Frigoríficos, ainda mais inseguros?
Um dos responsáveis pela interiorização da covid no país, setor é recordista em acidentes de trabalho: quase 23 mil por ano. Agora, quer modificar CLT para restringir pausas de “recuperação térmica”, essenciais à saúde dos trabalhadores
Publicado 19/04/2021 às 19:13
Por Carlos Juliano Barros, na Repórter Brasil
Em meio à pandemia que já tirou a vida de mais de 350 mil
brasileiros, o governo do presidente Jair Bolsonaro, o Congresso
Nacional e a indústria da carne vêm articulando uma revisão das leis e
normas que regulam o trabalho nos frigoríficos. Se as mudanças forem
implantadas, elas podem colocar em risco a saúde e a integridade física
de cerca de 538 mil empregados de plantas de abates de todo o país,
avaliam sindicatos e procuradores do Ministério Público do Trabalho.
A articulação para alterar o marco regulatório do trabalho em
frigoríficos se dá em duas frentes. A primeira delas visa a modificar o
artigo 253 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
A atual redação estabelece pausas de 20 minutos a cada uma 1h40 de
trabalho para possibilitar a chamada “recuperação térmica” do corpo. Mas
um projeto de lei (PL 2.363/2011) em discussão na Câmara dos Deputados
propõe que os intervalos sejam garantidos apenas a empregados que
trabalham abaixo de 4°C ou movimentando cargas entre ambientes com
grande diferença de temperatura.
Essas situações, no entanto, se aplicam a apenas 5% do quadro de
funcionários de uma planta industrial, segundo nota técnica do MPT
contrária à mudança. “Isto equivale dizer que cerca de 95% dos
trabalhadores em frigoríficos de todo o país teriam seu direito
fundamental à saúde restringido”, afirma o documento.
Já a segunda frente de atuação é a revisão da Norma Regulamentadora
(NR) 36 – um conjunto de regras estabelecido pelo governo federal para
orientar o trabalho em plantas de abate de animais, que também preconiza
pausas de 10 minutos para evitar acidentes e atenuar doenças
ocupacionais. No final de 2020, o governo federal abriu uma consulta
para colher sugestões de mudanças da norma — uma nova versão deve ser
publicada no primeiro semestre deste ano.
“Se a proteção for esvaziada, nós vamos constatar um grande número de
lesionados e mutilados. Não temos dúvidas disso”, afirma Célio Elias,
dirigente da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação
de Santa Catarina, um importante pólo produtor de carne de frango.
“É inconcebível que na pior crise sanitária da história, em que os trabalhadores dos frigoríficos, qualificados como essenciais e que continuaram normalmente seu labor para garantir alimentos à sociedade, tenham retirados quaisquer direitos relacionados à saúde e à segurança no trabalho”, afirma Lincoln Cordeiro, procurador do MPT.
O setor foi um dos principais responsáveis pela disseminação do coronavírus em cidades de médio porte e em aldeias no Mato Grosso do Sul, segundo estudo do Ipea. É o caso de São Miguel do Guaporé (RO), onde a JBS – maior produtora de proteína animal do mundo – foi condenada em março a pagar uma indenização de R$ 20 milhões. A decisão de primeira instância, e da qual a companhia ainda pode recorrer, foi motivada pelo fato de a empresa expor trabalhadores ao vírus da covid-19 em um frigorífico sem o devido distanciamento social e equipamentos de proteção individual.
Em julho do ano passado, o MPT já havia solicitado a paralisação das atividades de 11 abatedouros, espalhados por seis estados, com o objetivo de conter a disseminação do coronavírus.
Setor campeão de acidentes e doenças
Trabalhar em frigoríficos é reconhecidamente uma atividade penosa. As
baixas temperaturas, os movimentos intensos e repetitivos, assim como o
contato com facas, serras e outros instrumentos cortantes, expõem
cotidianamente os funcionários a acidentes e doenças ocupacionais – como
tendinites e dores lombares.
Segundo dados da última edição do Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho, relativos a 2019, o número de ocorrências nas linhas de abates de frangos, bovinos e suínos chegou a quase 23 mil – uma média de 62 registros para cada dia do ano.
