Por que aliar a saúde pública e às lutas ecológicas

Outras pandemias virão, aponta a ciência. Resgatar o SUS dos ataques do bolsonarismo é essencial. E pode ser a chance de atrelar lutas sanitárias à preservação dos biomas, democratização do saneamento e oferta de alimentos nutritivos

Registro do 3º Encontro de Saúde e Agroecologia, promovido pela Fiocruz, em 2018, no Quilombo do Campinho, em Paraty, RJ. Foto: Eduardo Napoli

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Este artigo é o sétimo de uma série em que Jean Marc von der Weid se propõe a analisar a crise brasileira em suas diversas dimensões e propor alternativas. Leia os artigos anteriores:
– Um tsunami alimentar no horizonte brasileiro
– Por um programa de salvação nacional
– Uma agenda ambiental para Lula
– Como socorrer o Brasil que tem fome
– A indispensável metamorfose agroecológica no Brasil
O fim da mamata dos super-ricos

Como no tema da fome, também na saúde temos aspectos de imensa urgência cobrando soluções imediatas, e outros que pedem respostas não menos urgentes, mas com soluções de médio e longo prazo.

A questão imediata, é claro, é a pandemia de covid-19. Os otimistas estão apontando para uma mudança na enfermidade, com um arrefecimento dos aspectos mais dramáticos e os impactos mais sinistros da pandemia. Com efeito, embora a variante ômicrom e outras que a suplantaram sejam bastante menos letais do que a sua predecessora delta, ela está contaminando tanta gente que os números de internados e de óbitos ainda são preocupantes. É bom lembrar uma regra básica de matemática de curso primário: baixas porcentagens de números muito elevados de contaminados resultam em números muito altos de hospitalizados e de óbitos.

A pandemia ainda não está dominada e estamos em um momento altamente perigoso para o futuro próximo. A coexistência de um ainda alto percentual de não vacinados e de não totalmente vacinados com um bom número de vacinados e com uma alta quantidade de contaminados com diferentes tipos de variantes (estima-se que perto de 60 milhões de brasileiros tenham contraído a covid em suas diferentes formas) gera uma situação que favorece o processo de mutações do vírus. As mutações da covid têm sido muito mais amplas e rápidas do que outros vírus já bem conhecidos nossos. A possibilidade destas mutações derrubarem as defesas antivirais tanto dos ex-contaminados como dos vacinados é grande, segundo vários cientistas. Isto pode significar tanto o surgimento de uma variedade mais mortífera como uma sucessão de variedades de alta contaminação capazes de vencer as defesas adquiridas ou inoculadas e manter elevado o nível de expressão da pandemia, pressionando tanto a rede hospitalar como perturbando a atividade econômica de forma permanente.

Até agora o povo brasileiro está ganhando a guerra contra a covid e seus defensores no governo federal e alguns governos estaduais e prefeituras, mas Bolsonaro continua travando como pode o combate à pandemia, dificultando o acesso às vacinas, gerando dúvidas na população, pressionando contra quaisquer medidas de prevenção, desde o uso de máscaras até os isolamentos sociais. É bom lembrar que se o approach do energúmeno tivesse prevalecido e fosse adotada a quimérica imunidade de rebanho teríamos chegado aos milhões de mortos e a um colapso muito mais retumbante do sistema de saúde. Também é bom lembrar que o contínuo enfrentamento entre Bolsonaro e seus apaniguados e o amplo conjunto de forças que se mobilizou para enfrentar tanto a pandemia como o presidente custou ao povo brasileiro 670 mil óbitos e milhões de sequelados, além de uma crise socioeconômica que está longe do fim. Neste momento o energúmeno está conseguindo frear o ritmo da vacinação, em particular a das crianças de 5 a 11 anos. Ele perde de lavada na opinião da grande maioria e seu negacionismo é fortemente rejeitado, mas o custo deste embate constante foi alto e a população está claramente esgotada. As regras de prevenção vão sendo abandonadas e uma estranha sensação de alívio vai tomando conta de todos, apesar dos números de mortes e contaminações terem retomado um ascenso, os primeiros voltando à casa dos centenas por dia e os segundos batendo recordes em seguida. Parece que esta crise é mais passageira, mas o perigo continua rondando, podendo surgir variantes mais letais a qualquer momento.

