Eis os médicos que o governo rejeita
Em meio à pior fase da pandemia e ao esgotamento dos hospitais, país desaproveita 15 mil profissionais estrangeiros, dispostos a trabalhar. Motivo: a negligência de Bolsonaro e a política xenófoba do Conselho Federal de Medicina
Publicado 06/04/2021 às 13:10
Por Diego Junqueira, na Repórter Brasil
“Procuramos médicos, mas está complicado encontrá-los”, diz Nivaldo
Antônio Ceron, diretor do Hospital São Sebastião, em Treze de Maio, no
interior de Santa Catarina. Ele conta que há momentos em que o hospital
não tem médicos nos plantões, mesmo com pacientes internados com
covid-19. “Nossa situação é bastante caótica”.
O desabafo do diretor hospitalar resume um problema vivido em outras
partes do Brasil. Enquanto o país atravessa o pior momento da pandemia,
gestores têm dificuldades para contratar médicos não só para UTIs, mas também para outros atendimentos da população, inclusive na linha de frente da pandemia.
Apesar disso, o país ignora os cerca 15 mil profissionais que vivem
no Brasil, mas não podem trabalhar porque se formaram no exterior e não
revalidaram o diploma. Eles poderiam ser uma solução para ao menos
aliviar o colapso do sistema de saúde, mas a alternativa esbarra no
corporativismo das entidades médicas e na lentidão do governo de Jair
Bolsonaro (sem partido).
A legislação permite que médicos com diploma estrangeiro trabalhem no
SUS por meio do Mais Médicos, programa criado em 2013 para garantir
profissionais nas periferias dos grandes centros e em cidades pequenas
do interior. Porém, o Ministério da Saúde não abre novas vagas para
esses profissionais desde maio de 2019. No ano passado, apenas cubanos
foram autorizados a voltar ao programa, com a reincorporação de 1.000
dos mais de 8.000 que trabalhavam até 2018 – quando Cuba suspendeu a
parceria, após Bolsonaro exigir a revalidação dos diplomas e a
contratação individual dos médicos.
Uma segunda alternativa seria a prova de revalidação dos diplomas, o
Revalida, mas o Ministério da Educação não realiza o exame completo
desde 2017. O último teste começou em dezembro de 2020, mas concluiu-se
apenas a primeira etapa (teórica) e não há data para a prova prática.
Uma lei de 2019 exige a aplicação a cada seis meses, o que nunca foi
cumprido.
Com a urgência da pandemia, prefeituras, governos estaduais e órgãos
como o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União
(DPU) passaram a recorrer à Justiça para que sejam autorizadas
contratações emergenciais desses profissionais. Mas o esforço tem sido
inútil, pois todas as decisões favoráveis caíram na segunda instância, a
pedido do Conselho Federal de Medicina e das entidades médicas
regionais, impedindo as contratações.
“Por que não lançar mão de profissionais habilitados que já estão no país, e que estão ociosos e disponíveis para começar de imediato? Enquanto isso, a população fica sem atendimento? É um contrassenso”, afirma Fábio de Oliveira, procurador regional substituto dos Direitos do Cidadão do MPF em Santa Catarina
Ele ajuizou ação contra o governo estadual e a União para que seja
zerada a fila de espera por UTI no estado – atualmente em 360 pessoas,
após mais de 250 morrerem esperando.
Ele questiona a lentidão do governo, já que a lei permite a contratação
de médicos sem o revalida por meio do Mais Médicos. “Há possibilidade
de a União entregar isso de maneira célere”, afirma, citando como
exemplo a contratação rápida de profissionais no Amazonas, em janeiro.
Médicos ligados a sindicatos e associações de especialistas disseram à Repórter Brasil que médicos com diploma estrangeiro não representam uma solução para a escassez de profissionais em UTIs, já que em geral estão no começo da carreira e não costumam ter experiência nessa especialidade. No entanto, alguns eventualmente podem ter experiência em UTI ou poderiam atuar em outras frentes da pandemia, como nos casos menos graves
O Ministério da Saúde lançou novo edital do Mais Médicos em março com
2.900 vagas, mas somente para profissionais formados no Brasil ou com
diploma revalidado. Em 2017, o programa chegou a ter 18.240 médicos, dos
quais 8.671 eram cubanos. Hoje, em meio a pandemia, são 15.370
profissionais. Ao todo o Brasil tem 500 mil médicos em atividade.
Para o procurador de Santa Catarina, o edital de março é um
“deboche”, já que prevê apenas 92 vagas para o estado. Ele calcula que
seriam necessários 296 profissionais. Oliveira critica também que os
novos médicos chegarão só na segunda quinzena de abril.
Procurado pela Repórter Brasil, o Ministério da Saúde disse que lançou editais do Mais Médicos tanto para prorrogar a adesão de profissionais que já estavam no programa como para contratar novos. A pasta diz que o último edital priorizou quem tem diploma brasileiro ou revalidado, pois os médicos com diploma estrangeiro “precisariam passar por análise de documentos de outros países, além de participar do Módulo de Acolhimento e Avaliação, o que levaria mais tempo para preencher as vagas”
O problema em priorizar os brasileiros é que os médicos com diploma
nacional costumam permanecer menos de 90 dias nos municípios de maior
vulnerabilidade, segundo diagnóstico do próprio Ministério da Saúde.
Pelas regras vigentes do programa, médicos com diploma brasileiro ou
diploma revalidado têm prioridade na seleção, seguido de médicos
brasileiros e estrangeiros formados no exterior e, por último, os
cubanos.
Sobre o pedido do MPF em Santa Catarina, a pasta disse que vai se manifestar à Justiça.
Mil currículos em 3 dias
Além de Santa Catarina, a Repórter Brasil identificou ações judiciais para facilitar e acelerar a contratação de médicos na pandemia em outros nove estados: Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Sergipe, Bahia, Acre, Pará, Amazonas e Roraima
Em São José do Norte, cidade gaúcha de 27 mil habitantes, uma unidade
de saúde criada no início da pandemia para atender casos de covid-19
está fechada por falta de profissionais. Os plantões do hospital
municipal também têm buracos na escala. Após a Justiça autorizar, em
março, a contratação de médicos sem diploma revalidado, a prefeitura
recebeu mais de mil currículos em três dias. Mas o Conselho Regional de
Medicina do Rio Grande do Sul cassou a contratação no tribunal de
segunda instância.
O Consórcio Nordeste, que auxilia os nove governadores da região,
tentou montar em 2020 uma brigada especial de médicos sem diploma
revalidado para que atuassem na atenção básica, com supervisão de outros
profissionais. Porém foi impedido pela Justiça, a pedido do Conselho
Federal de Medicina.
Thiago Campos, subsecretário de programas do consórcio, diz que a
região tem escassez de profissionais e que o quadro se agravou em 2021.
“O Nordeste tem o menor número de médicos por habitante do país”, diz.
Estados como Maranhão e Bahia decidiram iniciar seus próprios processos
de revalidação de diplomas estrangeiros.
No ano passado, a DPU em São Paulo também entrou com ação na Justiça
Federal para autorizar contratações emergenciais, mas a ação foi negada
após pedido do CFM.
Em Roraima, o Conselho Regional de Medicina impediu na Justiça a
contratação de médicos sem o revalida pelo governo estadual. Em outra
ação, a prefeitura de Boa Vista pediu que a União realizasse o Revalida,
já que o exame de 2020 não contemplou o município. A Justiça autorizou o
pedido, que deve ser atendido em 60 dias.
“A escassez de médicos na região Norte é bastante complicada,
precisamos principalmente de clínico geral e médicos especialistas.
Temos 20 vagas abertas que não conseguimos preencher”, diz o
procurador-geral do município, Flávio Grangeiro. Ele reclama também que
Boa Vista tinha 28 vagas do Mais Médicos até 2019, mas hoje possui
apenas 20.
O Conselho Federal de Medicina não respondeu aos contatos da Repórter Brasil. Já o presidente do conselho de Santa Catarina, Daniel Knabben Ortellado, disse que flexibilizar a norma pode colocar a saúde da população em risco. “É temerária e ilegal a contratação de profissionais que não se submeteram ao exame do Revalida”, já que não se pode garantir que os profissionais “possuem, de fato, conhecimento técnico médico”, afirma
O Ministério da Educação também não comentou o atraso na aplicação das provas do Revalida.
‘O Brasil está precisando’
A declaração do diretor do Hospital Treze de Maio foi incluída em uma
ação que um médico cubano moveu contra o Conselho Regional de Medicina
de Santa Catarina (CRM-SC). Luis José Fajardo Moreno, de 47 anos, pede à
Justiça que a entidade não exija a licença obrigatória para o exercício
da medicina nem a prova da revalidação do diploma, para que ele possa
atuar na rede de saúde estadual enquanto durar a pandemia.
Moreno é pediatra e tem 21 anos de profissão. Trabalhou por oito anos
como voluntário da organização Médicos Sem Fronteira, quando realizou
cursos de atendimento em emergência e UTI, e depois veio ao Brasil para o
programa Mais Médicos. Atuou de 2014 a 2017 em cidades do interior de
Santa Catarina, onde se casou com uma brasileira e vive até hoje.
Em 2018, quando Cuba rompeu o acordo com a Organização Pan-Americana
de Saúde e o governo brasileiro para o Mais Médicos, Moreno decidiu
ficar no Brasil. “Fui considerado um desertor e impedido de entrar em
Cuba por oito anos”, conta. Na sua nova casa, porém, ele não consegue
trabalhar.
Moreno foi convidado para trabalhar no hospital de Treze de Maio e
completar os plantões da unidade. A Justiça concedeu, em primeira
instância, liminar para que o CRM autorize a atuação do médico. O
conselho, porém, recorreu à 2ª instância (TRF4), onde decisão semelhante
já foi derrubada.
No ano passado, Moreno foi contratado pelo governo do Pará e atuou de
maio a novembro no hospital de campanha de Marabá para atendimento à
covid-19. Eram quatro médicos para 60 leitos de UTI, em equipes
organizadas para ter dois profissionais com o registro do CRM e outros
dois, como Moreno, sem o registro. “Trabalhava 24 horas e descansava 24
horas. Era esgotador.”
Ao todo, o Pará contratou cerca de 400 médicos cubanos para atuar em
hospitais de campanha e unidades básicas de saúde. O Conselho Federal de
Medicina, no entanto, conseguiu derrubar a decisão, e os profissionais tiveram de ser dispensados, incluindo Moreno.
O cubano está participando do Revalida 2020 e diz que recorreu à Justiça porque lamenta não poder ajudar, enquanto vê o Brasil mergulhado no colapso hospitalar. “Eu me formei médico não para ser rico, mas para ajudar o próximo, e hoje a população do Brasil está precisando. Deveriam entender que os médicos formados no exterior podem ajudar”.