Escola: a luta inglória contra o celular

Que o uso irrestrito dos smartphones dessocializa, desconcentra e embota a criatividade, já se sabe. Escolas buscam saídas. Mas sociedades submissas ao consumo e individualismo parecem incapazes de regular a relação entre as crianças e as telas

Foto: Maskot/Getty Images/CNN
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Em janeiro, Emilia, de 12 anos, ganhou seu primeiro celular, um jurássico iPhone 7 com acesso apenas ao SnapChat, aplicativo de troca de conteúdo multimídia, popular entre adolescentes. Ainda assim, seus pais deixaram claro que ela só poderia usá-lo para conversar com as amigas. E ponto final. Duas semanas mais tarde, a escola pública onde Emilia estuda, a School of the Future, no bairro Gramercy Park, em Nova York, introduziu uma nova medida: o uso de pochetes da marca Yondr, cujo fecho magnético lacra os celulares dos alunos durante as horas de aula. “Ao chegar de manhã, os alunos desligam seus aparelhos e os colocam dentro dessas pochetes, que ficam com os estudantes o tempo todo, sempre fechadas. Só são abertas por uma agente da escola quando eles vão embora para casa, à tardinha”, conta a consultora de impacto social Tiffany Kearney, mãe de Emilia.

A School of the Future, onde estudam 735 alunos, tomou essa decisão sem consultar os pais, segundo Kearney. A diretora da escola, Stacy Goldstein, enviou uma carta às famílias, em inglês, espanhol e chinês, explicando a razão da iniciativa e como seria a nova rotina. A carta dizia: “Estamos comprometidos em manter uma experiência de conexão no dia a dia da escola, livre da pressão das mídias sociais. E, de acordo com nossa experiência, o uso prejudicial e problemático do telefone costuma acontecer na hora do almoço. Queremos que nossos alunos socializem sem o telefone nessa hora e aprendam a expandir seu repertório sobre os modos de se conectar com os outros e fazer pausas mentais.” A medida foi inicialmente adotada para estudantes da sexta a oitava séries, mas em setembro, começo do novo ano letivo, passou a valer até a 12ª série.

A equipe da escola também fez duas reuniões por Zoom para mostrar aos pais como a pochete funciona e informou que, caso eles precisem falar urgentemente com os filhos, podem ligar para o telefone fixo da escola ou para os celulares dos diretores. “Somente um pequeno grupo de pais ficou decepcionado. A maioria abraçou a ideia”, diz Kearney. “Apenas o professor de ciências reclamou, porque os alunos não podem mais tirar fotos de seus experimentos” A escola observou, uma vez adotado o novo controle, que as crianças ficaram mais engajadas nas aulas e ocorreram menos conflitos entre elas.

Criada em 2014 na Califórnia por Graham Dugoni, um ex-jogador de futebol, a empresa Yondr tem feito parcerias com escolas, colônias de férias, creches, embaixadas e até artistas, como Bob Dylan e Madonna, que não querem que seus shows sejam gravados pelo público e almejam que todos estejam “presentes” nos shows. De acordo com Sarah Leader, porta-voz da empresa, 3 mil escolas de dezesseis países já adotaram a pochete. “Só nos Estados Unidos, ela é adotada em 2 mil distritos escolares, e estimamos um crescimento de 150% da demanda neste ano”, disse ela à piauí. Os distritos escolares, nos Estados Unidos, são responsáveis pela administração das escolas públicas de uma dada região. Cada pochete comprada por essas escolas custa entre 15 e 30 dólares (cerca de 75 a 150 reais), dependendo do número de produtos adquiridos. Agora, a Yondr se prepara para lançar a Home Tray, uma caixa especial para trancar os celulares em casa.

A pochete com fecho magnético para aprisionar celulares dos estudantes durante as aulas

A mudança na School of the Future não afetou muito Emilia, que está na oitava série e não tinha tanto apego assim ao celular. Mas vários de seus colegas se incomodaram. A adolescente confidencia que alguns deles colocam na pochete um celular velho e deixam o novo na mochila. Quando vão ao banheiro, aproveitam para usar o aparelho escondido (grande reclamação de professores, porque as crianças demoram a voltar para a sala de aula). Como o aparelho novo está na mochila, os estudantes fazem uso dele nos dias em que almoçam fora da escola (o que é permitido em alguns colégios nos Estados Unidos). “Na hora do almoço, nas lanchonetes da vizinhança da escola, as crianças passaram a se dividir claramente em dois grupos: as que têm celular e as que não têm. As primeiras voltam para a escola mais tarde”, diz Enrique Pujals, pai de Emilia, doutor em matemática pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro, e professor de graduação na Universidade da Cidade de Nova York.

Em casa, Kearney e Pujals regulam o tempo que Emilia fica diante das diversas telas – da tevê ao videogame. Mas é impossível bani-las por completo ao longo da semana: a escola usa o Google Education para deveres de casa, além de passar exercícios de língua estrangeira no aplicativo Duolingo. Emilia acessa ambos pelo tablet. “Esse é a maior fonte de conflitos nessa casa. Ela sempre pede mais cinco, dez minutos no iPad”, diz Kearney. “É uma negociação sem fim, mas uma batalha que vale a pena travar. Ela entende as razões dessa limitação, mas é preciso conversar olho no olho.” Pujals, o pai, reconhece: “Nós mesmos, os adultos, estamos dependentes do celular e acabamos sendo um mau exemplo às crianças.”

