WikiFavelas: Mitos e engodos da favela-empreendedora

Alguns a reivindicam como potência periférica e contraponto aos estigmas de carência, mostra o Dicionário Marielle Franco. Mas ela instrumentaliza a precariedade — e substitui lutas coletivas e políticas sociais pela competição neoliberal

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O combate à pandemia consagrou a potência e a criatividade dos moradores das favelas e periferias, bandeiras defendidas pelos militantes desses territórios nas últimas décadas, recusando sua identificação exclusivamente pelas carências que, se bem existem e devam ser superadas, não são o núcleo definidor de suas identidades. O êxito das iniciativas de lideranças e moradores foram lastreadas na vivência de problemas comuns e na mobilização da solidariedade, que sempre se constituíram no maior recurso propulsor das ações coletivas nas periferias. Fazem parte desse cenário a emergência de inúmeros coletivos de jovens, reunidos em torno de manifestações político-culturais, que proliferaram mesmo diante da hegemonia do neoliberalismo e da difusão dos valores individualistas. O próprio uso do termo coletivos indica uma posição política voltada para o Comum e a solidariedade.

Chama atenção que a intensa organização nas periferias no combate à pandemia – mobilização de recursos, gestão territorial, comunicação e difusão de informações, produção de dados epidemiológicos – não tenha gerado maior investimento por parte dos partidos políticos, renovando suas práticas tradicionais de relação com as populações das favelas, em busca da construção de soluções de economia solidária e de inovações nas práticas e formas sociabilidade em torno do comum. Ao que parece, empresários de dentro e fora das favelas passaram a tratar esses territórios como uma boa oportunidade de expansão do mercado, propugnando as vantagens da busca de lucro como forma de melhoria da qualidade de vida daqueles contemplados com financiamentos para suas iniciativas empresariais.

Não se trata, no entanto, de uma questão simples, já que são reais as necessidades dos moradores por melhorias urbanas, acesso ao crédito, emprego e apoio a iniciativas inovadoras. Porém, embora sejam absolutamente necessários, os recursos que estão sendo canalizados para favelas e periferias não se destinam, na maior parte das vezes, à busca de soluções estruturais e coletivas que fortaleçam os laços solidários entre os moradores e sua identificação com a comunidade. Busca-se premiar aqueles indivíduos que se destacam e, por isso, têm o mérito para receber tal apoio. A noção de mérito, lógica subjacente ao empreendedorismo, tem como fundamento o individualismo possessivo e competitivo lastreado na suposição de uma racionalidade técnica que premia aqueles que demonstram maiores capacidades e habilidades. A premiação de acordo com critérios de qualificação decididos de forma hierárquica promove a exclusão e penalização daqueles que se sentem fracassados por não alcançarem tais ganhos. A falta de participação da população na definição dos critérios de alocação dos recursos deixa de incluir parâmetros de justiça social e emancipação, imprescindíveis para alterar a situação de dominação.

Como o verbete sobre Empreendedorismo Favelado, de Fernanda Pernasetti para o WikiFavelas, analisa, a meritocracia vai muito além da adoção de critérios para premiar aqueles que possuem habilidades e iniciativas, ele implica a adoção de valores que reforçam o próprio sistema de dominação que gera a exclusão das favelas e periferias.

A importância de discutir a ideologia do empreendedorismo é amplificada pela conjuntura eleitoral, na qual o debate político deveria estar bebendo da experiência das favelas e periferias para pensar a possibilidade de uma política do cotidiano, que valorize a construção de práticas comuns e solidárias, articulando as políticas públicas com as inovações que germinam nas periferias e precisam ser sustentáveis. No entanto, o que estamos observando é a contaminação da ideologia do empreendedorismo nos programas dos candidatos e a expansão da lógica mercantil da acumulação nos territórios das favelas. (Introdução e seleção: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco)

Empreendedorismo favelado

O empreendedorismo favelado, ou empreendedorismo de/em favelas, popularmente designa o fenômeno do empreendedorismo social focado em iniciativas e/ou lideranças vinculadas à realidade de favelas e periferias. Tal termo tem sido crescentemente debatido no Brasil e no mundo, tanto conceitualmente, a partir de pesquisas no campo das Ciências Sociais, quanto em termos de seus desdobramentos políticos e sociais, na grande mídia e nos diversos meios de comunicação.

Contra a lógica da carência, a visão das potências

Defensores dessa bandeira apostam na lógica do empreendedorismo como parte de um amplo esforço de ressignificação da imagem da favela como territórios de múltiplas potencialidades, em oposição ao senso comum que a associa à precariedade, tragédia e ausência de políticas públicas. Não obstante, os principais traços que demarcam ideologicamente as estratégias alavancadas por esses atores é a construção de espaços sobre o tema na grande mídia nacional e a realização de projetos e grandes eventos sobre empreendedorismo de favelas com o apoio de instituições financeiras, grandes empresas e investidores ligados ao grande capital.