Os pedidos de afastamentos do trabalho também colocam os frigoríficos entre os dez principais segmentos econômicos – e o único da indústria – que mais demandam benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, entre 2012 e 2018.
As atividades de abate de frangos e suínos e de bovinos geraram,
somadas, mais de 31 mil benefícios concedidos por problemas de saúde
comprovadamente ligados ao ambiente de trabalho. Já os benefícios não
necessariamente motivados pela atividade em frigoríficos superaram 145
mil. As informações são da plataforma SmartLab, um banco de dados
organizado pelo MPT e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT),
com base nos dados do INSS.
“Há estudos apontando que o trabalho contínuo em ambiente frio
deteriora os músculos e o funcionamento neural”, explica Lincoln
Cordeiro. “A exposição ao ar frio também causa alterações inflamatórias
nas vias aéreas e piora da função respiratória”, complementa o
procurador.
A Repórter Brasil questionou a Secretaria de
Trabalho do Ministério da Economia e a Associação Brasileira de Proteína
Animal (ABPA), entidade que representa a indústria de carne de frango e
de porco do país, sobre os pontos específicos que deveriam ser
alterados na norma regulamentadora.
As notas de respostas enviadas por ambas as assessorias de imprensa não entram em detalhes e usam as mesmas expressões para explicar o objetivo da iniciativa: “simplificar, harmonizar e desburocratizar”. Leia a íntegra das duas aqui.
A Secretaria de Trabalho diz que “é inegável que a NR-36 é um marco da proteção dos trabalhadores nos frigoríficos e foi fundamental para as melhorias das condições de segurança e saúde nesse ambiente de trabalho nos últimos anos. No entanto, é preciso buscar sempre melhorias”.
A ABPA, por sua vez, afirma que a revisão da NR 36 é necessária “em
razão do avanço das tecnologias produtivas” e que “o trabalho se pauta,
essencialmente, pela constante melhoria das condições de segurança e
saúde de todos os trabalhadores”. A entidade também se pronunciou sobre o
PL que altera o artigo 253 da CLT. “O que se propõe é a alteração de
uma legislação que tem mais de 75 anos e já não mais reflete a realidade
dos dias atuais. A ideia é modernizar e nos adaptarmos aos padrões
global”, diz a nota.
A ABPA também afirma que as pausas para recuperação térmica previstas
na CLT são “rígidas” – acontecem necessariamente três vezes ao dia, por
20 minutos – e demandam que os funcionários saiam “do ambiente da
instalação física”. A nota diz ainda que os trabalhadores seguirão
contando com intervalos “flexíveis”, totalizando 60 minutos por dia, mas
sem a necessidade de deixar os locais artificialmente frios.
Já a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), que congrega os frigoríficos de abate de bovinos, não quis se manifestar.
A ligação com a destruição ambiental
A revisão da proteção trabalhista em em frigoríficos acontece em um
momento em que as exportações de carne do Brasil vêm sendo colocadas em
xeque no mundo todo – sobretudo, na Europa, por estarem ligadas à
destruição de florestas nativas. Sob o governo de Jair Bolsonaro, os
índices de desmatamento ilegal de biomas sensíveis explodiram.
Só na Amazônia, o ano passado registrou 8 mil quilômetros quadrados
de floresta derrubados, uma área equivalente a cinco municípios de São
Paulo. O número, o maior da última década, representa um incremento de
preocupantes 30% em relação a 2019. Os dados foram compilados pelo
Sistema de Alerta de Desmatamento do Imazon, que processa imagens de
satélites. A criação de gado para corte é apontada por ambientalistas
como o principal vetor da devastação.
Inclusive, essa é uma das justificativas que líderes europeus vêm
apresentando para explicar a demora da ratificação do acordo de abertura
comercial entre Mercosul e União Europeia, negociado ao longo das
últimas duas décadas. Se aprovado, o tratado vai ampliar
significativamente as vendas de carne brasileira. Líder global em
exportação de carne bovina e de frango, o Brasil bateu recordes em 2020 –
as vendas alcançaram US$ 17 bilhões.
“Assim como na agenda ambiental, não podemos compactuar com retrocessos no âmbito trabalhista”, finaliza o procurador Lincoln Cordeiro.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil