Judiciário: tornozeleiras para todos

Pesquisa na Bahia aponta: obcecados pela “guerra às drogas”, juízes submetem presos – em maioria negros – a “medidas alternativas” desnecessárias. Acusados de pequenos delitos, os atingidos pela arbitrariedade têm enorme dificuldade de obter emprego

Imagem: Vinicius de Araujo/Alma Preta
.

Por Gil Luiz Mendes, na Ponte Jornalismo

Criadas há 11 anos para serem uma alternativa à prisão, que deveria ser usada para beneficiar réus que respondem a processos criminais em liberdade, as chamadas “medidas cautelares diversas da prisão” acabaram se transformando numa forma de punição para pessoas que nem sequer foram condenadas por qualquer crime. A constatação é da pesquisa Do descrédito ao desmonte: aplicação de alternativas penais e enfrentamento ao uso abusivo de prisões provisórias em Salvador, desenvolvida pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, com o apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, que investigou a aplicação da lei de drogas e o desmonte das políticas de alternativas penais na Bahia entre 2020 e 2022.

Segundo Belle Damasceno, pesquisadora que participou do levantamento, as medidas diversas da prisão — que podem incluir o monitoramento por tornozeleira eletrônica, a obrigação de comparecer periodicamente ao fórum, pagamento de fiança e proibições de contato com determinadas pessoas, de deixar a cidade ou de sair de casa à noite — estão sendo impostas por juízes a pessoas que poderiam responder ao processo em liberdade plena, ou seja, sem cumprir qualquer condição.

“Devido ao mau uso da aplicação dessas medidas, pessoas que ficavam completamente livres agora têm que seguir uma série de condições e isso impacta diretamente na sua vida, já que algumas delas não têm como trabalhar, por exemplo, devido a essas medidas”, avalia Belle.

O monitoramento eletrônico, por exemplo, é uma medida que quase sempre condena essas pessoas ao desemprego. “É muito difícil conseguir um emprego carregando uma tornozeleira eletrônica”, afirma Hugo Dantas, ex-assistente social da Central Integrada de Alternativas Penais, no documentário produzido como parte do estudo. As medidas cautelares diversas da prisão foram introduzidas no artigo 319 do Código de Processo Penal pela lei federal 12.403, de 2011.

“Antes de alternativa penal, a gente tem que falar em debater a lei de drogas. Não vou botar uma mulher na cadeia, mas vou monitorar ela, vou botar dentro de casa, com três filhos menores que ela tem que levar para o médico… O que é isso se não uma prisão? Eu só não estou gastando dinheiro do Estado”, afirma Maurício Saporito, defensor público da Bahia, no documentário.

A pesquisa focou no que acontece após as audiências de custódia para pessoas presas em flagrante por tráfico de drogas. Ao fim de uma dessas audiências, os réus têm três destinos possíveis: liberdade plena, prisão preventiva ou encaminhamento para medidas alternativas à prisão. Como todos são considerados inocentes até serem condenados em definitivo, responder em liberdade plena deveria ser regra, mas a pesquisa aponta que muitos magistrados abusam da decretação de prisões preventivas e ou mesmo das medidas alternativas, que, embora não levem à prisão, podem se transformar em punição para quem as recebe.

“Claro que em relação ao confinamento dentro de uma penitenciária, a pena alternativa é um benefício, mas ao mesmo tempo impede que pessoas que trabalham como ambulantes em festas exerçam seu trabalho à noite. Ou alguém que trabalhe como motorista de aplicativo possa fazer uma corrida para uma cidade vizinha. Observamos que tanto na primeira quanto na segunda instância os juízes não fazem referência à questão do trabalho do réu. De certa forma, essas decisões acabam fazendo que de alguma forma essas pessoas descumpram a pena”, relata Belle.

A pesquisa indica que os magistrados aplicam as medias cautelares sem avaliar como podem afetar a vida dos réus, já que 36,6% dos processos de primeira instância analisados não tinham informação sobre o trabalho das pessoas julgadas. “O único meio que o Estado anti-negro brasileiro reconhece é o cerceamento da liberdade”, afirma o advogado e abolicionista penal Luciano Góes no documentário.

A pesquisa

A advogada Ana Míria Carinhanha, coordenadora da pesquisa, afirma que o estudo se baseou na análise de 36 decisões proferidas por desembargadores do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) de janeiro a dezembro de 2020 e de 105 autos de prisão em flagrante, acompanhados pela Defensoria Pública entre janeiro e dezembro de 2020, referentes a casos de pessoas acusadas por crimes relacionados à lei de drogas na cidade de Salvador. A pesquisa também utilizou pedidos via Lei de Acesso à Informação para o governo, além de entrevistar juízes, defensores públicos, advogados e pessoas do sistema de justiça.

Segundo o estudo, a Bahia teria sido referência nacional na aplicação de medidas e de penas alternativas, mas isso mudou com a aplicação inadequada pelos magistrados e com o fechamento, no final do ano passado, de núcleos responsáveis pelo acolhimento de pessoas egressas ou que cumpriam as medidas.

“Na maioria das vezes essas pessoas acabam presas provisoriamente sobre o argumento de garantia da ordem pública para evitar algum perigo social. Hoje a gente tem mais de 40% de pessoas que estão presas e sequer tiveram o julgamento em primeira instância”, comenta Ana Míria.

Os números que correspondente à aplicação de medidas restritivas de direitos em primeira instância, levantados pela pesquisa, mostram que em 58,5% dos casos os juízes decidiram pela condenação privativa de liberdade, enquanto em 39% dos casos houve decisão por substituição de medidas restritivas.

De acordo com as pesquisadoras, desde dezembro do ano passado a situação para as pessoas que cumprem penas alternativas em Salvador está pior. O motivo seria descontinuação de uma parceria entre a Secretaria Administração Penitenciária (Seap) com a Central Integrada de Alternativas Penais (Ciap), composta por psicólogos, assistentes sociais e servidores da secretaria que faziam o acompanhamento e monitoramento desse público.

Das 12 pessoas que compunham a Ciap até o final de 2021, hoje apenas duas pessoas ligadas à Seap permanecem com o trabalho. Segundo Belle, o enfraquecimento no quadro de  pessoas para acompanhar os apenados faz com que os juízes evitem aplicar penas alternativas.

“Vimos na pesquisa que os juízes costumam definir suas decisões alegando o perigo à ordem pública por parte das pessoas que são condenadas. Acreditamos que isso é um argumento muito subjetivo, porque não fica claro que tipo de perigo é esse. Sem o trabalho dos profissionais que compunham o Ciap, é normal que os juízes acreditem que, sem o acompanhamento adequado, essas pessoas voltem a reincidir em crimes”, diz Belle Damasceno.

Leia Também: