Fundeb: governo prepara armadilha ao ensino básico

Prestes a encerrar-se, nova proposta para Fundo visa aumentar contribuição da União em até 40%. Mas movimentos pela educação denunciam cilada: em troca, acabará com programas de alimentação, transporte e material escolar

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Por Viviane Tavares, na EPSJV/Fiocruz

Com a ameaça de encerramento neste ano, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) segue em disputa. Dentre as propostas apresentadas na Câmara e no Senado, a que tem a tramitação mais avançada é a PEC 15/2015, que entraria em nova discussão nesta última quarta-feira (4/3) na Comissão Especial do Fundeb na Câmara, sob a relatoria da deputada Professora Dorinha (DEM-TO), mas foi adiada. A agitação em torno da pauta foi retomada desde quando a parlamentar apresentou o novo relatório no dia 18 de fevereiro e ratificou nesta semana com mudanças em questões que já haviam sido acordadas entre movimentos sociais ligados à educação e parlamentares. Entre elas, estão a porcentagem da participação do governo federal no financiamento e a utilização dos recursos do Salário-Educação para complementar o aporte ao Fundo.

Esse cenário de preocupação e urgência se deve à magnitude do que o Fundo é capaz de dar suporte. Atualmente, ele financia a matrícula de 40 milhões de brasileiros. Para se ter uma ideia, de acordo com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 60% dos gastos com educação básica são financiados pelo Fundeb. Entre eles, salário dos professores e despesas do espaço escolar.
O Fundeb entrou em vigor em 2007, por meio da Emenda Constitucional 53, e agrega um conjunto de 27 fundos (26 estaduais e 1 do Distrito Federal) que serve como mecanismo de redistribuição de recursos destinados à Educação Básica (creches, Pré-escola, Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, educação profissionale Jovens e Adultos). É uma espécie de conta bancária coletiva na qual entram recursos de impostos estaduais e municipais e esse total é redistribuído de acordo com uma série de regras e o número de estudantes. A partir daí, estabelece-se um valor mínimo e, caso não consegue atingi-lo, o estado recebe recurso complementar da União. Em 2020, nove estados estão recebendo esse apoio: Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco e Piauí.

Por conta das mudanças anunciadas no último mês, a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) publicou uma nota técnica em que pontua os avanços a serem ainda enfrentados como, por exemplo, a proteção do conjunto de recursos da educação pública superando obstáculos à promoção de maior justiça federativa e o fortalecimento da educação básica garantindo que os recursos públicos só financiem as redes públicas. “Sublinha-se que uma complementação da União ao Fundeb no patamar de 40% dos recursos estaduais e municipais, sem lançar mão de nenhum centavo do salário-educação, representaria, de fato, um passo decisivo na promoção da democratização da educação básica em termos de acesso e garantia de condições de oferta de qualidade. Uma democratização que se estenderia a todo o território nacional, atendendo aos princípios da justiça federativa, em um país ainda marcado por profundas desigualdades territoriais, as quais são fortes obstáculos à superação de outros recortes inaceitáveis da desigualdade, resultantes da alta concentração de renda e de tributos que consolida historicamente a negação do direito de todos à educação”, diz a nota. Outras movimentos relacionados à pauta da educação,como a da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e da União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (Undime), também se manifestaram.

Novo Fundeb, mudanças com retrocessos

O novo texto da PEC 15/15 propõe uma complementação da União de, no mínimo, 20% do total de recursos de contribuição dos estados e municípios. Na versão anterior do relatório, resultado de um acordo com entidades do campo da educação e outros parlamentares que estão pautando o tema, chegava-se a 40% Atualmente esse aporte é de 10%. De acordo com a nota do Fineduca, a diferença entre 20% e 40% atingiria essencialmente a abrangência que o Fundo alcançaria. O valor menor, segundo a projeção, alcançaria metade dos municípios, refletindo em um aumento de 40% o quantitativo de professores e estudantes que seriam afetados pela redistribuição. Já com a complementação almejada pelos movimentos, cerca 80% das prefeituras do país estariam cobertas com o Fundo, com uma média de valor por aluno anual 26% superior. Esse montante, como informa a nota técnica, reduziria ainda em 60% a distância entre o maior e o menor valor aluno, ficando em 3,7 vezes com aporte de 40% contra 4,7 vezes com a complementação de 20%.

Para a presidenta da Fineduca e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Nalu Farenzena, a proposta dos 40% foi resultado de um debate longo e fundamentado durante toda a tramitação da PEC, referendada pelos representantes de vários estados e que não pode terminar assim. “A necessidade do recurso financeiro como defendemos na discussão era para que o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) fosse compatível com as metas do Plano Nacional de Educação, garantindo condições de acesso, permanência e padrões de qualidade na educação básica. Não é uma referência mágica, não foi estabelecida de forma aleatória. É  uma referência com base em estudos e previsões de anos que agora parlamentares e governo querem ignorar”.