Os pais de Emilia e a School of the Future não estão sozinhos na luta contra as redes sociais. Em julho passado, uma reportagem do The Wall Street Journal mostrou que mais de duzentos distritos escolares entraram com ações judiciais nos Estados Unidos contra SnapChat, TikTok, YouTube e Meta, que é dona do Instagram, WhatsApp, Threads e Facebook. Os processos estão concentrados em um tribunal de Oakland, na Califórnia. Os distritos escolares alegam que professores e administradores têm desperdiçado recursos financeiros e tempo valioso lidando com situações como bullying virtual, aconselhamento de jovens viciados em aplicativos e criação de políticas do uso de mídia social.

O site k-12 Dive, dedicado à vida escolar, disse que a decisão do tribunal de Oakland sobre essas ações pode demorar anos. Apenas a Meta se manifestou, dizendo que remove postagens que celebram automutilação e suicídio e que está trabalhando com pais e especialistas para aprimorar a relação com adolescentes e suas famílias. Também correm processos isolados na Justiça, como o dos pais de uma adolescente que começou a frequentar o Instagram aos 12 anos e teve uma anorexia severa, e o da mãe de um menino de 16 anos que se matou com um tiro de revólver depois de postar vídeos de “roleta russa” no SnapChat.

No Brasil, onde discussões similares estão acontecendo, ocorreu no início de agosto uma decisão surpreendente da Prefeitura do Rio de Janeiro, proibindo o uso de celulares nas salas de aulas, exceto para fins pedagógicos e médicos. A decisão se baseou no Relatório de Monitoramento Global da Educação 2023, da Unesco, que sublinhou os danos causados pelos aparelhos à estabilidade emocional dos estudantes. “É preciso ter regras para essa nova realidade. Nossa medida busca criar hábitos, com um uso mais consciente e responsável da tecnologia”, diz Renan Ferreirinha, secretário municipal de Educação do Rio de Janeiro, à piauí. “Hoje, há um uso excessivo das redes sociais e vivemos numa pandemia de distrações. É necessário educar e apoiar as crianças para esse novo tempo. Nesse sentido, regras são fundamentais. Ficar no celular é comprovadamente prejudicial e atrapalha a concentração. Quando o aluno recebe uma notificação de aplicativo, é como se ele saísse da sala de aula. A escola é lugar de interagir com amigos. O celular deixa a criança isolada em sua própria tela.”

Enquanto alguns avançam para o futuro, outros ameaçam dar passos para trás. Em agosto, o governo do estado de São Paulo aventou a possibilidade de abolir os livros físicos nas escolas públicas e adotar apenas materiais digitais a partir da sexta série. Dessa forma, abriria mão do material didático aprovado pelo MEC, deixando 1,4 milhão de crianças sem as publicações. A decisão foi tomada sem considerar vários estudos técnicos que aconselham os livros físicos nem debater o assunto com professores e diretores de escolas. A reação à medida foi gigantesca, e o governo Tarcísio de Freitas precisou desistir da mudança.

Os próprios especialistas em tecnologia estão sendo obrigados a desenvolver armas para enfrentar o vício crescente em aparelhos tecnológicos. Além das pochetes Yondr, outro produto já se difundiu nos Estados Unidos, o Gabb Phone. Trata-se de um celular por meio do qual crianças e adolescentes podem conversar, enviar torpedos, tirar fotos, usar calculadora, checar a temperatura e até jogar xadrez, mas não conseguem instalar nenhum aplicativo de rede social. O Gabb possui aplicativos próprios, elaborados por engenheiros da empresa, além de GPS, para que as crianças possam ser localizadas pelos pais. Mesmo assim, os aplicativos precisam ser aprovados pelos pais antes de serem instalados. “A tecnologia é importante para as crianças e sabemos que elas vão agregá-la às suas vidas. Só precisamos treiná-las da mesma forma como usamos rodinhas na bicicleta antes de uma criança sair pedalando sozinha”, diz Lance Black, sócio fundador da Gabb, à piauí. “Queremos que as crianças usem tecnologia, e se conectem com amigos, pais e avós. Mas que façam isso por meia hora diária, e não por sete ou oito horas, rolando suas telas infinitamente.”

O Gabb Phone é um projeto de Stephen Dalby, ex-professor de adolescentes e pai de oito filhos. A empresa foi criada graças a um crowdfunding (que arrecadou 120 mil dólares) e deslanchou depois de uma injeção de 14 milhões de dólares do jogador de futebol americano Taysom Hill e do fundo de investimentos Sandlot Partners. Hoje, tem cerca de trezentos funcionários. Como não é uma companhia aberta, não revela o número de vendas. O Gabb Phone, com tecnologia Samsung, tem três modelos: o convencional (que custa 150 dólares), o Gabb Plus, recomendado para maiores de 13 anos (200 dólares) e o Gabb Watch (150 dólares). Os dois últimos estavam esgotados no fim de agosto tanto no site da empresa quanto na Amazon. Até o final do ano, a empresa lançará o Gabb 3, com preço ainda não definido. 

Black diz que as crianças americanas ganham o primeiro celular, em média, entre 10 e 11 anos. Aos 16 anos, 90% delas já têm um aparelho. “Sei que os pais não têm más intenções. Mas vejo muitos deles contarem, arrependidos, que a filha deixou de ser aquela menina doce para se transformar num zumbi”, diz. O empresário compara o vício em celulares com o do cigarro. “Nas décadas de 1950 e 1960, era muito bacana fumar, inclusive no avião. Mas de repente surgiram campanhas dizendo que o cigarro mata. Daqui a alguns anos, os pais vão se perguntar: ‘Como coloquei um smartphone deliberadamente nas mãos dos meus filhos?’”

Recentemente, a Gabb firmou uma parceria com a Sony e Warner para incluir músicas das duas gravadoras no aplicativo Gabb Music, cujos algoritmos deixam de fora canções que recorrem a palavrões e vocabulário violento ou falam de sexo explícito. “Não queremos ser uma polícia moral, mas apenas prover um lugar de segurança tecnológica às famílias”, diz Black. Ele ressalta que, mais que o aparelho, é o voto dos eleitores que pode evitar que a situação piore para as crianças, os jovens e as famílias. “Há deputados de diferentes estados americanos atuando contra as redes sociais. Em Montana, o governador já proibiu o TikTok. Agora, precisamos ver se ele conseguirá pôr a lei em prática. O importante é que a vontade para isso existe.”

Um comitê da Câmara dos Estados Unidos apura os possíveis riscos do TikTok, que é chinês, não apenas para as crianças, mas também para a segurança do país. O aplicativo tem 150 milhões de usuários nos Estados Unidos. Em abril passado, Jacob Stevens, de 13 anos, foi vítima do Desafio Benadryl, uma competição no TikTok em que os participantes eram desafiados a ingerir de 14 a 16 pílulas do antialérgico, o que supostamente provocaria alucinações. A façanha deveria ser filmada por amigos e postada na rede. O Benadryl é vendido em qualquer farmácia americana sem necessidade de receita médica, e sua bula indica a ingestão de no máximo seis pílulas por dia.

No dia do desafio, Stevens estava em seu quarto com amigos que filmaram tudo: em vez de alucinação, ele teve uma convulsão, foi levado a um hospital e ficou entubado por seis dias. Os pais do adolescente foram obrigados a tomar a dolorosa decisão de desligar as máquinas que o mantinham vivo. Eles responsabilizaram o TikTok pela morte do filho, lembrando que, em 2020, o mesmo desafio já tinha tirado a vida de uma jovem de 15 anos.

Outra discussão que mobiliza a atenção nos Estados Unidos é a respeito da Lei de Proteção da Privacidade de Crianças Online (Coppa, na sigla em inglês), promulgada em 1998 e em vigor desde 2000. Essa lei determina que os sites e serviços online devem ter o consentimento dos pais para coletar e utilizar qualquer informação pessoal de crianças de até 13 anos. Agora, políticos e especialistas estão reivindicando que se eleve essa idade mínima para 16 anos.

A imprensa americana está inundada de matérias sobre as consequências deletérias das telas, relatando como o seu uso frequente tem afetado o ciclo de sono das crianças e dos adolescentes, prejudicado o rendimento escolar e causado miopia, redução da atividade física, isolamento, depressão, ansiedade, anorexia e bulimia. Isso sem falar no aumento de casos de bullying, por meios virtuais, e até de pedofilia e sequestro de crianças que começaram com um simples papo em algum chat.

“Os pais precisam pensar muito antes de entregar o primeiro celular ao filho. A tecnologia já é a maior forma de vício global. Vejo isso todos os dias, e o pior aspecto é a mudança que está ocasionando na mentalidade das crianças”, diz Ben Ballot, que há mais de seis anos leciona tecnologia e matemática na escola pública MS 442, chamada também School for Innovation, no Brooklyn. “As crianças se comparam com pessoas que elas veem nas redes sociais e passam a se achar menos bonitas ou mais gordas. Isso leva a problemas muito sérios.” Uma das funções de Ballot é ensinar os pequenos a usar a tecnologia com responsabilidade e cuidado, o que inclui desde aprender a enviar um e-mail até tomar consciência dos perigos de predadores online e como se proteger do cyberbullying.

Mesmo as estrelas de Hollywood andam preocupadas com as mídias sociais. Em julho, o ator Matthew McConaughey e sua mulher, a brasileira Camila Alves McConaughey, contaram que finalmente estavam deixando o filho, Levi – que completava 15 anos – abrir uma conta no Instagram. Na rede, Camila disse que, apesar de muitos amigos do filho já frequentarem as mídias sociais, o casal conseguiu segurar Levi até então. O pai completou em seu post: “Ele sabe quem ele é, sabe para onde está indo, e acredito que esteja apto a lidar com a plataforma. Ele tem boas histórias para contar. Vocês, seguidores, estão ganhando um jovem muito bacana e respeitoso. Espero que ele seja tratado da mesma forma.” Em três dias, Levi publicou apenas um post, mas obteve 177 mil seguidores. Em pouco mais de um mês, com seis posts, sobre surf e praias, os seguidores já haviam passado a 257 mil. McConaughey e sua mulher engrossam o coro do qual também fazem parte Penélope Cruz e Javier Bardem, que protegem suas duas crianças da mídia social, e devem saber que Bill Gates, o criador da Microsoft, limitou o tempo de uso do computador por sua filha em 45 minutos por dia e só deu um celular à menina quando ela fez 14 anos.

Outra atriz que se engajou nessa questão foi a britânica Kate Winslet. Ela decidiu fazer do vício nas redes sociais o tema do telefilme I Am Ruth, que estrelou e produziu. O filme é sobre uma mãe incapaz de se conectar com sua filha adolescente (vivida por Mia Threapleton Winslet, filha de Kate), sugada pela internet. “Queremos nossos filhos de volta”, disse ela na cerimônia de entrega dos prêmios da British Academy of Film and Television Arts, o Bafta. I Am Ruth foi premiado na categoria de drama, e Kate Winslet ganhou o prêmio de melhor atriz.

