Maceió: o crime ambiental oculto da Braskem

Em 2018, exploração desenfreada fez o solo de quatro bairros ceder, deixando milhares de desabrigados – a maior catástrofe em solo urbano do mundo. Conheça a história de mulheres que ainda hoje sofrem com os danos emocionais e sociais

.

Reportagem especial de Juliana Afonso e Nina Rocha, no Modefica | Colagens: Victoria Lobo

“Ela não teve pena de ninguém. Fez os buracos e deixou lá”. É dessa forma que a cabeleireira Rosa Maria Cavalcante, de 53 anos, define a ação da Braskem em Maceió, no estado de Alagoas. Desde 1976, a empresa atua extraindo sal-gema, um cloreto de sódio retirado de rochas a mais de mil metros de profundidade. O mineral é matéria-prima para produção de PVC, plástico sintético utilizado principalmente na construção civil. Rosa é uma das mais de 50 mil pessoas de quem o lugar de moradia, convivência ou trabalho cultivado por anos foi destruído.

O primeiro bairro a sofrer as consequências das atividades da Braskem foi Pinheiro, próximo à Lagoa Mundaú, onde acontecem as perfurações do solo para extração de sal-gema. As pequenas fissuras nas paredes se tornaram frequentes e, com o tempo, se transformaram em grandes rachaduras. A estrutura das edificações se deteriorou e as casas e prédios começaram a cair. Rosa morava e trabalhava no bairro. “Hoje eu tô morando aqui no bairro do Farol, mas só veio 10% da clientela porque muitas se espalharam, estão morando na Ponta Verde, Serraria, Marechal Deodoro, e esses lugares são distantes. Elas não vão gastar a gasolina pra vir pra cá, pra arrumar o cabelo, se tem cabeleireira lá perto. Lá no Pinheiro era mais fácil, né? Eu tinha minha clientela toda ao redor”, conta.

Rosa é uma entre as milhares de mulheres que perderam não apenas a moradia, mas também seu local de trabalho e rede de contatos no que é considerado o maior crime ambiental em solo urbano do mundo. “Tinha muita mulher empreendedora, viu? Muita mulher trabalhadora ali naquele Pinheiro, que fazia quentinha, que matava frango, que tinha seu mercadinho, que tinha seu comércio. Tinha muitas lojas de roupas femininas. Os homens também tinham barbearia, padaria, mas tinha muitas lojas femininas, muitas mesmo, e mulheres empreendedoras, advogadas, engenheiras”, lembra Rosa. O afundamento do solo trouxe uma série de consequências para a vida das mulheres, que agora lutam por justiça para reparação dos danos causados pela Braskem.

Danos profundos

Os bairros Pinheiro, Mutange, Farol, Bebedouro e Bom Parto possuem diferentes ocupações, relevos e realidades socioeconômicas, mas carregam em comum a história de moradores e moradoras que foram forçados a deixar os espaços onde foram construídas as histórias de suas famílias, escolas, igrejas, hospitais e comércios. Devido às décadas de atividade de exploração da Braskem em Maceió, o solo da região tornou-se instável, causando crateras no asfalto, rachaduras nas casas e prédios, danos estruturais nas edificações e até desmoronamentos que inviabilizaram a permanência da população no local.

As primeiras fissuras foram notadas ainda na década de 2010, na superfície do bairro Pinheiro, mas ainda não era possível identificar a causa ou prever o tamanho dos danos que se alastraram nos anos seguintes. O sintoma de que algo mais grave poderia acontecer veio no dia 3 de março de 2018, quando um tremor de terra foi sentido desde Pinheiro a Cruz das Almas, em uma extensão de 6 quilômetros. Na época, o fenômeno geológico não foi associado a nenhum tipo de intervenção humana. Apenas em maio de 2019, o Serviço Geológico do Brasil (CPMR) publicou um relatório mostrando que a perfuração do solo realizada pela Braskem não atendia aos padrões de segurança e que a empresa era responsável pelos tremores de terra e pela deterioração das edificações.

Segundo o engenheiro civil geotécnico, Abel Galindo, são três os fatores que causaram o afundamento do solo na região. O primeiro é o tamanho das minas. “O sal-gema está há mil metros de profundidade. O tamanho técnico seguro do diâmetro de cada mina é de 55 a 60 metros, no máximo. Você vai encontrar pouquíssimas minas com esse tamanho. Elas têm 80, 90, 100, até 150 metros”, explica o professor de Engenharia e Geologia da Universidade Federal de Alagoas. Outro fator de risco é a distância entre o centro de uma mina e outra, que deve ser de no mínimo 140 metros – o que também não foi respeitado.

Por fim, a empresa atuou por um longo período sem conhecer a resistência das rochas que estão acima da camada de sal-gema. “Em cima do sal-gema, tem uma camada de uns 200 metros de espessura que é muito frágil. Se essa camada fosse de uma rocha muito resistente, podia até acontecer de cavernas de 80 ou 90 metros de diâmetro ficarem de pé, mas não é o caso. Somente em 1992 fizeram um estudo obtendo as qualidades de resistência das rochas ao longo da profundidade”, explica Abel.

Foi só em maio de 2019, pouco mais de um ano após o tremor inicial, que as atividades nas minas foram paralisadas. Ainda em 2019, no mês de novembro, uma Área de Resguardo [1] foi criada e 500 imóveis foram desocupados preventivamente. À medida que a área comprometida se expandia, o número de pessoas desabrigadas se multiplicava. Em janeiro de 2020, a Defensoria Pública do Estado de Alagoas, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado de Alagoas, a Defensoria Pública da União e a Braskem assinaram um Termo de Acordo para Apoio na Desocupação das Áreas de Risco.

Segundo as procuradoras Julia Cadete, Juliana Câmara, Niedja Kaspary e Roberta Bomfim, que compõem a Força-Tarefa do MPF para o Caso Pinheiro/Braskem, “o termo de acordo já é reconhecido como o maior já celebrado no país na perspectiva de prevenção de desastres ainda maiores e de preservação de vidas, em razão tanto da área objeto de medidas como da quantidade de pessoas alcançadas”.

O acordo estabeleceu critérios para a rápida desocupação da área de risco e para garantir que todas as pessoas atingidas sejam indenizadas até 2022. Segundo a assessoria da Braskem, foram identificados um total de 14.394 imóveis, dos quais 13.641 já estão desocupados. Deste montante, 7.519 propostas de indenização foram apresentadas e 5.251 foram consolidadas até o mês de junho de 2021. Os moradores, porém, reivindicam que as propostas não cobrem as despesas reparatórias e que a empresa não atua com celeridade na revisão de algumas indenizações.

A dificuldade foi constatada pelo próprio MPF, sobretudo daqueles que tinham negócios nos bairros. Diferente dos empreendedores desalojados, a Braskem retomou suas atividades de produção de PVC em fevereiro deste ano, com matéria-prima importada. Segundo o portal financeiro Infomoney, o lucro líquido da empresa no primeiro trimestre de 2021 foi de R$ 7,4 bilhões, contrapondo um gasto de R$ 1,2 bilhão das indenizações pagas até o momento.

Leia Também: