Brasil: Os precarizados que alimentam a IA

Em desespero para escapar do desemprego, eles sustentam a tecnologia com microtrabalhos. Recebem menos que a média de outros países. E é a única fonte de renda para grande parte. Debate sobre ética e regulação vai além do viés algorítmico

Imagem publicada no site da Universidade Federal de Uberlândia
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Por Matheus Viana Braz, no DigLabour

Parece haver um consenso, nas universidades como entre os formuladores de políticas públicas, que a Inteligência Artificial (IA) deve ser regulada, sobretudo quando entramos no debate sobre seu enfoque ético. Proliferam-se no mundo todo discussões sobre requisitos éticos da IA, sobre melhores práticas e padrões técnicos, os quais cumpririam função norteadora na criação de ferramentas e mecanismos regulatórios sobre IA. No fim, as problematizações parecem culminar sempre na definição de princípios e diretrizes, como, por exemplo, justiça e injustiça, equidade, transparência, não-maleficência, privacidade e proteção de confidencialidade, responsabilidade jurídica etc. Diversos atores sociais estão envolvidos nesse campo, como instituições públicas, de pesquisa, empresas privadas, organizações do terceiro setor, os quais buscam postular diversos princípios éticos na IA.

Três questões têm destaque maior na literatura e foram discutidas em artigo publicado em 2021 por Antonio Casilli, intitulado “Qu’est-ce qu’une intelligence artificielle « réellement éthique?” (O que é uma Inteligência Artificial realmente ética?). Primeiro, permanece aberto o debate sobre a interpretação desses princípios e valores. A transparência, por exemplo, pode ser compreendida na perspectiva das recomendações da produção da IA em códigos abertos (open source), assim como sob a ótica da privacidade de dados e dos critérios de tomadas de decisões de sistemas automáticos. No âmbito global, destaco ainda a discussão sobre a falta de transparência acerca de quem são os principais financiadores que investem na IA globalmente.

Segundo, sobretudo no universo corporativo, proliferam-se códigos de ética e manuais de recomendação/boas práticas, de maneira que o problema da ética da IA é majoritariamente abordado pela via da correção de vieses algorítmicos, como se, em sua origem, se tratasse de um problema de ordem eminentemente técnica e tecnológica.

Terceiro, no debate público, predomina o imaginário futurístico e tecnodeterminista segundo o qual o desenvolvimento tecnológico, em especial no campo da IA, culminaria na substituição do trabalho humano por robôs. Por isso, a ética tende a ser tratada notadamente sob a alcunha dos “dilemas éticos”, como, por exemplo, no caso da parametrização e arbitragem moral de tecnologias inteligentes.

A maior parte das pesquisas sobre os impactos sociais, econômicos e políticos das IAs se concentra somente sobre desafios de suas implementações. Esse ponto é central e vai ao encontro dos imaginários hegemônicos sobre a IA, pois tais pesquisas parecem aceitar alguns pressupostos amplamente colocados em xeque por estudos críticos desse campo. Conforme menciona Casilli, supõe-se que toda tecnologia que se diz IA existe e que a IA funciona de forma automatizada. Além disso, supõe-se que ela já está desenvolvida e já funciona, como se o que estivesse impedindo sua escalabilidade fosse somente problemas de ordem técnica e ética.

Te convido a se distanciar desse imaginário hegemônico, para que possamos ampliar o debate sobre ética e regulação da IA, considerando suas formas concretas de produção, bem como trazendo a luz elementos essenciais de sua cadeia de suprimentos de dados, que permanecem às margens e são comumente desconhecidas pela população geral. Embora o debate ético da IA se concentre de maneira predominante sobre a análise dos impactos, riscos e benefícios de sua implementação, defendo que ele ainda carece de compreensões mais apuradas sobre o trabalho humano precário necessário para a produção da IA em âmbito global.

O que o microtrabalho tem a ver com a Inteligência Artificial?

Quando pensamos em produção massiva de dados, logo fazemos conexões com noções como deep learning, machine learning, redes neurais artificiais e nos remetemos a grandes companhias ou startups de tecnologia, onde trabalham analistas de dados, engenheiros de software e outros experts, cuja função é desenhar arquiteturas de dados capazes de automatizar soluções tecnológicas e gerar valor para seus acionistas. Dificilmente, contudo, nos questionamos sobre onde começa essa cadeia de produção e qual a origem desses dados. Essa é uma questão essencial, pois para que haja IA, há nessa cadeia produtiva uma multidão de trabalhadores precarizados, desconhecidos pela população geral.