Ao mesmo tempo que se amplia nas escolas americanas a reação ao uso de celulares, instituições dedicadas ao assunto discutem como disseminar boas práticas, como a ONG Family Online Safety Institute (Instituto de Salvaguarda da Família Online) e a Common Sense Media, que começou classificando filmes por faixa etária a partir da opinião de pais, virou referência nacional e estendeu seus trabalhos para os sites da internet. Há também iniciativas no Instagram em que pais compartilham informações e dicas sobre os efeitos da mídia social na vida dos filhos, como Defend Young Minds, Protect Young Eyes (Defenda mentes jovens, proteja olhos jovens) e 1.000 Hours Outside (Mil horas ao ar livre).

No Facebook, um grupo intitulado Parenting in a Tech World (Ser pai e mãe num mundo tecnológico) reúne 387 mil pessoas desesperadas por informação sobre como lidar com o apego dos filhos aos produtos tecnológicos. Nas perguntas e respostas há diversas questões sobre os conteúdos dos chats do jogo Roblox, sobre a possibilidade de desabilitar o assistente virtual de voz Alexa depois de certa hora da noite (para o filho parar de pedir músicas ao aparelho) e sobre o aplicativo Bark, que monitora as atividades dos celulares e tablets dos filhos. Ao ler as respostas no Facebook, porém, um ponto fica claro: em termos digitais, os filhos estão sempre à frente dos pais. O que torna a batalha das famílias ainda mais difícil.

O sexo virtual, chamado sexting nos Estados Unidos, é outro tema do grupo do Facebook. Uma mãe contou, anonimamente, que descobriu que seu filho de 11 anos estava viciado em pornografia e perguntou ao grupo se havia formas de bloquear plataformas de sexo no iPad escolar. Outra mãe revelou que seu filho de 13 anos, apesar das suas tantas tarefas e do tratamento com um psicólogo, continuava praticando sexting. “Não quero ninguém se aproveitando do meu filho, porque ele está pensando com os genitais e não com a mente”, ela desabafou.

Ainda há o relato de uma mãe que alertou os pais do grupo para que bloqueassem a plataforma de jogos Gameforge, onde flagrou sua filha de 13 anos praticando sexting em um chat com um homem de 50 anos, que se passava por um jovem de 18 anos. A família contratou um detetive, que descobriu que o homem morava a cerca de uma hora de distância e deixara pegadas ao ligar para a menina e fazer o aliciamento online. Os pais registraram um boletim de ocorrência. “Felizmente, percebemos a tempo. Ela estava pronta para fugir de casa, por causa do controle que fazemos”, escreveu a mãe, que aconselhou a todos os pais a desligarem os modems à noite, bloquear jogos online e manter a tecnologia fora do quarto dos filhos.

Um dos movimentos de maior sucesso foi criado em Austin, a capital do Texas. Intitulado Wait Until 8th (Espere até a oitava série), ele estimula as famílias a se comprometerem a adiar até os 13 ou 14 anos a compra de um celular para o filho. Para facilitar a vida dos pais e mães, o site indica oito modelos de celulares destinados a crianças e adolescentes, com controle parental e programados principalmente para conversas telefônicas e o envio de textos, como o Gabb. Há também um guia para remover aplicativos do iPhone e links para diversas reportagens, incluindo uma do New York Times, de 2014, que revelou que os filhos de Steve Jobs, o criador da Apple, e de outros titãs do Vale do Silício não tinham aparelhos eletrônicos nem estavam autorizados por seus pais a usá-los.

“O Wait Until 8th me ajuda a sustentar a decisão de não interromper a infância dos meus filhos”, diz Sarah Pasternack, dona de uma microempresa de placas de anúncios, pintadas à mão, que mora em Kingston, a 60 km de Boston. Ela aderiu ao movimento há mais de um ano e não tem data prevista para comprar o primeiro smartphone para seus filhos Maura, de 12 anos, e Ian, de 10. Ambos têm iPads, mas só podem usá-los por tempo limitado. “Sei o tanto que eles deixam de viver ao ficarem parados olhando para uma tela”, afirma Pasternack. “Além disso, não precisam estar expostos ao bullying virtual nessa idade. Não há nada pior para uma adolescente do que ver fotos de uma festa para a qual ela não foi convidada.”

Pasternack se reveza com outras mães para levar seus filhos de carro até a escola. Antes, o trajeto era cheio de momentos divertidos, com conversas e cantoria. “Depois que as amigas da minha filha ganharam um celular, elas nem me cumprimentam mais, já entram no carro olhando para a tela”, conta a empresária. “A situação ficou constrangedora. Minha filha, que não tem celular, acha que foi deixada de lado.” A recompensa para Maura, segundo a mãe, é ouvir os adultos a elogiarem por ser tão articulada e prestar atenção nas conversas. “No fundo, Maura entende a minha decisão. Ela está se tornando uma menina incrível, justamente por não ter um aparelho o tempo todo nas mãos.”

Algo parecido ocorre com Ian, o filho mais novo. No começo do ano a família visitou o Universal Studios, na Flórida, e seu filho enfrentou as infindáveis filas do parque de diversões se distraindo com a leitura de um livro impresso. “Em restaurantes, adultos costumam entregar o celular para os filhos para poderem conversar com tranquilidade. Mas eu nunca dou o celular: entrego lápis de cor e, quando eles eram menores, também dava massinha para eles brincarem”, diz Pasternack. “Mais do que isso: é meu dever ensinar meus filhos a sentar direito, ser paciente e comer com modos.”