Esse cansaço é a única explicação para a aceitação generalizada da retomada das aulas para crianças até 10 anos antes da vacinação de todas elas ter permitido diminuir os riscos. Este sentimento de que “o pior já passou” vai orientando o comportamento de todos os políticos com cargos executivos. As regras de prevenção vão sendo afrouxadas à medida em que vai se aproximando o teste das urnas e os candidatos vão evitando enfrentar o esgotamento da população. É neste perigoso momento que Bolsonaro surfa no seu negacionismo e prejudicando todo o plano de vacinação, estendendo os riscos futuros a que todos estamos submetidos.

A luta contra a covid tem que ser retomada a fundo, pois os efeitos de curto, médio e longo prazos vão ser catastróficos e os sequelados vão sofrer e pesar sobre os serviços de saúde por muito tempo. Deveríamos estar lutando para formar uma frente nacional de combate à pandemia, com representações do executivo federal, dos governos estaduais e prefeituras, do Congresso Nacional, das entidades científicas e da sociedade civil. Esta comissão extraordinária deveria ter plenos poderes para definir as políticas a serem executadas por cada uma das instâncias dela participantes. Uma lei regendo esta situação de emergência deveria ser aprovada pelo Congresso, retirando do Ministério da Saúde o seu poder de atrapalhar o processo ou, em um novo governo, afirmando este Ministério no papel de coordenador do processo, como deveria ter tido. Esta comissão deveria mobilizar o empresariado nacional para enfrentar a produção necessária de insumos para vacinas e as próprias vacinas, além de outros equipamentos que nos fizeram falta no nosso embate com o coronavírus (máscaras, oxigênio, etc.). A comissão deveria assumir a coordenação da campanha contra a pandemia, tanto do ponto de vista da saúde como do ponto de vista das medidas de apoio à população para que possa seguir as orientações preventivas emitidas por ela. No entanto, estamos tratando da pandemia sempre com medidas meia-boca provocadas pelo contraste entre o executivo federal e seus aderentes e o resto do país. Se isto não for possível até as eleições, a prioridade para o novo governo vai ser ainda maior, pois não sabemos como as coisas podem evoluir ao longo deste ano e ao longo dos próximos anos. Não vai haver, infelizmente, uma idílica “volta ao normal” pré-pandemia. Os riscos vieram para ficar e vai ser uma prioridade preveni-los.

É espantoso que as atitudes de Bolsonaro e do seu ministrinho da Saúde Queiroga não tenham gerado revolta nem recolocado a questão do impeachment no centro da política. Isto só se explica porque o conjunto das forças políticas não acredita no impedimento do presidente e talvez sequer o deseje, colocando todas as fichas do jogo nas eleições de outubro. É verdade que Bolsonaro parece ter conseguido neutralizar boa parte das pressões e ameaças a que foi submetido pelos muitos crimes que cometeu. Atualmente, a Polícia Federal (salvo um ou outro delegado mais cascudo), a PGR, o TCU, o COAF, a Receita Federal e o STJ, além da maioria garantida no Congresso com o acordão com o Centrão, tornaram a possibilidade de se fazer andar um processo de impeachment dependente de uma enorme pressão de massas. Mas como já vimos no ano que passou, esta pressão não veio da mobilização das forças organizadas da sociedade, em particular dos partidos políticos. Uns e outros estão satisfeitos com Bolsonaro nas cordas e desgastado e concentrados no debate eleitoral. Uma reação espontânea da sociedade não pareceu uma possibilidade em larga escala pois ela não ocorreu nem nos momentos mais dramáticos da pandemia e com a ampliação da miséria e da fome.

Não se pode esquecer que o Brasil vem sendo assolado há anos por infestações graves de dengue, zika e shikungunha (e até a malária e tuberculose estão de volta) que tem se mostrado bastante resilientes frente aos mal articulados e insuficientes esforços de controle por parte das autoridades médicas. Em um futuro próximo estas infestações vão voltar aos patamares de antes da pandemia da covid pois o refresco vivido atualmente se deve às medidas de controle da pandemia e que também frearam os outros casos. Campanhas de controle de epidemias terão que se tornar perenes e incisivas se quisermos evitar surtos descontrolados destas e de outras doenças contagiosas.

No longo prazo o quadro da saúde dos brasileiros é dramático. Além de expostos a uma pandemia que pode se transformar em uma endemia com efeitos muito mais pesados do que as gripes com as quais convivemos há tanto tempo, existe o risco de outras pandemias virem a ocorrer. Na verdade, este não é propriamente um risco, mas uma certeza. Especialistas em epidemias vêm apontando para a probabilidade de explodirem grandes enfermidades de caráter mundial há várias décadas e o surpreendente foi isto não ter ocorrido antes. Aliás, considera-se que a covid foi uma benção quando comparado com outras pandemias que estão em gestação, em particular as febres suína e aviária ou mutações mais agressivas da influenza. Por outro lado, os especialistas nos dizem que muitas outras possibilidades de pandemias estão se armando com os processos de destruição dos ecossistemas em todo o mundo. Vírus, bactérias, micróbios, etc. que hoje vivem em equilíbrio com o meio ambiente onde estão inseridos, como na Amazônia ou no Cerrado, estão sendo lançados no contato com animais (gado bovino, suíno, aves) e humanos e em processo de mutação para poderem se multiplicar, na medida que estes ecossistemas vão sendo destruídos. Os riscos de novos agentes infecciosos surgirem e explodirem aqui ou em outros países com os mesmos problemas de desmatamento é bem definido na OMS e o Brasil é visto como uma ameaça mundial em potencial.

Em outras palavras, a política ambiental faz parte da estratégia da política de saúde e não só no que concerne os riscos de epidemias. A poluição química por agrotóxicos; poluição dos alimentos, mas também dos produtores e dos moradores das zonas rurais e nas cidades e vilas no raio de ação dos aviões pulverizadores de venenos é uma questão urgente de saúde pública afetando milhões de pessoas em todo o país. O desmatamento zero e a redução do uso de agrotóxicos devem ser incorporados em uma estratégia multisetorial de emergências nacionais.

Tem sido comentada a importância do SUS para o combate à covid e isto é uma evidência incontestável. Mas não podemos deixar de lembrar que o SUS vinha sofrendo um processo de esvaziamento constante ao longo de décadas e tinha um funcionamento para lá de sofrível para a mais da metade da população que dele dependia e depende. Os outros foram sendo induzidos a aderirem a planos de saúde privada que custam muito e entregam pouco, sobretudo para os setores com menos recursos. Terá que fazer parte de uma política sistemática de qualquer governo que leve a sério a nossa história recente (e a de muitos outros países que passaram pelo mesmo processo) a reconstituição do SUS e sua expansão e qualificação.

Mas é no plano da prevenção que os esforços devem ser orientados prioritariamente. Melhorar a nutrição é um elemento essencial de saúde pública (leia mais aqui). Melhorar a produção e o acesso aos alimentos a preços compatíveis é um elemento vital da estratégia, mas há outros elementos complementares tais como a educação alimentar, começando com as escolas. E o acesso ao gás de cozinha, refrigeradores e energia para fazê-los funcionar. Parece fora de propósito, mas em um país com os índices de pobreza que apresentamos é preciso garantir o acesso aos alimentos em quantidade e qualidade necessários e também às formas de conservação e confecção das refeições.

Finalmente, não é possível pensar em saúde pública sem resolver o gigantesco problema sanitário da maioria da população. Esgoto e lixo devem ser decididamente eliminados do meio ambiente, recolhidos seletivamente e tratados para diversos fins de reciclagem. Em particular o lixo orgânico e o lodo de esgoto devem ser compostados e transformados em adubo para ser devolvido às áreas produtivas rurais.

A eliminação dos lixões e do lançamento de esgoto em natura em riachos, rios, lagos e mar terá um enorme efeito de correção da poluição de águas e solos e na produção de gases de efeito estufa. Mais uma vez, a saúde pública e o meio ambiente se cruzam como problema, mas também, potencialmente, como solução.

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