O microtrabalho faz parte de nosso cotidiano e o fazemos em vários momentos. Por exemplo, quando você quer acessar algum site e surge uma caixa de diálogo (o famigerado reCAPTCHA) pedindo que confirme que não é um robô, por meio da transcrição das letras ou seleção de imagens que aparecem em sua tela, na verdade você está ajudando a Google a aperfeiçoar e treinar seus algoritmos de reconhecimento de imagens e de digitalização de livros. Ao comprovar que não somos robôs, fazemos microtarefas gratuitas para a empresa. Todavia, a demanda por microtrabalho é enorme e não poderia ser suprida somente de maneira gratuita. Eis que emerge, sobretudo a partir de 2005, o mercado de microtarefas em plataformas digitais, focado em atender à crescente necessidade de treinamentos de dados para IA, trabalho este feito por trabalhadores em todo o mundo.

São pessoas que passam horas por dia em suas casas realizando microtarefas por demanda, em plataformas digitais como Appen, Clickworker, Amazon Mechanical Turk, Microworkers etc. Os trabalhos têm como objetivo a geração e anotação de dados para o aprendizado de máquinas, assim como a verificação de saídas algorítmicas e a correção de falhas na automação. Em troca, elas recebem centavos de dólares ou reais após a realização e aprovação de cada microtarefa.

Na prática, não é necessário ser especialista em tecnologia para fazer esse trabalho, pois me remeto a microtarefas de baixa complexidade que envolvem, por exemplo, categorizar imagens, classificar publicidades, transcrever áudios e vídeos, avaliar anúncios, moderar conteúdos em mídias sociais, rotular pontos de interesse anatômicos, digitalizar documentos etc. Esse universo converge ainda com as plataformas de fazendas de cliques, cujo objetivo é gerar impulsionamento de mídias sociais, centrada no mercado de compra e venda de seguidores, curtidas, comentários e inscritos em mídias sociais como Instagram, Facebook, Youtube, TikTok, Kwai e Spotfy. Aqui, contamos com uma multidão de trabalhadores que, a partir da criação de centenas de contas falsas, passam horas de seus dias assistindo a vídeos, inscrevendo-se em canais, ouvindo músicas, compartilhando, curtindo, seguindo, votando etc.

De um lado, tais plataformas difundem seus serviços como oportunidades de renda-extra e inserção em um universo altamente cobiçado pela população geral: o universo da Inteligência Artificial. De outro, os trabalhadores realizam tais trabalhos sem quaisquer proteções sociais, trabalhistas, estão dispersos globalmente e o dinheiro obtido se incorpora como necessidade aos seus rendimentos. Mas quem são essas pessoas? Qual o lugar do Brasil nessa cadeia de produção? Quem são os brasileiros envolvidos nesse mercado? Em quais condições realizam esse trabalho? Quanto ganham? Por que recorrem às plataformas?

Essas foram algumas perguntas disparadoras que motivaram a realização de uma parceria entre o Laboratório de Trabalho, Saúde e Processos de Subjetivação (LATRAPS) e o Digital Platform Labour (DiPLab), grupos de pesquisa localizados no Brasil e França. A pesquisa foi coordenada por mim (Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG), Paola Tubaro (Centro de Pesquisa em Economia e Estatística – CREST) e Antonio Casilli (Instituto Politécnico de Paris – Telecom Paris). Fizemos entrevistas em profundidade com os trabalhadores, assim como coletamos dados a partir de um questionário aplicado a 477 brasileiros que atuam em uma plataforma chamada Microworkers. A escolha por essa plataforma se justifica pelo fato de contemplar variadas modalidades de microtrabalho.

Quem são os trabalhadores brasileiros por detrás da IA?

Mapeamos a existência de mais de 50 plataformas de microtrabalho em operação no Brasil. Quando comparados com outros países, os trabalhadores brasileiros nesse mercado são ligeiramente mais jovens, possuem níveis inferiores de escolaridade, porém se distinguem substancialmente por contarem com maior proporção de mulheres. Não encontramos a maioria de mulheres em nenhum outro país pesquisado por nosso laboratório, o que indica que possivelmente no Brasil estamos diante de um fenômeno singular. Dentre os 477 trabalhadores que responderam ao nosso questionário, os seguintes achados nos permitem caracterizar o microtrabalho em território nacional:

  • R$9,36 é o valor bruto ganho em média por hora nas plataformas.
  • R$581,71 é a média de rendimentos mensais dos trabalhadores nas plataformas;
  • 15 horas e 30 minutos é o tempo médio semanal dedicado às atividades remnueradas nas plataformas;
  • 33,5% tem como única fonte de renda as plataformas de microtrabalho;
  • 31,9% trabalham 7 dias por semana nas plataformas;
  • 38% estavam desempregados, sem atividade profissional ou na informalidade;
  • 44% dos trabalhadores possuem Ensino Superior Completo;
  • R$1866 é o rendimento médio mensal dos trabalhadores, contando com todas suas fontes de renda, o equivalente a 1,41 salário mínimo no Brasil. Esse valor é 31,5% inferior ao rendimento da população geral no Brasil (R$2727).
  • Dentre os trabalhadores que atuam na formalidade, 40,5% trabalham em tempo parcial;
  • 66% contam com uma quantidade mínima de dinheiro a ser obtida nas plataformas para o pagamento de suas contas;
  • As piores microtarefas envolvem moderação de conteúdos violentos e pornográficos em mídias sociais, assim como o treinamento de dados em tarefas consideradas “estranhas” (como tirar fotos de cocôs de cachorro em ambientes domésticos, para treinar dados de “robôs aspiradores”);
  • As principais queixas dos trabalhadores estão ligadas à incerteza, instabilidade, falta de transparência, insegurança, cansaço e falta de interação nas plataformas.

Constatamos, primeiro, que o microtrabalho está vinculado ao desemprego e à crescente informalização do trabalho no Brasil. Em um país onde 39 milhões de pessoas atuam na informalidade, diante de oportunidades de trabalho cada vez mais precárias, as plataformas apresentam-se como meio alternativo de rendimentos. Mais ainda, conforme aumenta-se a procura por microtrabalho, ocorre também a depreciação das remunerações nas plataformas.

As condições de trabalho são também assimétricas, quando consideradas as diferenças entre países do Norte e Sul Global (ou mundo majoritário). O valor/hora pago em média nas plataformas em países em desenvolvimento é US$4,43, contra US$1,80 no Brasil. No caso da Sama, empresa que fez parceria com a OpenIA para treinar os dados que subsidiaram o aprendizado de máquinas do ChatGPT, a média de pagamento aos trabalhadores quenianos variava entre US$ 1,32 e US$2 por hora, conforme revelado em reportagem na revista Time. Em outras palavras, quando falamos em microtrabalho, nos remetemos também a um processo de exploração de mão de obra barata, informal e periférica de empresas localizadas em países do Norte Global. Se os trabalhadores estão dispersos globalmente, as formas de controle e gestão sobre o trabalho permanecem bastante centralizadas, de maneira que a exploração euro-americana da divisão internacional do trabalho também se reproduz nesse mercado.

Pela inclusão do microtrabalho no debate sobre ética e regulação da IA

Apesar das promessas centradas na automação de processos e negócios, o desenvolvimento da IA depende substancialmente do trabalho humano para treinar e aperfeiçoar seus algoritmos. Com efeito, é fundamental que nos esforços regulatórios e nos debates sobre ética da IA, seja considerado o papel central do microtrabalho no âmbito da economia das plataformas e do desenvolvimento de tecnologias inteligentes.

As pesquisas feitas em nosso laboratório, no Brasil, levam a crer que nosso país ocupa uma posição essencial nessa cadeia humana global de suprimentos de dados, mediante a oferta de mão de obra barata em plataformas globais de microtarefas. Para além da formulação de códigos de ética voltados aos desafios e obstáculos da implementação da IA, compreendo que o debate sobre ética e regulação da IA deveria:

  • Contemplar o papel da força de trabalho mal remunerada, invisibilizada e explorada de países do Sul Global na cadeia de produção da IA, de maneira a reduzir desigualdades e assimetrias existentes;
  • Contemplar as distintas condições de trabalho as quais estão submetidos os trabalhadores em plataformas de microtarefas de treinamento de dados, sobretudo na América Latina;
  • Partir do pressuposto que o microtrabalho está imbricado em formas específicas de extração de valor da plataformização do trabalho e deve ser compreendido como elemento estrutural (e não conjuntural) de cadeias de produção mais amplas, globais, cujas condições de trabalho são geograficamente localizadas, embora regidas por países do Norte Global.

O debate sobre regulação da IA no Brasil tem crescido, embora ainda estejamos atrasados, quando comparados com outras localidades (como na Europa, por exemplo). A partir do  relatório publicado, ao explorar as condições de trabalho desses trabalhadores em território nacional, esperamos auxiliar formuladores de políticas públicas a compreenderem de modo mais profundo essa forma de trabalho. Uma vez que o microtrabalho no Brasil está intrincado com cadeias de suprimentos de dados globais, me parece que a regulação efetiva da IA e do trabalho informal nas plataformas não pode ser obtida sem que sejam problematizadas e colocadas em xeque essas redes de dependências globais.

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