Preto Zezé e Edu Lyra são empreendedores de favela e grandes entusiastas do conceito; eles têm colunas fixas, respectivamente, na Folha de São Paulo e no jornal O Globo. Ao mesmo tempo, diversos projetos de capacitação de empreendedores e a primeira Expo Favela (São Paulo/2022) – feira de negócios que teve empreendedores e startups de favelas como expositores – têm sido realizados a partir do financiamento de instituições como o Nubank, Grupo Carrefour Brasil, Gol, Ifood, Global Data Bank, etc. Cabe ressaltar que os dois patrocinadores masters do evento realizado em 2022 estiveram anteriormente ligados a episódios graves de violência racial[1] e racismo institucional[2], que repercutiram negativamente na opinião pública e motivaram retratação e ações de mitigação de danos à imagem dessas empresas.

Não obstante, na perspectiva de grupos de empreendedores de favela, que concebem e dinamizam essa rede em ascensão no cenário nacional, o apoio do setor privado ao empreendedorismo favelado é uma grande oportunidade de visibilizar as diversas iniciativas locais e colocá-las em contato com investidores do asfalto, visando superar o estigma da “carência”:

“A maior parte dos 17,1 milhões de moradores de favela no Brasil tem, tinha ou quer ter um negócio. Isso é o que apontou uma pesquisa do Data Favela que foi divulgada nesta sexta-feira, 15, na primeira edição da Expo Favela (…) A pesquisa demonstrou que 76% dos moradores de favela se enquadram nessa característica e 50% deles se consideram empreendedores. Quatro em cada dez moradores de comunidades (41%) têm um negócio próprio. ‘Isso mostra uma oportunidade gigantesca’, disse Renato Meirelles, fundador do Data Favela…” (Veja, 15 de abril de 2022)

Nomes como Celso Athayde (Expo Favela e Favela Holding), Preto Zezé (Central Única das Favelas – CUFA), Edu Lyra (Gerando Falcões) e Gilson Rodrigues (G10 das Favelas e G10Bank) são algumas das lideranças da sociedade civil organizada que defendem que as favelas e periferias são espaços de empreendedorismo por excelência, uma vez que seus moradores sempre precisaram “produzir a própria subsistência”, através das mais diversas ocupações e trabalhos.

“Engana-se quem ainda cai no lugar-comum da carência. Já provamos que somos potência em vários aspectos (…) Hoje falamos por nós mesmos, na nossa diversidade social, cultural, religiosa e política, nos representamos e manifestamos nossa existência. E, com múltiplas habilidades, produzimos um olhar sobre nós, sobre o mundo que nos cerca, e elaboramos nossa visão de sociedade. Rompemos a barreira do debate econômico, pois nesse feudo, só ‘especialistas’ falavam, mesmo com a favela gerando R$ 120 bilhões em poder de consumo, riqueza, por sua força de trabalho (…)” (Preto Zezé, “O encontro de dois Brasis”, Folha de São Paulo, 2 de abril de 2022)

Sai a luta por direitos coletivos, entra a competição econômica

De fato, é precisamente a partir desse enfoque na “riqueza da favela” que emergem as críticas com relação à formação de redes do chamado “empreendedorismo favelado”. Para alguns analistas, trata-se da emergência de uma narrativa da questão social da favela enquanto uma questão de mercado, perspectiva oposta à das lutas históricas por políticas públicas e garantia da cidadania nesses territórios. Para os críticos da bandeira do empreendedorismo em favelas, ao invés da luta pela garantia de direitos e da busca por mobilidade social via crescimento econômico e combate às desigualdades, a lógica do empreendedorismo promove uma reinvenção dos dispositivos neoliberais em torno do “homem empreendedor de si mesmo”, conceito de Michel Foucault reatualizado por autores como Dardot e Laval (2017), que responsabiliza o próprio indivíduo pela sua ascensão social.

“Tudo isso vem ocorrendo em um contexto de desmonte de políticas sociais e urbanas, de fortalecimento de políticas fundadas na competitividade das cidades que devem ser pensadas antes de tudo como empreendedoras de negócios (e as favelas, agora também)”. (Luiz César Ribeiro e Demóstenes Moraes).

A nova fronteira do empreendedorismo urbano

Como pano de fundo da emergência do empreendedorismo favelado, Colin McFarlane, na obra The Entrepreneurial Slum: Civil Society, Mobility and the Co-production of Urban Development (2012) aponta que, desde os anos 1980, a inclusão pelo mercado tem sido defendida como o meio de desenvolvimento urbano mais efetivo, em lugar de perspectivas de transformação política e econômica radical. Tal concepção celebra a prevalência dos “poucos” em lugar dos “muitos”, desdobrando-se num disciplinamento social e financeiro em que prevalece a lógica do “faça você mesmo”, enquanto, politicamente, exaltam-se formas de autogestão que transferem a responsabilidade do Estado para os grupos de base comunitária.

