Lei Aldir Blanc e a crise da Cultura

O sofrimento silencioso dos trabalhadores da cultura, há mais de 500 dias sem acessar socorro emergencial. Eles denunciam burocracia excessiva, irregularidades e falta de repasses federais. No Paraná, 84% dos recursos não foram utilizados

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Por Rodrigo Juste Duarte, com colaboração do Observatório da Cultura do Brasil, no Le Monde Diplomatique Brasil

Pelo Brasil afora, fazedores de cultura e de manifestações culturais tradicionais estão com dificuldade para continuar trabalhando devido à pandemia. Como agravante, os recursos da Lei Aldir Blanc (que além de assistencial, é emergencial, para auxiliar o setor da cultura em seus mais diversos segmentos), foram pouco acessíveis para a maior parte dessas pessoas devido, principalmente, a questões burocráticas colocadas por determinados órgãos de cultura municipais e estaduais.

Por todo o país, têm ocorrido situações que demonstram tanto irregularidades no uso das verbas da Lei Aldir Blanc quanto denúncias de que os recursos não chegaram em diversos grupos sociais da Cultura, segundo reportagens locais. No Acre, foi feita uma denúncia no Ministério Público Federal para apurar a prática de racismo e erros na escolha de projetos, com a alegação de que indígenas foram prejudicados na seleção. Em Tocantins e no Piauí, também foram encaminhadas denúncias de irregularidades ao órgão. No Amazonas, a Lei Aldir Blanc teve seus processos seletivos questionados sob a ótica da lei em uma série de reportagens da Revista Cenarium.

Em Praia Grande, no litoral paulista, profissionais de uma frente ampla pela cultura protestaram por atrasos da prefeitura em fazer os repasses aos contemplados. Em estados como no Rio Grande do Sul (entre outros), várias prefeituras de municípios não têm uma secretaria de cultura, e assim ficaram sem recursos por não apresentarem um plano de ação em tempo hábil para o governo federal. No final de abril deste ano, um levantamento do site Metrópoles, junto ao Sistema Nacional de Cultura, da Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, apontou que 914 municípios de todo o país ainda não tinham usado os recursos da Lei e R$ 738,5 milhões seguiam parados em contas de prefeituras e governos estaduais. Outros estudos da própria Secretaria Especial da Cultura do Governo Federal e do Observatório da Cultura do Brasil revelam que os recursos podem não ter chegado, ou não terem sido usados em mais da metade dos municípios brasileiros.

Apesar de serem muitos casos pelo país, poucas localidades tiveram tanta apuração com documentação sobre os casos quanto o estado do Paraná. Por este motivo, são expostos aqui casos envolvendo cidades do Sul do Brasil. Apesar disso, é provável que casos semelhantes tenham ocorrido por todo o território nacional.

“A Lei Aldir Blanc não chegou para muitas comunidades tradicionais. Não foi facilitado o acesso destas pessoas a esse recurso, principalmente por causa das exigências do cadastro”, afirma Adegmar José da Silva, mais conhecido como Zelador Cultural Candieiro, coordenador nacional da Rema (Rede de Matriz Africana).

No Paraná, segundo o Ministério do Turismo, 84,91% dos recursos não foram utilizados, ficando ainda, segundo membros da CONSEC (Conselheiro Estadual de Cultura do Paraná), 80% do que foi gasto concentrado na capital Curitiba em bairros nobres, de acordo com levantamento do Observatório da Cultura do Brasil. Muitos segmentos culturais foram praticamente ignorados, ficando com atuação limitada e parco apoio governamental. No atual panorama, um número considerável de artistas foram trabalhar em outras áreas sem saber se retornarão a trabalhar com atividades culturais, vendem equipamentos de trabalho e (em casos extremos) se tornam moradores de rua.

