Dossiê para conhecer Achille Mbembe

Filósofo camaronês sustenta: o neoliberalismo reedita a escravização e a democracia só é viável se o racismo for reconhecido, enfrentado e combatido radicalmente

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Por Carla Rodrigues e Suely Aires, na Cult

A tradução de livros de Filosofia no Brasil está ligada de forma direta à maneira como certos autores e autoras foram lidos, interpretados e privilegiados nas pesquisas e na construção de saberes, ora importando cânones europeus, ora privilegiando comentadores e tendências emergentes nos países do Norte. Como consequência, nossas bibliografias costumam ignorar produções regionais na América Latina ou em países do Sul, como os da África, de onde vem o filósofo Achille Mbembe, nascido na República dos Camarões em 1957, hoje professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul. A chegada de Crítica da razão negra, seu principal título, às livrarias brasileiras, e do ensaio Necropolítica, ambos pela n-1 Edições, é um alento nesse momento de necessária renovação do nosso pensamento crítico. Outros títulos, como o recente Políticas da inimizade ou o seu primeiro trabalho, Na pós-colônia, podem contribuir ainda mais para a abertura a outras epistemologias. Com Mbembe e seu protagonismo no pensamento pós-colonial, ganhamos em recursos teóricos para pensar as especificidades do racismo brasileiro e o devir-negro no mundo colonizado, cujas fronteiras são cada vez mais porosas. Nesse momento em que a sociedade brasileira está no centro da disputa da renovação do capitalismo neoliberal, nos debruçamos sobre a obra de Mbembe para tomar fôlego e renovar nossas forças de resistência.

Por isso, para este dossiê, convidamos o professor de Filosofia da PUC-SP Peter Pál Pelbart, editor da n-1. Seu texto nos possibilita situar o pensamento de Mbembe em diferentes momentos de sua produção, destacando o que aí se apresenta de original e potente. A necropolítica, como política de morte, sustenta-se na dimensão da racialização, mas a extrapola, na medida em que a condição subalterna reservada aos negros, pouco a pouco, se amplia e aponta para o devir-negro do mundo. Uma crítica da razão negra se faz portanto necessária, pois o neoliberalismo, como face atual e devastadora do capitalismo, produz desempregados, indivíduos descartáveis, favelados, refugiados, imigrantes… toda uma horda de seres matáveis, expostos à morte. E, nesse recorte, Peter Pál Pelbart destaca o que deve ser exaustivamente relembrado: a política de extermínio revela a sobrevivência da matriz colonial no contexto contemporâneo e, em especial, no Brasil dos dias atuais. Na gestão da vida, inventam-se e reinventam-se hierarquias, classificações, assimetrias, discriminações, em que a religião, os valores morais e culturais vêm substituir o lugar da biologia como fundamento da discriminação, ao mesmo tempo que se sobrepõem a ela.

Renato Noguera é ainda mais enfático ao afirmar que o neoliberalismo é uma reedição da escravização negra moderna, pois nesse contexto é necessário usar e explorar as pessoas trabalhadoras como se fossem escravas. O devir-negro se insinua a cada novo avanço do neoliberalismo, cujo projeto de globalização comercial implica a construção de centros e periferias, exploradores e explorados, em um modelo escravocrata que se sustenta na racialização da humanidade, seja ela biológica, seja social. E eis sua hipótese central: a democracia só é viável se o racismo for reconhecido, enfrentado e combatido radicalmente. Se cada prática racista reedita as novas faces do fascismo, cujos rostos camuflam a ditadura de mercado como se fosse o sinônimo mais bem elaborado da democracia, uma luta constante se faz necessária: reparação e restituição de direitos como elementos políticos necessários à sustentação da democracia.

É ainda o racismo que guia o argumento de Edson Teles, mas por outra via, em que a branquitude precisa ser colocada em questão, de modo a retirá-la de sua função-modelo. É necessário haver uma abertura de experimentações críticas da branquitude, tomada como identidade racial “normal”, identidade-padrão diante da qual os outros grupos aparecem como desvio, em sua desqualificação. Nesse sentido, o conceito de necropolítica, de Achille Mbembe, permite lançar um olhar mais aguçado para a racialização das relações e práticas sociais, as quais implicariam a produção de inimigos, em sua relação com o racismo estrutural. A insegurança e o medo gerados pelos inimigos autorizam o Estado de Direito a agir em condições de exceção, promovendo permanentemente intervenções nos territórios e nos corpos colonizados. Aparentemente antagônicos, democracia e produções da inimizade compõem o paradoxo constituinte e potencializador da política nos Estados de Direito. Revisitar o racismo estrutural e lutar pela produção de uma outra ética e de uma justiça não racializada demanda que nas ruas, nas casas, nas universidades, nos partidos e instituições de governo da vida haja discussão e luta. A leitura de Mbembe nos permite a contextualização da realidade brasileira, o que nos leva a discutir as tecnologias de controle social fabricadas pelo racismo brasileiro, que não se assume em sua condição de exclusão, bem como nos impele a reconhecer os saberes locais e específicos das resistências.

O esforço do texto de Suely Aires segue essa direção: busca questionar quais as condições concretas em que se exerce o poder de fazer morrer, deixar viver ou expor à morte, bem como os modos de sua exequibilidade no Brasil. O extermínio de pessoas mostra a sua face no discurso corrente da guerra às drogas, justificativa, por excelência, para o exercício do necropoder, o qual se exerce em um tempo e um espaço definidos; sobre vidas e corpos que são escolhidos e marcados para serem expostos à morte ou diretamente executados. O efeito é conhecido: o racismo se exerce em sua face mais violenta – genocídio da população negra. Em uma luta cotidiana pela democracia e como prática antirracista, devemos extrair consequências políticas do pensamento de Mbembe: há que se discutir seriamente a legalização e regulamentação do uso de drogas. Há que se combater a todo momento a criminalização da pobreza e sua segregação em territórios predeterminados. Há que se romper definitivamente a associação entre crime e cor.

Achille Mbembe, ao articular colonialidade, racismo, violência de Estado e crítica ao capitalismo global, une – nas palavras de Carla Rodrigues – “pontas que apareciam até então dispersas” em diferentes autores ou correntes de pensamento. Tecendo a partir desses fios e incluindo diretamente a filósofa Judith Butler no diálogo, Carla Rodrigues destaca o quanto a nossa guerra à brasileira se articula com outras tantas guerras sem fim. Em nome de um certo povo, contra outro povo, a soberania se exerce por meio da precarização da vida, capaz de empurrar enormes contingentes de população da política para a guerra, de tal modo que não exista nenhum lugar de amparo na situação atual. Na instabilidade política, cresce o poder de mover a linha imaginária do racismo para qualquer um, a qualquer tempo, cujo limite do não humano acena de modo próximo. O que se coloca em questão é, portanto, quem tem ou não o direito de permanecer como raça humana. Nesse contexto, um ponto a mais parece merecer destaque: a nomeação da violência. Como nomear essa violência cuja origem não se limita mais a uma única fonte – Estado, capital ou direito – nem à combinação dessas três fontes, mas pode emergir de qualquer lugar contra qualquer um? Em tempos sombrios, a reflexão crítica se mostra um alento, mas antes de tudo uma necessidade.

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