O empreendedorismo urbano é marcado pela competição agressiva por capitais entre cidades, pela crescente influência do setor privado na política urbana e pela implementação de políticas fiscais que deixaram de ser focadas na distribuição e no investimento público para focar-se na redução de taxas que permitam que os empreendedores (businessmen) aumentem suas margens de lucro. Essa lógica tem historicamente desembocado num crescente marketing urbano; em planos de renovação de distritos, zonas portuárias e regiões degradadas; na disputa entre cidades para sediarem grandes eventos mundiais; e na mobilidade de uma certa “classe criativa” entre os grandes centros urbanos. Entretanto, o principal produto do empreendedorismo urbano são as políticas de desalojamento e despossessão violenta dos pobres, “inservíveis” e inadequados – o que se manifesta na proliferação de enclaves, guetos, e de processos de gentrificação.

“O outro lado deste dispositivo neoliberal são as narrativas e políticas que criminalizam os movimentos sociais que lutam por direitos e silenciam os contestadores da ordem urbana excludente que buscam evidenciar a formação de uma crise urbana estrutural, com o colapso da função da cidade na provisão das condições ligadas às necessidades de reprodução da vida biológica, social e individual, afetando mais severamente as condições de vida nas favelas e outros assentamentos precários nas cidades” (Luiz César Ribeiro e Demóstenes Moraes)

Em paralelo a isso, McFarlane identifica que as favelas (ou assentamentos urbanos informais) não são espaços excluídos das estratégias de empreendedorismo, mas têm se transformado, cada vez mais, numa fronteira chave da produção do empreendedorismo urbano contemporâneo. Segundo ele, ao destacar o potencial dos favelados e faveladas como sujeitos empreendedores, o empreendedorismo de favelas está renomeando a pobreza enquanto capital social e econômico.

Um outro nome para “informalidade”

De fato, segundo uma das maiores referências da sociologia brasileira nos estudos de favelas e periferias, Luiz Antonio Machado da Silva (2002), a noção de empreendedorismo/empregabilidade emerge, a partir da crise dos anos 80, como um substituto do conceito de informalidade.

Desde os anos 1960 havia-se consolidado um debate mais ou menos estruturado em torno da ideia de informalidade que, em linhas muito gerais, denotava o outro lado da sociedade salarial, ou seja, as dificuldades e distorções do assalariamento, muito pouco generalizado nas sociedades latino-americanas. Tendo a integração social como problemática de fundo, tal conceito do mundo do trabalho estava intrinsecamente vinculado a discussões em torno da modernização e da produção do desenvolvimento. A partir dos anos 1980, no entanto, a retração econômica, a reestruturação produtiva, a terceirização e a retórica de redução do Estado que acompanharam a expansão da globalização (e a ascensão do neoliberalismo) afetaram o mundo do trabalho trazendo o desemprego para o centro da agenda política no Brasil e no mundo.

Para Machado, o esvaziamento do conteúdo da informalidade operou mudanças na dimensão cognitiva do conceito, que perdeu força analítica e se esgotou, sendo progressivamente substituído pela noção de empregabilidade/empreendedorismo. Segundo ele, o empreendedorismo é um modo de exploração capitalista e de dominação do mundo do trabalho que busca reconstruir uma cultura do trabalho adaptada ao desemprego, ao risco e à insegurança. Uma ideia, portanto, que serve para adequar a visão do trabalho aos novos modos de exploração capitalista baseados na individualização e na subjetivação dos controles que organizam não apenas a produção material, mas a vida social.

Referências

Colunas de Preto Zezé na Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/preto-zeze/2022/04/o-encontro-de-dois-brasis.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/preto-zeze/2022/04/um-encontro-de-negocios-entre-a-favela-e-o-asfalto.shtml

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Boitempo editorial, 2017.

MACHADO, Luiz Antônio. Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a dominação no mundo do trabalho). Caderno CRH, v. 15, n. 37, 2002.

MCFARLANE, Colin. The entrepreneurial slum: Civil society, mobility and the co-production of urban development. Urban Studies, v. 49, n. 13, p. 2795-2816, 2012.

RIBEIRO, Luiz César e MORAES, Demóstenes. A Nova Razão da Favela: da cidadania ao empreendedorismo, Observatório das Metrópoles: artigos semanais, 21 de abril de 2022.

  1.  https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/11/20/homem-negro-e-espancado-ate-a-morte-em-supermercado-do-grupo-carrefour-em-porto-alegre.ghtml
  2.  https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/10/21/nubank-vai-de-queridinho-a-acusado-de-racismo-apos-fala-de-cofundadora.ghtml
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