartilhava e de minha parte desenvolvia em O Método, era que a verdadeira aposta da nossa modernidade fosse uma renovação da problemática científica e da problemática epistemológica capaz de acolher o desafio da complexidade. E ambos dedicamos estas décadas a acolher esse desafio. O desafio, para Mauro, surge justamente das entranhas da história e da civilização europeias, e apresenta-se hoje à Europa como uma tarefa inevitável. Ele mostra, nos seus discursos e nos seus livros, que para pensar a Europa não se pode dissociar a sua múltipla diversidade da sua unidade, indicando que a Europa a construir (se isso ainda for possível) deverá ser aquela da unidade no multiculturalismo.

Apresentando a edição francesa do nosso livro A nossa Europa, em 2014, eu escrevia que era “a obra de dois espíritos irmãos, o de Mauro Ceruti e o meu: eu me encontro nele como ele se encontra em mim.” Juntos, naquele livro, lançamos o alarme.

A Europa, berço de grandes civilizações e capaz de integrar nela etnias muito diferentes, em sua ambivalência experimentou duas doenças específicas: a purificação unificadora e a sacralização das fronteiras. Depois da catástrofe das duas guerras mundiais que a haviam levado à beira do abismo, a União Europeia permitiu a integração poliétnica de pequenas nações monoétnicas e tendeu, portanto, a eliminar a doença da purificação. Além disso, produziu uma dessacralização das fronteiras. Contudo, na Europa de hoje surge o espectro de uma nova purificação, contra migrantes cuja condição está gravemente ameaçada, bem como contra migrantes impiedosamente impedidos de entrar. E assim levantamos a nossa voz contra a ideia de uma “fortaleza Europa”: especialmente porque a Europa nasceu de migrações, da pré-história aos tempos históricos; especialmente porque a sua “sobra miserável” emigrou para as Américas; e ainda mais porque são as devastações do desenvolvimento imposto à África que forçam os africanos proletarizados a virem para a Europa.

E também estigmatizamos o último obstáculo à União Europeia, que vem dos próprios estados europeus, que aceitaram abandonar as suas soberanias econômicas, mas resistem ao abandono das suas soberanias políticas absolutas, já que os problemas vitais e fundamentais que eles têm que enfrentar exigem, por sua própria natureza, a perda desse absolutismo. É dentro desse contexto que o pensamento complexo de Mauro Ceruti vem em socorro. De fato, ele mostra que o problema essencial, o de compreender o nosso tempo, é um problema matryoshka que contém dentro de si outros problemas, cada um dos quais, por sua vez, contém outros problemas… Compreender o nosso tempo significa, de fato, compreender a mundialização que arrasta a aventura humana, tornada planetariamente interdependente, feita de ações e reações, em particular políticas, econômicas, demográficas, mitológicas e religiosas; significa tentar questionar o devir da humanidade, que pelos motores conjuntos da ciência/tecnologia/economia é impulsionada em direção a um “homem aumentado” mas em nada melhorado, e em direção a uma sociedade governada por algoritmos, que tende a se deixar guiar pela inteligência artificial e, ao mesmo tempo, a nos transformar em máquinas banais. Ao mesmo tempo, esses mesmos motores ciência/tecnologia/economia conduzem por sua vez, a catástrofes interdependentes: degradação da biosfera e aquecimento climático, que levam a enormes migrações; multiplicação de ameaças mortais com o aumento das armas nucleares, das armas químicas e com o aparecimento da arma informática, capazes de desintegrar as sociedades. Tudo isso provoca angústias, retraimentos sobre si mesmos, fanatismos delirantes. Assim passam a pairar, por um lado, a inumanidade do “melhor dos mundos” e, do outro lado, a barbárie de uma situação de molde Mad Max, resultante de uma megacatástrofe planetária. O problema da aventura humana apresenta-nos a pergunta: o que é o humano? Mas a natureza da nossa própria identidade, como Mauro continuamente observou, não é ensinada em nossas escolas e, portanto, não é reconhecida pelas nossas mentes. Todos os elementos úteis para reconhecê-la estão dispersos em inúmeras ciências (incluindo as ciências físicas, uma vez que somos também máquinas físicas feitas de moléculas por sua vez feitas de átomos) e também na literatura, que nas suas obras-primas revela as complexidades humanas.