Crise no setor cultural

Com a pandemia, o setor cultural foi proibido de trabalhar, ou perdeu clientela, decorrente da paralisação social e econômica. Segundo dados do Observatório do Itaú Cultural (publicados no Bem Paraná, na reportagem “Mercado cultural e intelectual do Paraná está ‘sangrando’ durante a pandemia!”, em 10 de abril de 2021), o Paraná tem 397 mil trabalhadores da Cultura (dados do final de 2020). Só pra se ter um comparativo, o mesmo estudo mostra que em 2014 haviam 489 mil paranaenses trabalhando no setor. Houve quedas entre 2015 e 2017 quando o número caiu para 401.761. Houve uma recuperação até 2019, chegando a 434 mil pessoas.  Mas os dados apontam queda de 18,7% no Paraná, com o fechamento de mais de 91 mil postos de trabalho nos setores de cultura, entretenimento e economia criativa.

Outro estudo, do Observatório da Cultura do Brasil, também estima que pelas médias de dados socioeconômicos, ao menos a metade dos trabalhadores do setor estão em dificuldades. Se as atividades culturais seguirem a média de projeção nacional, um quinto do número de trabalhadores do Brasil podem estar em situação de extrema fragilidade social (com dificuldades de moradia, alimentação, entre outras).

“Veio uma fortuna em recursos, mas o governo do Estado não sabia onde estávamos. O estado do Paraná não conhece minorias. Aí pedem vários documentos para participar da Lei Aldir Blanc. Mas gente! Os artistas têm fome. Não é dinheiro pra montar uma peça, mas pra ter comida na mesa”, afirma o artista cigano Claudio Iovanovitchi, presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana (Apreci).

“Apontamentos da Consultoria Ernest Young para a Europa indicam a quebra de 76% do setor de entretenimento, enquanto diversos pesquisadores sugerem que a soma da pandemia, com quarta revolução industrial, pode empurrar metade dos trabalhadores dos segmentos citados para fora do mercado, sem emprego e renda em definitivo após a pandemia”, aponta estudo do Observatório da Cultura do Brasil.

Lei Aldir Blanc, uma novela

A lei Aldir Blanc vem gerando polêmicas em vários municípios do país. Mas, como será apresentado, o caso paranaense lembra uma autêntica novela. Uma vasta investigação da classe cultural levou denúncias diversas aos fóruns e entidades de classe, resultando em mais de 500 documentos, 3.000 páginas de ofícios, e outros 4.000 arquivos com diálogos localizados.

Volume de documentos apensados pelo Fórum de Cultura do Paraná por meio de ofícios aos órgãos de controle e fiscalização no ano de 2021, a maioria não respondidos

Desde a elaboração de editais, até o empenho limitado dos recursos, ocorreu excessiva burocracia, em que o poder público exigiu certidões negativas de débitos (sendo que muitas pessoas estavam endividadas, passando necessidades e precisando de recursos assistenciais) e ainda promoveu seleções de premiados, com critérios de currículo e mérito, em plena pandemia.

Como resultados, ocorreu concentração de premiações em quem já tem renda, ou melhores condições de vida, enquanto diversos setores profissionais foram esquecidos. Da mesma forma que não foram atendidos artistas carentes, artesãos, técnicos, músicos de bar e culturas populares como circenses, indígenas, ciganos, afrodescendentes, ribeirinhos, caiçaras, e muitos outros.

Os segmentos empresariais, especialmente espaços de eventos, também foram ignorados, causando enorme quebra de empresas e fechamento de 9.000 negócios no estado (segundo dados da Abrabar – Associação Brasileira de Bares e Casas Noturnas do Paraná).

Completando o caso, ainda ocorreram denúncias de irregularidades, que envolvem desde prêmios controversos, para funcionários públicos, conselheiros de cultura, membros de comissão de elaboração de edital (E-Protocolo Gov, Paraná, N.17.598.757-6), conflitos de interesses e até pedido de propina para cadastro de proponentes nos editais.

Um dos relatórios do Fórum de Cultura do Paraná afirmou que em somente num dos editais, com título “Prêmio Jornada em Reconhecimento à Trajetória” (Edital de Concurso nº 003/2020), foram localizados 28 funcionários públicos premiados, cada um com 20 mil reais, totalizando 560 mil reais em prêmios, ainda que a verba fosse exclusiva para proteger os trabalhadores da iniciativa privada da calamidade pública causada pela pandemia (E-Protocolo Gov, Paraná, N.17.537.573-2).