Desde maio passado, o Wait Until 8th subiu de 13 para 16 anos a idade recomendada para ingressar em mídia social. A mudança ocorreu depois que Vivek Murthy, que ocupa o cargo de cirurgião-geral dos Estados Unidos – chefe do serviço público de saúde e principal porta-voz do governo americano na área –, divulgou um relatório sobre uso de mídia social entre crianças e adolescentes e seus efeitos na redução de atividades essenciais à saúde, como dormir bem e fazer exercícios físicos. O documento apresentado por Murthy se baseou em diversos estudos e alertou que os jovens que passam mais de três horas por dia mergulhados em mídias sociais correm o dobro do risco de ter problemas de saúde mental, e também podem apresentar desconforto corporal, baixa autoestima e comportamento alimentar desordenado, especialmente as meninas. Uma pesquisa constatou que os adolescentes americanos passam três horas e meia nas redes sociais, diariamente.

O documento de Murthy também diz que, apesar de 13 anos ser a idade mínima estabelecida por lei para a frequentação de plataformas de mídia social, 40% das crianças entre 8 e 12 anos já fazem uso delas. Os adolescentes ouvidos pelas pesquisas que serviram de base ao documento apontaram os benefícios que julgam obter das redes sociais: eles se sentem conectados com os amigos, apoiados em momentos difíceis e mais à vontade para se expressarem criativamente. De fato, há casos de crianças e adolescentes que sofrem rejeição por causa de sua sexualidade ou raça, e encontram entendimento e acolhimento em grupos online. Por outro lado, o mesmo relatório apontou que 64% dos adolescentes são expostos a conteúdo baseado em ódio. Um terço ou mais das meninas de 11 a 15 anos se disseram “viciadas” em certas plataformas, e mais da metade dos adolescentes afirmou que seria difícil se desligar das redes sociais. Estudos com conclusões parecidas já foram divulgados pela Unicef e o Centers of Disease and Prevention (CDC), uma agência de saúde do governo americano.

A psicóloga Jean Twenge, professora da Universidade Estadual de San Diego, passou anos cruzando dados coletados em pesquisas com adolescentes feitas por instituições americanas (todas respondidas anonimamente, o que deixou os entrevistados mais à vontade para dizer a verdade) e chegou a esta conclusão: boa parte das atuais crises mentais de adolescentes – principalmente as meninas – são consequência direta do surgimento do celular e da mídia social. Ela analisou as pesquisas no livro iGen: Por Que as Crianças de Hoje Estão Crescendo Menos Rebeldes, Mais Tolerantes, Menos Felizes e Completamente Despreparadas para a Vida Adulta (lançado no Brasil pela nVersos).

Twenge observou que, em 2012, houve um aumento contínuo de sintomas clássicos de depressão entre as adolescentes, algumas delas admitindo se sentirem sozinhas e deixadas de lado, outras dizendo que não faziam nada direito ou não gostavam da vida. Na mesma época, ocorreu um aumento alarmante de casos de depressão, automutilação, infelicidade e suicídios. A pesquisadora constatou que, naquele ano, o uso de um smartphone (e não mais de um celular simples, sem internet) já havia se difundido entre a maior parte da população americana, como mostrou uma pesquisa, intitulada Internet & American Life Project, feita pelo think tank Pew Research Center, citada por Twenge.

Os problemas dos adolescentes continuaram depois de 2012 – o mesmo foi constatado nos 36 países onde o tema foi estudado. A partir de 2015, cerca de 80% dos adolescentes já se encontravam ativos nas redes sociais (em 2009 eram menos da metade). Ela ressalta que o convívio com amigos, um dos fatores cruciais para o bem-estar mental dos adolescentes, despencou com a chegada do smartphone e mudou a forma como as amizades são conduzidas. O segundo impacto do aparelho, aponta Twenge, foi a drástica redução nas horas de sono, um dos gatilhos da depressão. Num quarto escuro, a luz emitida pelo celular faz com que o cérebro pense que é dia e não produza melatonina, o hormônio do sono, em quantidade suficiente. Ela alerta também que, quando uma menina procura por “alimentação saudável” em alguma rede social, ela pode facilmente ser levada para páginas de anorexia e outros distúrbios alimentares.

Twenge nota que as estatísticas sobre o uso de smartphones e aplicativos não diferem muito entre os segmentos econômicos ou raciais. A grande diferença a considerar é entre meninos e meninas. Uma pesquisa feita pelo CDC, por exemplo, apontou que 60% das meninas americanas da 9ª à 12ª séries (entre 15 e 17 anos) apresentou em 2020 sentimentos de tristeza e desesperança, e quase 25% delas fizeram planos para se matar. Vale lembrar que essas informações foram coletadas no ano seguinte, o segundo da pandemia, quando adolescentes viviam isolados dos amigos e longe da escola.

Para a pesquisadora, as garotas são muito mais afetadas pelas redes sociais, pois tendem a comparar seus corpos com o de outras adolescentes na internet e a se isolar, ao passo que os meninos costumam ter experiências em grupos, como jogar videogames. Pesa nesse ponto a questão do controle. Num jogo online, um menino pode perder, ser debochado pelos amigos, mas tem a oportunidade de vencer na próxima etapa. Já o controle que uma menina tem sobre sua aparência é limitado.

Há, porém, quem discorde dessas teses. A psicóloga americana Lisa Damour, autora de Descomplicadas: Guiando Meninas Adolescentes pelas Sete Etapas até a Vida Adulta (da editora Rocco), acredita que o smartphone não é a principal razão da turbulência emocional dessa faixa etária. Autora também de Estresse e Ansiedade: Encarando a Epidemia nas Garotas (Primavera Editorial), Damour sublinha, porém, que a quantidade de informações instantâneas que chegam por vias digitais aos jovens entre 10 e 18 anos – seja do noticiário ou da atividade de amigos – é um forte componente de estresse. Damour diz que distúrbio de sono e suicídio estão interligados e, por isso, ela é mais uma a defender a urgência de tirar os telefones do quarto bem antes da hora de dormir – conselho que ela estende aos adultos.