O problema da identidade humana inclui em si o problema da Natureza. Isso está presente de forma vital não só no meio ambiente, mas também dentro da própria identidade humana, que carrega em si a problema da natureza que é ao mesmo tempo física e cósmica. O humano não é, de fato, apenas um elemento singular no cosmos, carrega o cosmos dentro de si. Não é apenas um ser singular na vida, carrega a vida dentro de si. Assim, passo a passo, o questionamento se amplia e se multiplica. E assim, desde o início de sua pesquisa, Mauro mostrou o quanto precisamos de um conhecimento transdisciplinar, capaz de extrair, assimilar e integrar os conhecimentos ainda separados, compartimentados, fragmentados. E quanto precisamos de um pensamento complexo, isto é, capaz de ligar, de articular os conhecimentos, e não apenas justapô-los. Toda a sua obra é animada pela preocupação em compreender a complexidade humana, o que exige não isolar o humano, mas situá-lo em seus contextos cósmicos, físicos, biológicos, sociais e culturais, e agora também na comunidade de destino planetário. Sua obra estimulou um amplo debate internacional em muitos domínios de pesquisa, como psicologia clínica, pedagogia, ciências cognitivas, mas também nas ciências da organização, arquitetura, antropologia, sociologia… E este livro é um testemunho de sua original influência em múltiplos campos disciplinares.

Mauro Ceruti traçou um percurso filosófico que aceita o desafio da complexidade posta pelo nosso tempo; delineou uma perspectiva antropológica a partir da qual a identidade humana emerge como identidade evolutiva e irredutivelmente múltipla, através do entrelaçamento de múltiplas histórias; mostrou como o nosso tempo torna inevitável pensar juntos, e não em oposição, identidade e diversidade; motivou a urgência de uma reforma da educação capaz de valorizar as diversidades individuais e culturais e, ao mesmo tempo, voltada para integrar a fragmentação dos saberes. Com seus escritos pedagógicos contribuiu significativamente para as três reformas do conhecimento, do pensamento, do ensino e, sobretudo, estimulou-nos a estabelecer ligações entre essas três reformas. E afirmando a urgência vital de “educar para a era planetária”, delineou uma perspectiva que ajuda a orientarmo-nos na nossa época de mutações, produzidas pelo vórtice da globalização. Uma perspectiva que, pela sua originalidade, desenha o horizonte para pensar a reforma da escola no tempo da complexidade, em que tudo está conectado.

O resultado é uma reflexão apaixonada sobre a condição cada vez mais ambivalente da humanidade contemporânea, da qual, com lucidez e capacidade visionária, soube evidenciar os riscos inéditos, mas também as grandes e igualmente inéditas oportunidades. A ideia de base de sua filosofia é que a humanidade é constitutivamente inacabada, mesmo como espécie. E que são constitutivamente inacabadas e múltiplas as suas manifestações, individuais e culturais. Portanto, o desafio para o futuro, em perigo, da humanidade é elaborar a consciência de uma “comunidade de destino” de todos os povos da Terra, bem como de toda a humanidade com a própria Terra. Mauro desenha o horizonte de um novo humanismo planetário, que só pode nascer do encontro entre as diferentes culturas do planeta, da capacidade de pensar juntas unidade e multiplicidade, da capacidade de conectar as diversidades individuais e coletivas da espécie humana, sem achatá-las e dissolvê-las, porque só valorizando as diferentes experiências humanas presentes e passadas será possível regenerar um processo criativo de coevolução com o planeta Terra, nossa única pátria errante na imensidão do cosmos. Provável? Não.

Possível? Talvez. Na imagem da história desenhada por Mauro Ceruti, o conjunto das possibilidades evolutivas não é estático e predeterminado: o universo do possível regenera-se recorrentemente, de forma descontínua e imprevisível. Mauro pensa, como Blaise Pascal, que a identidade humana é autotranscendência: “l’homme passe infiniment l’homme”. Por isso, escreve na conclusão do seu livro O Tempo da Complexidade “a identidade da espécie humana contém a possibilidade, ainda que improvável, do surgimento de uma nova humanidade”.

A condição humana na época global contém em si a possibilidade de uma verdadeira universalização do princípio humanístico. E transformar o fato da interdependência planetária no processo de construção de uma “civilização” da Terra, promovendo uma evolução no sentido da convivência e da paz, é a tarefa difícil e até improvável, mas ao mesmo tempo criativa e incontornável, que nos é colocada pelo desafio da complexidade, pelo desafio de fazer nascer a humanidade planetária. Por ocasião da publicação deste livro dedicado à sua obra, gostaria de renovar minha homenagem pessoal ao espírito poderoso, criativo e, para mim, fraterno de Mauro Ceruti.

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