O presidente da Undime da Região Nordeste, Alessio Costa Lima, também alerta sobre essa redução da participação da União impacta no enfrentamento da desigualdade educacional entre estados. “Defender a porcentagem de 40% é defender o avanço da educação. Precisamos superar as desigualdades educacionais que existem no país. Lutar por aumento de recursos da União para educação é uma questão de princípios. Parlamentares são eleitos para isso. Acredito que seja consenso que a educação pública tem que melhorar e o aumento de recurso é fundamental. Reivindicar isso é defender uma educação não excludente e mais justa”, diz.

Salário educação no Fundeb

Outra mudança trazida pelo novo relatório é que parte do Fundo seja composto pelo Salário-Educação, de onde são retirados recursos de programas que se enquadram como manutenção e desenvolvimento do ensino, como é o caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Programa Dinheiro Direto na Escola (PPDE) e do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
“É importante ressaltar que a alimentação escolar, que é uma das principais despesas pagas com o Salário-Educação, ficará sem recursos. Além de outros programas como de livro didático e transporte escolar. O entendimento da população é de que o repasse será duplicado porque sairá de 10% para 20%. Mas a realidade é que tirará de um lugar para enviar a outro. É um mecanismo de maquiagem. Não existem recursos novos”, avalia Alessio que acrescenta: “Não vamos desistir. Há muitos parlamentares compromissados com a educação na Comissão Especial do Fundeb. Certamente a relatora foi pressionada pelo Governo e teve que recuar. Se o projeto for à votação, ela mesma vota a favor dos 40%. Não é aceitável colocar em risco a alimentação escolar. Ninguém aprende sem comida, sem transporte e sem livro.”, avalia.

Procuramos a deputada professora Dorinha, que não pode conceder entrevista até o fechamento desta matéria. 

O Fineduca afirma, por sua vez, que a complementação da União usando esse recurso é artificial porque retira recursos de onde já existem para alocar no Fundeb. O cenário apontado pela Associação é de que, com isso, os 20%, na prática, cairiam para 15,8% no melhor dos cenários e 11,6% no pior. “Quando há uma transferência de recursos de um lugar para outro, algo fica descoberto. Precisamos criar fontes novas. As já existentes não estão dando conta. Nós já estamos em 2020 e faltam apenas quatro anos para cumprir as metas do Plano Nacional de Educação. Quando falamos sobre o valor de recurso e a forma que ele tem que se implementado pensamos no todo, inclusive na temporalidade do PNE e em suas metas. Não queremos que se repita o que aconteceu com o último [Plano] ,que ficou com diversas questões não cumpridas”, relata Nalu. 

Para levantar outras fontes de recurso, em entrevista à Revista Poli, o pesquisador José Marcelino, também da Fineduca, afirmou que a União gasta hoje 0,2% do PIB em educação, reconhecendo assim que é preciso ampliar significativamente o patamar de contribuição. “O esforço de cada ente federado tem que ser proporcional à sua participação na arrecadação”, diz, lembrando que o governo federal retém cerca de 56% de toda a arrecadação tributária do país. Pelos cálculos da Fineduca, o ideal seria que a União chegasse a investir pelo menos 1% do PIB na educação básica.

Meritocracia na educação

Dos 20% de participação da União, a proposta aponta que 10% continuariam como estão. Mas há duas mudanças significativas: Dos outros 10%,  7,5% será pelo VAAT (Valor Aluno Ano Total), que leva em conta toda a arrecadação do município ou do estado para definir quais precisarão receber a complementação – dando chance a mais municípios mais pobres de estados mais assistidos serem contemplados –  e 2,5% desse recurso será para o recurso por desempenho.

De acordo tanto com a nota da Campanha quanto do Fineduca, esse também é um dos pontos a serem enfrentados. Para os movimentos, esse é um dispositivo difícil de mensurar e pois não existem dados anuais de desempenho por município. O resultado pode ser de menor justiça federativa, prejudicando quem já tem indicadores baixos. “Diante de uma rede pública de educação básica de vultosas dimensões e de grande complexidade, é muito difícil vislumbrar a definição de critérios e de indicadores e a operacionalização de sistemas de registro que indicaria ’melhoria’ e ’evolução significativa’. Para a avaliação de resultados das redes públicas de ensino, seria muito mais profícuo investir no fortalecimento das instâncias de controle interno e externo dos poderes públicos e no controle social, instrumentos já existentes e com potencial de atuação mais capilarizada no território nacional”, avalia a nota do Fineduca.

Já a Undime sinaliza que isso distorce o princípio fundante do Fundeb, que é um mecanismo de redistribuição de recursos para assegurar as condições básicas de funcionamento da educação e valorização do magistério. “Atrelar a um mecanismo de desempenho é perverso, pois vai acabar favorecendo aqueles que historicamente têm mais recursos. Se o Governo quer lançar programas meritocráticos, pode fazer com verbas adicionais, não com as que já têm fim e são necessárias”, avalia Alessio.

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