Ações do governo americano com respeito às redes sociais começaram a surgir recentemente. Em junho passado, membros da Comissão de Justiça do Senado enviaram uma carta à Meta, pedindo que a empresa explicasse as deficiências na fiscalização da segurança infantil, como em seu aplicativo Instagram. Isso ocorreu após a publicação de uma reportagem do Wall Street Journal a respeito de um grupo de pesquisadores das universidades de Stanford e da Massachusetts Amherst que descobriu que o Instagram estava ajudando a conectar e promover uma vasta rede de contas que vendiam imagens para pedófilos, muitas vezes administradas pelas próprias crianças. Segundo o Wall Street Journal, a empresa reconheceu os problemas em sua fiscalização e prometeu melhorá-la.

“Estamos seriamente preocupados que o fracasso do Instagram em impedir esse uso perverso de seus algoritmos se deva não à falta de habilidade, mas de iniciativa e motivação”, escreveram os senadores à Meta. Eles também questionaram a razão de o Instagram não ter detectado o problema, e perguntaram sobre as medidas que a empresa está tomando para evitar que tais falhas se repitam e como a Meta responderá às denúncias de exploração sexual infantil.

Mark Zuckerberg, em 2018, na primeira grande arguição pública sobre as possíveis práticas nocivas de suas plataformas. (Foto: Saul Loeb/AFP)

Essa não foi a primeira vez que o governo americano ameaçou fritar os chefes das plataformas. Mark Zuckerberg, dono do Meta, já passou horas sendo questionado pelos políticos, acompanhado pela cobertura televisiva, ao vivo. O mesmo ocorreu com o empresário chinês Zhang Yiming, criador do TikTok, que pousou nos Estados Unidos em março deste ano para passar pela sabatina do Senado. Todos eles sabem desviar das perguntas dos senadores, mas têm consciência dos problemas que suas redes trazem aos jovens. A mulher de Zuckerberg, Priscilla Chan, sempre cobre o rosto das três filhas com emojis ao postar fotos da família no Facebook.

O presidente Joe Biden anunciou em fevereiro passado que seu governo, além de colocar uma lupa sobre a saúde mental dos jovens, pedirá apoio ao Congresso para proibir a publicidade online direcionada a crianças e jovens e exigirá transparência sobre os algoritmos das empresas de tecnologia e o modo como elas coletam dados pessoais. A forma como os estados americanos lidam com esse assunto varia, mas ele é um dos poucos que unem democratas e republicanos. Enquanto cada unidade da federação tenta criar suas regras, um bom exemplo surgiu na Califórnia, com a Lei do Código de Design Apropriado à Idade, assinada em setembro de 2022 e agendada para ser posta em prática em julho de 2024. Uma de suas exigências é que as plataformas usem opções de privacidade mais rigorosas para os menores de 18 anos. A repórter de tecnologia Natasha Singer, do New York Times, comparou essas medidas com as requeridas para um carro, no qual a criança só pode trafegar caso haja cinto de segurança e air bag.

Fora dos Estados Unidos também já foram implantadas medidas de controle das big techs e uso do celular. Em agosto de 2018, a França colocou em prática uma lei que proíbe o uso de celulares em escolas. Um sindicato de professores na Alemanha pediu que medida igual fosse adotada nas escolas do país, alegando que celulares nas mãos dos alunos são “uma fonte permanente de bullying”. O Reino Unido criou em 2020 o Código das Crianças (também chamado Código de Design Apropriado à Idade), um conjunto de leis que exige que as empresas na internet visem o melhor para os que têm menos de 18 anos, com rigoroso controle da privacidade e da segurança online. Com isso, o YouTube tornou as contas de jovens entre 13 e 17 anos no Reino Unido estritamente privadas, o que impede que seus vídeos se tornem públicos. Também removeu dessas contas a opção de autoplay, que leva à exibição automática de vídeos não selecionados pela pessoa, um após o outro. Ainda assim, em março deste ano, a 5 Rights Foundation, que zela pela segurança digital na infância, acusou o YouTube de violar o Código das Crianças, ao coletar dados e localização de usuários de menos de 13 anos.

Em 2020, o governo da Nova Zelândia lançou a campanha Keep it Real Online (Seja Honesto Online), cujo site contém dicas e conselhos sobre o mundo digital para pais, educadores e jovens. Como parte da iniciativa, um filme de um minuto mostra um casal de atores pornôs que toca a campainha de uma casa. A mãe, desavisada, abre a porta e fica sabendo pelos atores que seu filho os assiste no iPad, no Playstation, no computador, na tevê e até no celular dela mesma. O casal pornô lembra que seus vídeos são nocivos porque o menino ainda não tem idade para saber o que é um relacionamento afetivo, nem diferencia bem ficção de realidade. Ao final do vídeo, a mãe se dá conta de que está na hora de conversar com o filho – que aparece andando pela casa com seu laptop – sobre a diferença entre uma relação amorosa de verdade e o que acontece nos porões da internet.

Em julho deste ano, o Ministério da Educação holandês proibiu o uso de celulares e tablets nas escolas, lei que começa a valer em janeiro de 2024. O ministro holandês da Educação, Cultura e Ciência, Robbert Dijkgraaf, lembrou que há vários estudos provando que os celulares são nocivos ao aprendizado.