Em denúncia anterior, que consta do Processo_17.519.479-7, que trata da origem das verbas da Lei Aldir Blanc, no orçamento de guerra, para o combate à pandemia, a comparação demonstra dupla gravidade da situação, pois de um lado os recursos, segundo o Fórum de Cultura do Paraná “deveriam ser assistências (Processo_17.519.479-7 – e-protocolo governo do Paraná), e do outro como demonstraram os documentos localizados, se tratam de recursos que não deveriam ser pleiteados por questões legais por funcionários públicos, que estão com seus salários em dia, portanto, fora do escopo, dos objetivos das leis e programas que foram criados para atender as vítimas da classe artística e técnicos dos setores culturais, que por ventura estejam necessitando de assistência e proteção social (Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020). O funcionalismo público não se enquadra nesta categoria, o que viola artigo 37 da constituição, bem como lei de licitações 8.666, o que vem sendo comprovado em decisões do TCE e TCU pelo Brasil em casos semelhantes”.

Segundo um membro do CONSEC que preferiu não ser identificado, a distribuição de recursos “ocorreu sem o cuidado mínimo exigido de averiguação das fases de habilitação, homologação, ordenador despesas e certificação. Isso deveria ocorrer após a entrega do produto e relatório, seja no edital ou termo de referência, nos pagamentos, e no que foi executado, verificado, para que um processo possa ser encerrado, após a prestação de contas. O controlador interno destes órgãos poderia ter reagido, posto que faz meses que essas denúncias estão vindo à baila na imprensa e redes sociais, além de ofícios enviados aos órgãos, podendo interferir a qualquer momento de posse das informações, mas não o fez”, afirma o conselheiro.

Com os demonstrativos de indícios de irregularidades, caberia ao controlador externo, CGE, TCE, ou MP tomar providências. Porém essas denúncias, seguem sem apuração dos órgãos de controle, que emitiram notas vagas, sem análise de mérito documental nem respostas com base na legislação apresentada.

O caso, que aponta diversas irregularidades, resultou na criação de um grupo de trabalho de fiscalização no Conselho Estadual de Cultura, e também de um na Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa do Paraná. Ambas criadas após as denúncias terem sido enviadas aos conselheiros, deputados, entidades, órgãos públicos e imprensa pelo Fórum. Mas após meses, não houve nem análises, nem leitura de documentos, quanto mais apresentação de resultados dessas comissões, bem como não ocorreram sindicâncias nem apuração interna das irregularidades localizadas.

Essa ausência de compromisso com os esclarecimentos, segundo os movimentos sociais, chegou ao ápice quando alguns órgãos públicos emitiram notas e ofícios de que não localizaram nada de irregular, bem como se recusaram em ofertar respostas mais objetivas, chegando a afirmar que não responderia certas solicitações de informação, por falta de pessoal para responder.

Após críticas da sociedade civil, o Estado sugeriu soluções paliativas, como redução de algumas exigências, mas manteve o modelo de editais para 2021, em que podem se repetir os problemas. Sugestões como uma criação de bolsa por doação civil foram ignoradas, e o Estado propõem uma bolsa qualificação universitária, o que segundo as críticas do meio cultural, ampliará as desigualdades sociais entre artistas centrais reconhecidos e os periféricos que não obtiveram suporte público.

Para completar a “novela”, os envolvidos do poder público, e citados nas irregularidades, ao invés de apresentar a legalidade dos atos, nas provas e termos das leis citadas, resolveram atuar numa blindagem, visando abafar o caso, desqualificando moralmente os reclamantes e denunciantes, promovendo inverdades, informações conflitantes e na ausência de outras formas, adotando a coerção, calúnia, difamação e ameaças de processos sem base legal, segundo denúncia enviada por um membro da classe artística (que preferiu não se identificar) ao Ministério Público.

Artistas circenses lutam para sobreviver durante a pandemia

Alguns segmentos talvez passem mais dificuldade do que os outros durante a pandemia no setor cultural. Guilherme Salgueiro é artista da quarta geração de uma família circense, atuando como trapezista e globista (motociclista do globo da morte), além de ser proprietário do Circo Master. Com a chegada da pandemia de Covid-19, não pôde dar continuidade aos trabalhos artísticos, atuando hoje como motorista de caminhão, realizando fretes.

Veículos e equipamentos de Circos estão parados pelo Brasil – Foto: Rodrigo Juste Duarte

“Quando a pandemia chegou, estávamos com o circo em Cidreira, no Rio Grande do Sul. Voltamos para Curitiba, onde temos residência. Estamos trabalhando onde aparece serviço. Agreguei meu caminhão a uma transportadora em São José do Pinhais, cidade da região metropolitana de Curitiba. Minha esposa, que é trapezista da terceira geração de uma família circense do Uruguai, está trabalhando como atendente de telemarketing”, comenta. O material do circo está guardado em um estacionamento. Alguns foram vendidos. “É a primeira vez que a gente não faz algo relacionado ao circo. Nós não pretendemos retornar no momento. A pandemia não acabou e não sabemos até quando ela vai. Penso em voltar quando tudo realmente acabar”

Guilherme Salgueiro, do Circo Master, ao lado do Globo da Morte desmontado – Foto: Rodrigo Juste Duarte

Entre os circenses, além de muitas pessoas trabalharem em outras atividades, os artistas estão vendendo maçãs do amor, algodão doce, bolas, entre outros produtos. “Eu fazia mais ou menos 400 maçãs do amor para vender por semana”, recorda João Borges, proprietário do Circo Lisboa, que está parado no município de Wenceslau Braz, no norte do Paraná. João chegou a se inscrever em um edital da Lei Aldir Blanc pelo município, recebendo um prêmio de R$ 30 mil em três parcelas. “A prefeitura daqui foi muito boa, mas nem todas são assim. Eu soube de circos que não conseguiram, sob a justificativa de que eles não eram da cidade onde estavam e por isso não tinham direito. Mas essa verba é federal”, protesta. O valor de R$ 30 mil é pomposo, mas vale lembrar que um circo tem custos altos para manter equipe, veículos e materiais, e dependem da bilheteria e da venda de produtos durante os espetáculos. “As estruturas de circo, como lonas e ferragens, durante o período de paragem se deterioraram.  Estando sem uso, as lonas ressecam e os materiais de segurança vão ter de ser substituídos para segurança do público. Essas despesas podem passar de 70 mil reais”.

Ele lembra que no Paraná os circos estão parados há 500 dias, e afirma que pelo Governo do Estado, os circos tradicionais de lona não foram contemplados pela Lei Aldir Blanc. Sem contar que os editais exigiam certidões negativas, currículo e análise de mérito. “É muita burocracia nos editais. Se a empresa está sem trabalhar há meses, não tem como estar com certidões negativas. Se a pessoa está com nome sujo não é por culpa dela, teve uma pandemia”.

O presidente do Fórum Setorial de Circos do Estado do Paraná, Marcio Zanquettin, relata que o Paraná tem 18 circos. “Alguns já estavam em situação difícil antes de março de 2020. Quando chegou a pandemia, piorou. Eu calculo que vamos ter uma perda de circo de 30% no Brasil. Muito artista de circo pegou emprego em outras cidades. Vão sobreviver os circos de famílias tradicionais”, prevê.

Esse especial sobre a Lei Aldir Blanc vai abordar temas como: a excessiva burocracia, a exclusão de diversas profissões dos benefícios, a quebra de infraestrutura de espaços de cultura, eventos e entretenimento. Culturas e comunidades tradicionais que foram prejudicadas. Denúncias relacionadas à má aplicação de recursos da Lei Aldir Blanc, que seguem sem respostas e sem soluções efetivas

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