O crítico e ensaísta americano Jonathan Crary, em um relevante livro lançado há pouco no Brasil, chama a atenção para o fato de que os jovens estão tendo “suas juventudes roubadas”. Em Terra Arrasada – Além da Era Digital, Rumo a um Mundo Pós-Capitalista (Ubu Editora), ele escreve:

Hoje, o vulnerável mundo sensorial das crianças e dos adolescentes que habitam o complexo internético se apresenta esmagadoramente como um ambiente de estimulação viciante e de homogeneidade eletroluminescente. Quase todos estão condenados a escolas disfuncionais e em processo de deterioração que são cada vez mais inspiradas em prisões. Mais frequentes do que nunca, tiroteios em escolas se tornam um fardo adicional de ansiedade, medo e abandono. Os jovens são levados a considerar seus próprios pensamentos enfadonhos ou desprovidos de valor, e as plataformas corporativas os treinam para trocar entre si ou para exibir os atributos mais superficiais de suas individualidades. A espontaneidade desaparece em meio a imagens incessantes de violência, de uma pornografia apática, de crueldade e de zombaria.

Crary também alerta para o impacto que as mídias digitais podem representar para a própria vida em comum e a sociedade em geral:

As assimetrias esmagadoras de escala entre o indivíduo e as redes globais desfiguram todas as noções não quantificáveis de importância ou valor. Cada um de nós é diminuído pela veneração das estatísticas – seguidores, cliques, curtidas, toques, visualizações, compartilhamentos, dólares –, que, fabricadas ou não, são investidas constantes contra a confiança em si mesmo. Quando a disponibilidade de imagens e de informações é infinita, há uma dispersão fatal daquilo que poderíamos ter em comum e uma dissolução dos relacionamentos que viabilizam uma sociedade.

No Brasil, a atenção dos cidadãos e dos políticos está voltada principalmente para a regulação da internet com o objetivo de evitar a difusão de notícias falsas e ideias antidemocráticas. Um projeto de lei – o PL 2630/20 das Fake News, proposto originalmente pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE) – esteve perto de ser aprovado, mas o prosseguimento no Congresso fracassou, em boa parte devido a uma campanha feita pelas big techs, e os debates foram paralisados. Outro projeto proposto por Vieira, o PL 2628/22 contempla especificamente a segurança de crianças e adolescentes em ambientes digitais, obrigando as empresas de internet a ter mecanismos de controles dos pais e verificação etária rigorosa. Também responsabiliza as companhias por conteúdos que apresentem imagens ou representações de exploração ou abuso sexual com crianças e adolescentes, bem como de violência.

“Crianças e adolescentes representam 1/3 dos usuários de redes sociais e absolutamente todos os estudos apontam para danos graves ao seu desenvolvimento psicológico e emocional”, diz Vieira à piauí. Para ele, “o caminho é disciplinar o uso e garantir que as próprias empresas que lucram bilhões com tanto engajamento sejam parcialmente responsáveis pelo uso adequado da tecnologia.” O senador sabe que enfrentar o poderio das big techs não é fácil, mas acredita que a crescente percepção social da gravidade dessa situação e as tentativas em diversos países de regulação “geram um clima positivo para que uma legislação brasileira seja aprovada”.

Acontecimentos violentos ampliam a inquietude dos pais no Brasil, como o ocorrido em agosto passado, quando um homem de idade não revelada foi preso na Zona Leste de São Paulo acusado de estupro virtual de crianças e adolescentes na plataforma Discord. A polícia descobriu que o computador dele continha inúmeras imagens das vítimas. O episódio soma-se a diversos outros relatados neste ano pela imprensa, incluindo a investigação de um grupo de rapazes que, depois de estabelecer contato, também no Discord, com adolescentes de 13 a 16 anos de vários estados, as estuprou fisicamente.

 A pesquisadora e gestora Maria Mello, do Instituto Alana, ONG dedicada a promover políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes, diz que as big techs agem com perversidade com respeito à economia da atenção e lavam as mãos em relação aos pequenos. “Essas plataformas se recusam a admitir a presença infantil em suas redes e por isso não fazem nada para protegê-las”, afirma. Em uma reunião com o representante do Twitter para a América Latina, em espanhol (porque não há representante legal da empresa no Brasil), Mello perguntou sobre o número de crianças e adolescentes na plataforma e questionou a eficácia tanto de sua verificação etária quanto de sua moderação de conteúdos violentos. Segundo ela, a resposta do representante do Twitter foi esta: “Asseguramos que mais de 96% dos nossos usuários não são crianças e adolescentes.” Mello ficou chocada. “Eles não nos mostram provas, e não há nada no Brasil que obrigue essas plataformas a serem transparentes.”

Também o Discord não tinha representante no Brasil até o final de junho. “Como discutir com essas plataformas, se nem há uma pessoa que as represente no país?”, pergunta a pesquisadora. “Isso aumenta a nossa vulnerabilidade. Eles precisam admitir que discursos nocivos acontecem em suas redes, desacompanhados de qualquer tipo de preocupação.” O Telegram, por seu lado, substituiu a pessoa que o representava no Brasil por um escritório de advocacia, depois que o STF constatou que a plataforma postou mensagens para os seus usuários contra o Projeto de Lei das Fake News. Em abril, o Telegram foi suspenso temporariamente pela Justiça do Espírito Santo por se recusar a entregar informações sobre grupos neonazistas que agem na plataforma e poderiam estar relacionados a um atentado em uma escola daquele estado. Com a pressão da Justiça, o aplicativo forneceu as informações pedidas, e voltou a funcionar.

Mello alerta ainda para o fenômeno do “influenciador-mirim”, crianças e adolescentes que produzem vídeos para outras pessoas da sua faixa etária e muitas vezes são explorados em seu trabalho. O Instituto Alana tem recebido denúncias de infrações desse tipo, que são notificadas aos órgãos competentes, como o Ministério Público. “Mas, antes de fazermos isso, falamos com a empresa que divulga o produto ou patrocina a plataforma, questionando a prática e o envolvimento da criança. O dever de cuidado e a responsabilidade precisam ser das empresas.”

Segundo uma pesquisa feita pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), 92% das crianças e jovens brasileiros entre 9 e 17 anos já acessaram a internet, sendo que, destes, 96% acessam todos os dias ou quase diariamente. Na mesma faixa etária, 86% têm perfis em redes sociais, mas apenas 43% sempre ou quase sempre se preocupam com a privacidade online. Para 87%, ouvir música é a principal atividade, e 42% dos entrevistados jogam videogames todos os dias ou quase diariamente. Em relação aos pais, 93% afirmaram que estabelecem regras para o uso dos celulares para as crianças entre 9 e 10 anos. Essa preocupação despenca para 54% dos pais, quando os filhos estão na faixa de 15 a 17 anos.

O pediatra e sanitarista carioca Daniel Becker, professor da UFRJ e colaborador da Unicef e da Organização Mundial da Saúde, diz que o Brasil é o segundo no ranking mundial em tempo de permanência em rede social, perdendo apenas para as Filipinas. “Como médicos, estamos assistindo a distúrbios mentais e emocionais sem precedentes. Sabemos que o TikTok é a rede preferida de crianças de 9 e 10 anos, idade em que nem se deveria permitir ter acesso às redes.” Ele conta que, em festas de aniversário, o TikTok está sendo usado como uma das brincadeiras principais para as crianças. “Quanto menos informados são os pais, maiores são os riscos de exposição das crianças.” Outra preocupação de Becker é com os jogos online, que “se tornaram uma mina de predadores, infiltrados nos chats”. Ele inclui, nesse tópico, os jogos Roblox e Fortnite. “Muitas crianças são levadas daí, por esses predadores, até a plataforma Discord, onde se tornam reféns virtuais”, diz.

O gaming disorder (distúrbio do jogo), ou a dependência de jogos online, foi incluído no CID-11, a nova Classificação Internacional de Doenças. “Mas sabemos que as mídias sociais, a pornografia e a nomofobia, ou seja, o medo de ficar sem celular, são igualmente nocivos”, afirma o professor gaúcho Ygor Corrêa, doutor em educação e fundador do curso Especialização em Dependências Tecnológicas, na Universidade de Caxias do Sul. Coautor do livro Educação e Tecnologias na Sociedade Digital (Whitebooks), ele promove cursos, palestras e grupos de apoio para pais. “Nosso papel é acolher e educar. Ninguém sugere medicação clínica.”

Corrêa divide o uso da tecnologia em três categorias. A primeira é o uso prático, que não afeta as atividades diárias ou os relacionamentos. A segunda é o uso excessivo, quando os adolescentes mostram baixo rendimento escolar ou desregulam a alimentação (comendo de frente para as telas, por exemplo). Nessa categoria, também entram adultos que passam muito tempo em jogos de azar ou pornografia, colocando de lado o parceiro e a família. A terceira categoria é a dependência. “São pessoas que passam oito horas diante das telas. Há casos na China de gente que usa fralda geriátrica para não precisar ir ao banheiro e abandonar os jogos ou sites que demandam interatividade.” Ele inclui nos casos de dependência as pessoas que maratonam frequentemente, durante horas, as séries exibidas por empresas de streaming.

No Brasil, há que se levar em conta ainda a situação de insegurança e desamparo de muitas pessoas e famílias. É o caso de Isabela (nome fictício) que, aos 13 anos, no Recife, submergiu na internet porque se sentia sozinha no dia a dia. A adolescente encontrou na rede grupos de jovens que dividiam as mesmas angústias e aprendeu a se cortar e a se queimar. Aluna de escola pública, suas notas continuavam boas, mas ela se tornou fisicamente violenta com as colegas. Aos 15 anos, passou por um aborto e, depois, cometeu duas tentativas de suicídio. Por intermédio de agentes sociais, Isabela se aproximou do Núcleo do Cuidado Humano da Universidade Federal Rural de Pernambuco e do psicólogo Hugo Monteiro Ferreira, dedicado à saúde mental de crianças e jovens. Hoje, aos 19 anos, ela se prepara para o Enem e trabalha como ativista do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Ferreira é autor do livro A Geração do Quarto (Editora Record), resultado de uma pesquisa que fez com jovens de 11 a 18 anos que passavam muito tempo em seus quartos, imersos no mundo digital. Ele concluiu que esses jovens têm uma característica comum: muita dificuldade para expressar seus sentimentos e uma forte carga de violência contra si e os outros. Não acontece só no Brasil. Ele conta que na Coreia do Sul o governo chegou a oferecer dinheiro para crianças e adolescentes saírem do quarto. No Japão, o fenômeno que combina isolamento e fobia social já tem nome: hikikomori. Essa condição ganhou inclusive status de doença, o que permite cobrar por políticas públicas para tratar a questão. Na Itália já existe, segundo Ferreira, uma associação de hikikomoris, e similares estão se implantando em Portugal, Bélgica, Espanha e França. “É preciso entrar no quarto do filho, entender o que ele está passando”, aconselha o psicólogo. “Só assim conseguimos tirá-lo de lá.”

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